Contra-antidesintermediação

Dmytri Kleiner

No capítulo 33 d’O Capital, Karl Marx nos apresenta a personagem do sr. Peel, descrita na obra England and America: A Comparison of the Social and Political State of Both Nations, de E. G. Wakefield. Embora a história do sr. Peel seja própria do colonialismo do início do século XIX, ela nos ajuda a entender o que a internet e a chamada economia do compartilhamento se tornaram.

O sr. Peel vai ao rio Swan, na Austrália, em busca de fortuna. Levou tudo o que um capitalista aspirante precisaria para começar a acumular mais-valia e se tornar um grande capitalista: trezentas pessoas, incluindo homens, mulheres e crianças, que forneceriam a mão-de-obra e sua reprodução, junto com £ 50.000, uma grande soma para época.

No entanto, as coisas não funcionaram para o sr. Peel, como concluiu Marx: “Desditoso sr. Peel, que previu tudo, menos a exportação das relações inglesas de produção para o rio Swan!”.

Uma vez chegando ao rio Swan, as trezentas pessoas simplesmente se dispersaram e se estabeleceram na grande quantidade de terras livres disponíveis, e “o sr. Peel ficou sem nenhum criado para fazer sua cama ou buscar-lhe água do rio”.

Ele descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre as pessoas, estabelecida pela instrumentalidade das coisas.

Como Marx ainda explica, “a propriedade de dinheiro, meios de subsistência, máquinas e outros meios de produção não confere a ninguém a condição de capitalista se lhe falta o complemento: o trabalhador assalariado, o outro homem forçado a vender a si mesmo voluntariamente”.

Marx argumenta que “os meios de produção e de subsistência, como propriedades do produtor direto, não são capital. Eles só se tornam capital em condições sob as quais servem simultaneamente como meios de exploração e de dominação do trabalhador”.

A classe capitalista do sr. Peel não estava satisfeita com sua própria capacidade de expandir seu modo de produção nas colônias, e encontrou uma solução no cercamento, descrito por Wakefield como “colonização sistemática”,

A terra foi confiscada por lei como propriedade pública e privatizada, sem terras livres disponíveis. Somente aqueles com riquezas poderiam ser proprietários, e assim todo mundo teria que vender seu trabalho aos capitalistas.

A Internet no início era como o rio Swan. Como pode o moderno sr. Peel ganhar dinheiro operando plataformas de Internet, se qualquer pessoa pode fazer isso? Se todos os softwares e redes fossem abertos e amplamente disponíveis, ninguém poderia realmente ter um lucro significativo. Se os meios de produção estão disponíveis para todas as pessoas, então não pode haver capital.

Como as colônias, a Internet precisava ser sistematicamente colonizada para criar as condições necessárias para o capital. Isso também foi realizado por cercamento. A infraestrutura original foi tomada e colocada sob o controle do capital, e os sistemas descentralizados foram substituídos por outros centralizados.

As plataformas de “mídia social” e de “compartilhamento” são duas formas dessa centralização, dois modelos de negócios para o capitalismo de plataforma.

Mais-valia x Superlucro

É tentador olhar para sites como o Facebook e o YouTube e concluir que eles obtêm seus lucros explorando seus próprios usuários, que geram todo o conteúdo que torna esses sites populares. No entanto, não é este o caso, já que a mídia não é vendida e, portanto, não obtém lucro e não captura nenhum valor.

O que se vende é a publicidade, portanto os clientes pagantes são os anunciantes, e o que se vende são os próprios usuários, e não seu conteúdo.

Isso significa que a fonte de valor que se torna o lucro do Facebook é o trabalho realizado por trabalhadores nos campos e fábricas globais, que estão produzindo as mercadorias anunciadas para o público do Facebook.

Os lucros dos monopólios de mídia se formam depois que o valor excedente já foi extraído. Seus usuários não são explorados, mas submetidos, capturados como audiência e instrumentalizados para extrair excedentes de outros setores da classe proprietária.

Empresas da economia de compartilhamento, como a Uber ou a Airbnb, que não possuem veículos ou imóveis, capturam lucros dos operadores dos carros e apartamentos para os quais fornecem mercado.

Nenhum desses modelos de negócios é muito novo. As empresas de mídia que vendem a mercadoria audiência são pelo menos tão antigas como a rádio comercial. Proprietários de mercado, que capturam renda de quem vende no mercado, têm estado conosco há séculos.

Em vez de subverter o capitalismo, as plataformas de “compartilhamento” foram capturadas por ele.

Arquitetura Orientada ao Consentimento

As plataformas capitalistas baseadas na venda de mercadoria audiência e na captura de renda de mercado exigem um sacrifício de privacidade e autonomia.

A mercadoria audiência, como todas as mercadorias, é vendida por medida e categoria. Ovos são vendidos por dúzia na categoria “A”. Um anunciante pode comprar mercadoria audiência em milhares de cliques de homens brancos de meia-idade que possuem um carro e têm uma boa classificação de crédito, num certo volume – por exemplo, 10.000 cliques.

A mercadoria audiência é classificada pelo que se conhece sobre a demografia da audiência. Plataformas com modelos de negócios que vendem mercadoria audiência exigem vigilância. Da mesma forma, plataformas que capturam renda do mercado coletam dados extensivos sobre seus usuários e fornecedores para maximizar a rentabilidade da plataforma.

Um sacrifício obrigatório do consentimento é exigido para usar as plataformas. Quando um usuário compartilha informações na plataforma, ele pode consentir em compartilhar essas informações com determinadas pessoas, mas não necessariamente consentiu que essas informações estejam à disposição dos funcionários da plataforma, dos anunciantes, ou dos parceiros comerciais e dos serviços de informação do Estado. No entanto, para a maioria dos usuários não há alternativas práticas, e eles devem sacrificar esse consentimento para usar a plataforma.

As corporações criadas para maximizar os lucros são incapazes de criar plataformas consensuais. Seu modelo comercial depende fundamentalmente da vigilância e do controle comportamental.

Plataformas consensuais verdadeiras devem ter a privacidade, a segurança e o anonimato como recursos principais. A forma mais eficaz de garantir consentimento é garantir que todos os dados do usuário e o controle de toda a interação do usuário residam no software que está sendo executado no próprio computador do usuário e não em qualquer servidor intermediário.

Contra-antidesintermediação

Em seu blogue, Wendy M. Grossman escreve: “A ‘desintermediação’ foi uma das palavras-chave do início da década de 1990. A rede eliminaria os intermediários, permitindo que todos lidássemos diretamente uns com os outros”. Hoje, a paisagem é dominada por ISPs muito maiores e em um número muito menor, cujas conexões fixas são muito mais rastreáveis e controláveis. Pensávamos muito na criptografia como proteção da privacidade e, agora penso, pouco sobre o potencial sem precedentes de escuta endêmica possibilitada por uma Internet cada vez mais centralizada.

A ideia de desintermediação foi fundamental para as visões emancipadoras da Internet, mas a paisagem hoje é mais mediada que nunca. Se quisermos pensar mais sobre as consequências de uma Internet cada vez mais centralizada, precisamos começar abordando a causa dessa centralização. A internet foi colonizada por plataformas capitalistas; a centralização é necessária para capturar lucros. As plataformas de desintermediação foram, em última instância, reintermediadas por investidores capitalistas, ditando que os sistemas de comunicação devem ser construídos para capturar lucros.

A falha foi, até certo ponto, resultado da arquitetura do início da Internet. Os sistemas que as pessoas usavam no início da Internet eram, principalmente, cooperativos e descentralizados, mas não eram de ponta a ponta. Os usuários de e-mail e da Usenet, as duas plataformas mais usadas, geralmente não operavam seus próprios servidores em seus próprios computadores locais, mas dependiam de servidores executados por terceiros.

Servidores precisam de manutenção. Os operadores precisam financiar hospedagem e administração. À medida que a Internet crescia além de sua relativamente pequena base inicial, o serviço passou a ser fornecido por corporações capitalistas, em vez de instituições públicas, pequenas empresas ou universidades. Os serviços abertos e descentralizados vieram a ser substituídos por plataformas privativas e centralizadas. Os interesses de lucro dos financiadores da plataforma resultaram em uma política de antidesintermediação.

Assim como a colonização sistemática foi desenvolvida para estabelecer o modo de produção capitalista nas colônias, a antidesintermediação foi desenvolvida para colonizar o ciberespaço.

A estratégia básica de antidesintermediação foi formulada por economistas como Carl Shapiro e Hal R. Varian. Seu influente livro Information Rules encoraja os proprietários de plataforma a buscar o “lock-in”. Como eles resumem em seu site, “como os produtos de tecnologia da informação trabalham em sistemas, mudar qualquer produto pode custar caro para o usuário. O lock-in resultante desses custos de mudança confere uma enorme vantagem competitiva às empresas que gerenciam efetivamente sua base de clientes”.

Seu conselho foi bem recebido. Varian é atualmente o economista-chefe da Google, enquanto Shapiro foi vice-procurador assistente de economia do Departamento de Justiça.

Voltar a uma arquitetura do início da Internet, com servidores cooperativos e descentralizados, como o Diaspora, o GNU Social e outros projetos estão tentando fazer, não vai funcionar. Esta é precisamente a arquitetura que a antidesintermediação foi projetada para derrotar.

Sistemas descentralizados devem ser projetados para ser contra-antidesintermediacionistas.

Central para o desenho contra-antidesintermediacionista é o princípio ponto-a-ponto [peer to peer]; as plataformas não devem depender de servidores e administradores, mesmo quando executadas de maneira cooperativa, mas devem, na medida do possível, ser executadas nos computadores dos usuários dessas plataformas.

A capacidade computacional e o acesso à rede dos próprios computadores dos usuários devem constituir os recursos da plataforma, de modo que, no rateio, cada novo usuário adicione à plataforma mais recursos que consuma.

Ao mantermos a capacidade computacional nas mãos dos usuários, evitamos que a plataforma de comunicação se torne capital, e impedimos que os usuários sejam instrumentalizados como mercadoria audiência.

Assim, deixamos o sr. Peel tão desditoso no ciberespaço quanto estava no rio Swan, resistindo à colonização de nossas plataformas de comunicação pelo capital de risco, e preparando o caminho para o comunismo de risco.

Tradução puerca das Macacas Idosas do Instituto Geriátrico Puerco Suíno

O texto em inglês está neste livro

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