Desde que o Menino Cobaia trouxe ao hotel o tema da contaminação ambiental por xenoestrógenos nós temos pensado bastante sobre essa situação paradoxal em que toneladas de estrógenos são despejadas sorrateiramente sem qualquer controle em nosso entorno, ao mesmo tempo em que a livre experimentação consciente com hormônios em nossos próprios corpos passa por um rígido controle institucional. E é exatamente disso que trata o Open Source Estrogen/ Estrógenos de Código Aberto, um projeto de Mary Maggic, Byron Rich & outres corpes:
A BIO-LENTA E O PARADOXO DA DISRUPÇÃO
Toxidade ambiental e Biopolítica contra a soberania do corpo e de gênero
A BIO-LENTA é o exercício da violência biopolítica contra a capacidade individual de decisão.
O Paradoxo da Disrupção nos recorda como o poder hegemônico silencia a forma pela qual intoxica nossos corpos ao mesmo tempo em que patologiza as identidades dissidentes de gênero.
Partindo disso… vamos esclarecer alguns conceitos.
O que é Biopolítica?
Há diferentes maneiras de definir a biopolítica. De acordo com Foucault, a biopolítica é a maneira pela qual o governo regula a população através do biopoder, isto é, a aplicação e o impacto político do poder em todos os aspectos da vida humana.
“O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetiva somente mediante a consciência ou a ideologia, mas também no corpo e com o corpo. Para a sociedade capitalista o que importava acima de tudo era o bio-político, o biológico, o somático, o corporal”. (Foucault)
Para compreender esta forma de dominação, é importante entender dois conceitos principais: Zoé e Bios.
Zoé significa, em grego clássico, simplesmente “vida”.
Bios faz referência à vida política.
Foucault sugere que com a aparição do estado moderno, a zoé foi incluída na bios, com a intenção de controlá-la.
No entanto, Giorgio Agamben (Roma, 1942) repensa a biopolítica foucaultiana. Podemos encontrar duas importantes diferenças entre Agamben e Foucault:
1. O biopoder se apropria da zoé dxs cidadã/os para sua manipulação política desde o início da hegemonia ocidental, na polis grega.
2. O poder político cria uma coincidência conceitual entre Zoé e Bios. Este ponto é importante porque coloca que a “simples vida” foi considerada fora da lei. Mas com a absorção desse espaço, zona autônoma e fora da lei, pela Bios, o poder político estende sua ação sobre o exercício da vida dos seres vivos.
Podemos tomar estas ou outras definições de biopolítica, mas o ponto é:
O significado conceitual da biopolítica se relaciona com a capacidade do poder hegemônico para controlar os corpos, comportamentos e identidades dxs seres humanxs.
COLONIZAÇÃO MOLECULAR E TOXIDADE AMBIENTAL
A contaminação com xenoestrógenos está interferindo nos estrógenos naturais, o que provoca uma série de disfunções e doenças no sistema hormonal dos seres vivos. Os xenoestrógenos, como o DDT e o DES, foram sintetizados pelas indústrias química e farmacêutica, criados na década de 1930.
Os xenoestrógenos sintetizados quimicamente podem permanecer no meio ambiente por até 100 anos. Além disso, demonstrou-se cientificamente que são transmitidos através de recipientes de plástico (especialmente os de PVC). Essas são as principais causas da contaminação por estrógenos. Os xenoestrógenos são DISRUPTORES HORMONAIS, isto é, geram mudanças na funcionalidade do sistema endócrino.
Graças às teorias de Agamben, é possível entender a contaminação por xenoestrógenos como uma forma de controle biopolítico, porque afeta o equilíbrio hormonal dos seres vivos, incluídos os humanos. E, mais concretamente, a contaminação por estrógenos pode ser considerada uma expressão da “slow violence” ou violência lenta/paulatina.
O que é a violência paulatina [a.k.a BIO-LENTA]?
Segundo Rob Nixon, em seu livro Slow Violence and the Environmentalism of the Poor, a violência lenta é um tipo de violência que tem lugar gradualmente e fora da vista (pública). Não é um tipo de violência espetacular e instantânea, mas uma violência que muitas vezes nem se considera como tal. Em nosso caso, a contaminação por xenoestrógenos se adapta perfeitamente à ideia de violência paulatina porque a opinião pública não atua sobre ela, por falta de informação. A onipresença dos xenoestrógenos é um ato silencioso e progressivo de envenenamento.
Como pudemos ver nos ataques terroristas do 11 de setembro, o tratamento dado à violência pelos meios de comunicação se baseia no espetáculo.
Os meios de comunicação não costumam prestar atenção nas tragédias produzidas pela violência paulatina, como a contaminação por estrógenos.
Um dos objetivos principais do projeto Estrógenos de Código Aberto consiste em oferecer ao público a informação relacionada com a contaminação por estrógenos na água de Madri para envolver a sociedade civil, exigir intervenção política institucional e oferecer uma reflexão sobre a ação corporal subversiva.
Estrógenos de código aberto
“Escritorxs, cineastas e ativistas digitais poderiam desempenhar um papel mediador ajudando a se contrapor à invisibilidade estratificada resultante das ameaças insidiosas, procedentes da temporalidade prolongada, e do fato de que as pessoas afetadas são aquelas cuja qualidade de vida – e, com frequência, a própria existência – é indiferente para os grandes meios de comunicação” (Rob Nixon)
Centradas nesta proposta, abordamos uma reconsideração do projeto com a ideia da apreensão.
Primeiro, a apreensão esboça percepção, emoção e ação, por outro lado, nosso projeto inclui a detecção, extração e a síntese de estrógenos. Existe uma relação direta entre estas duas tríades de conceitos, mas existe também um diálogo multidirecional dos seis conceitos. Em segundo lugar, apreendendo algo potencialmente perigoso, como os estrógenos disseminados no ambiente madrilenho, e usando-os como arma criativa e comunicativa, criamos uma subversão artística.
Com a ajuda de tecnologias contemporâneas de baixo custo, convidamos o público a uma mudança na percepção temporal dos processos violentos alteração de Gaia (a Terra é o melhor indicador dos problemas de poluição). Para isso, coletamos amostras de água da cidade de Madri e as analisamos em nosso laboratório biológico caseiro, geolocalizando os resultados. Experimentamos com a detecção e a extração do estrógeno das amostras e liberamos o conhecimento mostrando como construir um laboratório DIY com materiais cotidianos.
O PARADOXO DISRUPTIVO
Disrupção
s.f.
(do latim disrupio, -onis, fractura, ruptura)
Ato ou efeito de romper(-se); dirupção, fratura.
Quebra de um curso normal de um processo.
Criar confusão ou desordem.
Restabelecimento abrupto de energia elétrica que provoca faíscas e enorme consumo da energia acumulada.
Em escoamento de fluidos, formação e acúmulo de turbilhões ao redor de um obstáculo; deflexão.
Enquanto o atual e voraz sistema hegemônico de consumo nos envenena lentamente através da toxidade estrogênica ambiental provocada pelas dinâmicas da alta produtividade industrial e da exploração agrícola, os corpos dissidentes, inclassificáveis nos parâmetros binômicos, são patologizados.
Enquanto a instituição médica, política, psiquiátrica e farmacêutica coloniza nossos corpos, a agroindústria alimentícia os altera com a BIO-LENTA.
Ao mesmo tempo, as pessoas transgênero são tratadas como doentes, submetidas a diagnósticos e à experimentação do poder, a livre experimentação da disrupção hormonal está encriptada.
Tanto a toxidade ambiental como as ações corporais subversivas, estão envolvidas na disrupção hormonal.
Os hormônios sexuais estão dentro de nós e pululam por nosso entorno, afetando nossos corpos.
A coisa é: por que não podemos decidir como queremos expor nossos corpos? A contaminação por xenoestrógenos é ocultada pelo poder porque a regulação e o controle de sua toxidade são controvertidos.
Por outra parte, a normatividade enclausura a possibilidade de hackear nossos corpos para romper o sistema hegemônico e os privilégios do sistema cis-sexista.
Esta situação insana se parece com algo como uma INDÚSTRIA CAPITALISTA FARMACOPORNOGRÁFICA de controle social e reprodutivo.
A contaminação por estrógenos não está controlada nem calibrada por nenhum parâmetro de sustentabilidade ecológica. No entanto, existem consequências sobre o funcionamento de nossos corpos pela exposição prolongada a estes níveis não analisados nem identificados. O silêncio consentido em favor dos interesses econômicos liberais nos afeta.
A ficção do sistema sexo/gênero acompanhado de uma concepção binarista e cis-sexista da sociedade, desnormaliza a soberania do corpo e do gênero, patologizando as identidades trans, inter, queer…
Precisamos nos reapropriar da soberania de nossos corpos, devemos ressignificar e decolonizar os termos e processos, e, finalmente, temos que hackear o controle da instituição através da DESOBEDIÊNCIA CIVIL BIOTÉCNICA.
Como? Queremos desmitificar as objeções em relação à experimentação hormonal. Se conhecemos os níveis de toxidade poderemos proteger nossa soberania. Abriremos o código de nossa experimentação para a intervenção política. Este projeto de biohacking poderia ser um fantástico caminho para a injeção cultural da resistência. [ texto retirado do Estrozine 1.1 – tradução das macacas idosas do Instituto Geriátrico Puerco Suíno]
Open Source Estrogen/Estrógenos de Código Aberto: donas de casa fazendo drogas combina ciência DIY, política de corpo e de gênero, e ética da manipulação hormonal.
O objetivo do projeto é criar um protocolo de código aberto para a biossíntese de estrógeno.
A cozinha é um espaço politicamente carregado prescrito às mulheres como seu ambiente apropriado, o que a torna o contexto exato para se fazer uma receita de síntese de estrógeno.
Com os recentes desenvolvimentos no campo da biologia sintética, a cozinha adaptada em laboratório pode ser uma realidade ubíqua num futuro próximo.
O estrógeno de código aberto poderá permitir a mulheres cis e trans o exercício de um maior controle sobre seus corpos ao prescindir de governos e instituições.
Queremos perguntar: quais são as biopolíticas que governam nossos corpos? E mais importante ainda: é ético autoadministrar-se hormônios autossintetizados?
[Os detalhes sobre a detecção, extração e geolocalização da BIO–LENTA Madrilenha, você encontra AQUI.]