A Teoria da Mulher Doente

Na tarde do domingo passado, o staff do hotel subia a Rua Augusta na manifestação contra o golpe convocada pelas mulheres. Observando as pessoas que das janelas dos prédios acenavam para nós com bandeiras e panos vermelhos, ChaosTotal comentou: “moram aqui do lado, por que não vêm pra rua também?”. Respondemos que muita gente, por mais vontade que tivesse, não podia estar ali caminhando conosco, por vários motivos. Johanna Hedva nos explica melhor isso e muitas outras coisas importantes.

[como de costume, a tradução foi feita pelas macacas idosas durante as atividades antidemência no asilo do Puerco Suíno. Está imperfeita, cheia de erros, por isso pode e deve ser melhorada por quem se dispuser].

★☭★

A TEORIA DA MULHER DOENTE

sick1

Johanna Hedva vive com uma doença crônica e sua Teoria da Mulher Doente é para todas aquelas que nunca imaginaram sobreviver, mas sobreviveram.

1.

No final de 2014 eu estava num surto de uma patologia crônica que, entre cada 12 ou 18 meses, torna-se tão forte que me deixa sem poder caminhar, dirigir, fazer meu trabalho, às vezes falar ou entender o que falam, tomar banho sem ajuda e sair da cama, por cinco meses a cada episódio. Naquela vez, coincidiu com os protestos de Black Lives Matter, aos quais eu teria ido sem pensar, se pudesse. Vivo a uma quadra do parque MacArthur em Los Angeles, um bairro predominantemente latino e popularmente conhecido como um lugar onde muitos imigrantes começam sua vida nos Estados Unidos. Portanto, não surpreende que o parque seja um dos mais ativos locais de protesto na cidade.

Ouvi os sons da manifestação se aproximando de minha janela. Grudada a minha cama, ergui meu punho de mulher doente em solidariedade.

Comecei a pensar sobre as formas de protesto permitidas às pessoas doentes – me pareceu que muitas das pessoas às quais Black Lives Matter se destina não podem, talvez, estar presentes nas manifestações porque estão presas a um trabalho, pelo risco de demissão se forem às manifestações, por estarem literalmente presas, e, claro, pela ameaça da violência e brutalidade policial… mas também por doença ou deficiência, ou por cuidarem de alguém com uma doença ou deficiência.

Pensei em todos os corpos invisíveis, com seus punhos erguidos, ocultos, fora do alcance da vista.

Se tomamos a definição de Hannah Arendt de político – que ainda é uma das definições dominantes – como sendo qualquer ação desenvolvida em público, temos que lidar com as implicações daquilo que ela exclui. Se estar em público é o que se requer para ser política, então grupos inteiros da população podem entender-se como apolíticos, simplesmente por não serem fisicamente capazes de colocar seus corpos na rua.

Na minha graduação, Arendt era uma espécie de divindade, e portanto fui treinada para pensar que sua definição de político era radicalmente libertadora. Claro, sei que realmente o foi, à sua maneira, em sua época (no final da década de 1950): com um só golpe ela se livrou da necessidade de estruturas legais, de processo de votação democrático, de dependência de indivíduos que acumularam poder para influenciar políticas: se desfez da necessidade de políticas em sua totalidade. Isso tudo era necessário para que uma ação fosse considerada política e visível como tal. Não, disse Arendt, basta colocar seu corpo na rua e bum: política.

Há dois problemas aqui, no entanto. O primeiro é a dependência de um “público” – o que requer um privado, um binarismo entre o espaço visível e o invisível. Isto significa que tudo o que acontece no privado não é político. Então, por exemplo, se você espanca sua esposa em privado, não tem importância. Você pode enviar e-mails privados contendo ofensas racistas, mas desde que eles não foram dirigidos ao público, você não é racista. A preocupação de Arendt era que se tudo pudesse ser político, então nada o seria, por isso dividiu o espaço em um lado político e outro que não o fosse. Mas, às custas dessa ansiedade, ela acabou sacrificando grupos inteiros de pessoas, banindo-as para um lugar de invisibilidade e irrelevância política. Escolheu tirá-las da esfera pública. Não sou a primeira a criticá-la por isto, o problema do político de Arendt foi imediatamente denunciado durante o ativismo de direitos civis e do feminismo dos anos 60 e 70. “O pessoal é político” também pode ser entendido como “o privado é político”. Porque é claro que tudo o que você faz em privado é político: com quem você faz sexo, o tempo que dura seu banho, se você tem acesso à água limpa para o banho, e assim por diante.

Há um outro problema adicional. Como disse Judith Butler em sua palestra de 2015, Vulnerability and Resistance (Vulnerabilidade e Resistência), Arendt não conseguiu dar conta de quem é permitido no espaço público, de quem controla o público. Ou, mais especificamente, quem controla quem ingressa nele. Butler diz que uma coisa é certa a respeito de qualquer manifestação pública: a polícia sempre está lá, ou está a caminho. Isso ressoa com força quando consideramos o contexto do Black Lives Matter. A inevitabilidade da violência em uma manifestação, em especial naquelas que surgem para insistir na importância de corpos que foram violentamente negligenciados, garante que certo número de pessoas não participem porque não podem. Somando a isso doenças físicas e mentais, e deficiências que obrigam a permanecer na cama ou em casa, devemos enfrentar o fato de que muitas das pessoas que estes protestos tentam representar não podem tomar parte deles, o que significa que não podem ser visíveis como ativistas políticos.

Houve um post do Tumblr com o qual me deparei durante aquelas semanas de protesto, que dizia algo como “um salve a todas as pessoas com deficiência, doentes, gente com TEPT, ansiedade, etc, que não pode protestar com a gente na rua esta noite. Suas vozes são ouvidas e valorizadas e estão com a gente”. Coração. Reblog.

Assim, enquanto estava eu deitada ali, sem poder marchar ou levantar um cartaz ou gritar uma palavra de ordem que fosse ouvida, ou ser visível em qualquer capacidade tradicional de um ser político, a questão central da Teoria da Mulher Doente foi formulada: como quebrar a vidraça de um banco com um tijolo se você não pode sair da cama?

sick2

2.

Tenho uma doença crônica. Para quem não sabe o que isso significa, deixem-me ajudar: a palavra “crônica” vem do latim chronos, que significa “do tempo” (pense em “cronologia”) e se refere especificamente a um ciclo de vida. Então uma doença crônica é uma doença que dura toda uma vida. Em outras palavras, ela não melhora. Não há cura.

E imagine o peso do tempo: sim, porque significa que você sente isso todos os dias. Em raríssimas ocasiões me pego em um momento como se algo me puxasse para fora do mundo, onde me dou conta de que deixei de pensar em minha doença por alguns minutos, algumas preciosas horas, talvez. Estes momentos felizes de esquecimento são a coisa mais próxima de um milagre que conheço. Quando se tem uma doença crônica, a vida se reduz a um implacável racionamento de energia. Custa fazer qualquer coisa: sair da cama, cozinhar, vestir-se, responder a um e-mail. Quem não tem doença crônica pode gastar e gastar energia sem consequências: o custo disso não é um problema. Nós que temos recursos limitados, temos que racionar, nosso estoque é limitado: com frequência o esgotamos antes da almoço

Pensei em doenças crônicas de diferentes maneiras.

Ann Cvetkovich escreve: “E se a depressão, pelo menos nas Américas, pudesse ser atribuída a histórias de colonialismo, genocídio, escravidão, exclusão legal, segregação e alienação diária que assedia nossas vidas, em vez de um desequilíbrio bioquímico?”. Eu gostaria de substituir a palavra “depressão” aqui por qualquer doença mental. Cvetkovitch continua, “grande parte da literatura médica tende a descrever um sujeito branco e de classe média, para quem sentir-se mal é frequentemente um mistério, porque o mal-estar não se encaixa em uma vida em que o privilégio e o conforto parecem manter as coisas muito bem na superfície”. Em outras palavras, o bem-estar tal como é entendido hoje nos EUA é uma ideia branca e economicamente privilegiada.

Deixem-me citar Starhawk, no prefácio da nova edição do livro de 1982 Dreaming the Dark: “Os psicólogos construíram um mito – que em algum lugar existe um certo estado de saúde que é a norma, o que significa que se presume que a maioria das pessoas está nesse estado, e que aqueles que estão ansiosos, deprimidos, neuróticos, angustiados ou num estado de infelicidade geral são desvios. Aqui eu substituiria a palavra “psicólogos” por “supremacia branca”, “médicos”, “seu chefe”, “neoliberalismo”, “heteronormatividade”, e “Estados Unidos”.

Nos últimos anos tem havido uma enorme quantidade de textos sobre como a dor “feminina” é tratada – ou melhor, como não é tratada tão a sério quanto a dor dos homens em salas de emergência e clínicas por médicos, especialistas, planos de saúde, famílias, maridos, amigos, pela cultura em geral. Em um artigo recente no The Atlantic, chamado How Doctors Take Women’s Pain Less Seriously (“Como os Médicos Levam Menos a Sério a Dor das Mulheres”), um marido escreve sobre a experiência da longa espera de sua esposa Rachel no setor de emergência antes de receber o atendimento médico que sua condição exigia (que era uma torção do ovário, quando um cisto cresce tanto que cai, torcendo uma trompa de falópio). “O tempo médio de espera a nível nacional para os homens é de 49 minutos, antes de receber um analgésico para dor abdominal aguda. Para as mulheres, o tempo médio para a mesma situação é de 65 minutos. Rachel esperou entre 90 minutos e duas horas”. Ao final, Rachel havia esperado quase 15 horas antes de passar por uma cirurgia que devia ter sido feita logo que deu entrada. O artigo conclui com a cicatrização das feridas físicas, mas ela “ainda luta com o desgaste psicológico, o que chama de ‘o trauma de não ser vista’”.

O que o artigo não menciona é raça – o que me leva a crer que o autor e sua esposa são brancos. Ser branco é o que permite essa neutralidade indiferente: essa é a premissa de ser branco, a presunção de ser universal. (Estudos mostram que quando se fala de raça, gente branca escuta gente branca com uma abertura muito maior que a uma pessoa não branca. Podendo eu passar por branca, permitam-me dirigir-me diretamente à gente branca: olhem minha cara branca e ouçam-me.)

O trauma de não ser vista. Novamente – a quem é permitido entrar na esfera pública? A quem é permitido ser visível? Não pretendo diminuir a horrível experiência de Rachel – eu mesma já tive que esperar dez horas em um setor de emergência para ser diagnosticada com cisto de ovário rompido – eu só gostaria de salientar os pressupostos sobre os quais o seu horror se baseia: que nossa vulnerabilidade deve ser vista e respeitada, e que todas nós devemos receber cuidados, rapidamente e de uma forma que “respeite a autonomia da paciente”, como os Quatro Princípios da Ética Biomédica colocam. Claro, estes pressupostos são o que todas nós devemos ter. Mas temos que perguntar quem tem permissão para tê-los. Para quem, em nossa sociedade, esses pressupostos são cumpridos e para quem nossa sociedade impõe o contrário?

Comparem a experiência de Rachel nas mãos do sistema médico com a de Kam Brock. Em setembro de 2014, Brock, uma mulher negra de 32 anos, nascida na Jamaica e residente na cidade Nova Iorque, dirigia uma BMW quando foi parada pela polícia. Foi acusada de dirigir sob o efeito de maconha, e, apesar de seu comportamento e da busca em seu carro não indicarem nada que corroborasse com isso, seu carro foi apreendido. De acordo com uma ação judicial movida por Brock contra a cidade de Nova Iorque e o Harlem Hospital, quando ela compareceu no dia seguinte para recuperar seu carro, a polícia a deteve por se comportar de uma maneira que ela chama de “emocional” e a internou involuntariamente na ala psiquiátrica do Harlem Hospital. (Como alguém que também já foi hospitalizada involuntariamente por se comportar “muito” emocionalmente, meu cérebro identifica algo bastante familiar nessa história). Os médicos consideraram que ela estava “delirando” e sofrendo de transtorno bipolar, pois afirmava que Obama a seguia no Twitter – o que era verdade, mas a equipe do hospital não procurou confirmar. Ela foi então internada por oito dias, injetaram-lhe sedativos à força, fizeram-na ingerir medicamentos psiquiátricos, participar de terapia em grupo e despir-se. Os registros médicos do hospital – obtidos por seus advogados – confirmam isso: o “plano mestre de tratamento” da estadia de Brock diz, “Objetivo: a paciente vai verbalizar a importância da educação para o emprego e declarar que Obama não a segue no Twitter”. Inclui ainda um comentário sobre sua “incapacidade de compreender a realidade”. Na saída, entregaram a ela uma conta de $13.637,10.

A pergunta sobre o porquê dos médicos pensarem que Brock “delirava” quando dizia que Obama a seguia no Twitter é respondida facilmente: nesta sociedade, uma mulher negra e jovem não pode jamais ser importante – e se ela insiste que o é, isso deve necessariamente significar que está doente.

hedva1

3.

Antes de poder falar da “mulher doente” em todas as suas múltiplas formas, devo primeiro falar como indivíduo e me dirigir a vocês a partir de minha experiência particular.

Sou contrária à noção de que a indústria ocidental de seguros médicos me compreende em minha totalidade, ainda que eles pareçam pensar que sim. Eles me rotularam de diversas formas ao longo dos anos, e ainda que alguns desses rótulos tenham fornecido uma articulação que foi útil – afinal, não importa o quanto estamos trabalhando para mudar o mundo, devemos encontrar formas de lidar com a realidade que nos toca – quero primeiro sugerir algumas outras maneiras de entender minha “doença”.

Talvez tudo possa ser explicado pelo fato de minha Lua estar em Câncer na Casa 8, a Casa da Morte, ou de meu Marte estar na Casa 12, a Casa da Doença, Segredos, Tristeza e Autodestruição. Ou, que a mãe de meu pai escapou da Coreia do Norte quando criança e escondeu esse fato da família até alguns anos atrás, quando deixou escapar acidentalmente e, em seguida, rapidamente e de forma reveladora, negou. Ou, que minha mãe sofre de uma doença mental não diagnosticada, que foi ativamente negada por sua família e exacerbada por 40 anos de dependência de drogas, trauma sexual, e hepatite contraída de uma agulha contaminada, e até hoje permanece sem tratamento, enquanto entra e sai de prisões, ocupações ou vive nas ruas. Ou porque fui abusada física e emocionalmente desde criança, criada em um ambiente de pobreza, adicção e violência, e afastada de meus pais por 13 anos. Talvez seja porque sou pobre – de acordo com o IRS, em 2014, minha renda bruta foi de $5,730 (consequência de não estar bem o suficiente para trabalhar em período integral), o que significa que meu seguro-saúde está a cargo do estado da Califórnia (Medi-Cal), que o meu “médico de atendimento básico” é um grupo de médicos assistentes e enfermeiros em uma clínica no segundo andar de um shopping e que dependo de meus vales-alimentação para comer. Talvez isso pode ser resumido na palavra “trauma”. Talvez sou apenas muito sensível, e tive um pouco de má sorte.

É importante que eu também compartilhe a terminologia médica ocidental que usam para me rotular – goste eu ou não, ela pode fornecer um vocabulário comum: “Esta é a língua do opressor”, escreveu Adrienne Rich em 1971, “mas preciso dela para falar com você”. Mas permitam-me propor uma outra língua, também. Na língua nativa americana Cree, o pronome possessivo e o verbo de uma frase são estruturados de maneira diferente do inglês. Em Cree, não se diz “eu estou doente”. Em vez disso, diz-se, “a doença veio a mim”. Eu amo isso e quero prestar uma homenagem.

Então, aqui está o que veio a mim:

Endometriose: uma doença uterina em que o tecido do útero cresce onde não deveria, principalmente na área pélvica, mas também em qualquer parte, pernas, abdômen, inclusive na cabeça. Causa dor crônica, caos gastrointestinal, sangramento monstruoso e, em alguns casos, câncer. Significa que sofri abortos espontâneos, não posso ter filhos e tenho diversas cirurgias pela frente. Quando expliquei minha doença para uma amiga que não sabia o que era, ela exclamou: “Então seu corpo todo é um útero!”. Essa é uma forma de ver, sim. (Imaginem o que os médicos da Grécia antiga, pais da teoria do “útero errante” diriam a respeito). Significa que a cada mês, essas células uterinas renegadas que se implantaram em todo meu corpo, “obedecem sua natureza e sangram”, para citar minha companheira endoguerreira Hillary Mantel. Isso provoca cistos que se rompem, deixando para trás feixes de tecido morto como os restos de pequenas bombas.

Transtorno bipolar, síndrome de pânico e síndrome de despersonalização também vieram a mim. Isso significa que vivo entre este mundo e um outro, criado por meu próprio cérebro que deixou de estar contido por um discreto conceito de “eu”. Por causa desses “transtornos”, eu tenho acesso a emoções incrivelmente vívidas, voos de pensamento e paisagens oníricas, à sensação de que minha mente foi arrasada até se tornar estrelas ou que me tornei nada, bem como a intensos êxtases, arrebatamentos, dores e alucinações apavorantes. Fui hospitalizada, voluntária e involuntariamente, por causa delas, e um dos medicamentos que me prescreveram certa vez quase me matou – ele produz um efeito colateral raro, que faz a pele cair. Outro custa $800 por mês – eu só o tomo porque meu médico me passa amostras grátis. Se quero ter um emprego – algo que este mundo decidiu que tenho que ser capaz de fazer – devo tomar um medicamento antipsicótico que causa perda da memória recente e salivação, entre outros efeitos colaterais sexy. Esses visitantes também trouxeram seus amigos: colapsos nervosos, colapsos mentais, ou como queiram chamá-los, por três vezes em minha vida. Tenho certeza de que eles serão hóspedes em minha casa novamente. Eles causaram tentativas de suicídio (a maioria delas durante estados de dissociação) mais de uma dúzia de vezes, a primeira delas quando eu tinha nove anos de idade. Aquela primeira tentativa só não deu certo porque após engolir um monte de pílulas para dormir, de alguma maneira eu acordei no dia seguinte e fui para a escola, como se nada tivesse acontecido. Não falei a ninguém sobre isso, até minha primeira avaliação psiquiátrica, quando tinha uns 25 anos.

Por fim, uma doença autoimune que continua a confundir todos os médicos que visitei, veio a mim e ainda se recusa a ser nomeada. Como Carolyn Lazard escreveu sobre suas experiências com doenças autoimunes: “As doenças autoimunes são difíceis de diagnosticar. Para a espondilite anquilosante, o tempo médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico é de oito a doze anos. Eu tive sorte, precisei esperar um ano”. Nomes como “EM”, “fibromialgia”, e outras que não me lembro foram despejados pelas bocas dos meus médicos – mas meu seguro-saúde não cobria os exames, nem existe um especialista em meu plano de seguro a menos de 160 km de casa. Não tenho espaço suficiente aqui – algum dia terei? – para descrever como é viver com uma doença autoimune. Posso dizer que ela traz uma fadiga inimaginável, dores o tempo todo, susceptibilidade a outras doenças, o corpo desempenha suas funções “normais” de forma monstruosamente anormal. O pior que a minha traz é herpes-zóster crônica. Por dez anos tive herpes no mesmo lugar em minhas costas, de modo que agora ali tenho o nervo lesionado, o que resulta em uma dor lancinante incessante na pele e uma maçante queimação nos ossos. Apesar de tomar diariamente um medicamento que supostamente “suprime” o vírus da herpes, ela ainda aparece – é meu canário de mina de carvão, o arauto que anuncia as pelo menos três semanas que passarei na cama.

Minha acupunturista a descreve como um pequeno demônio fumegando fumaça preta, espumando por todos os lados, aninhando-se em meus osso.

hedva2

4.

Com todos esses visitantes, comecei a escrever a Teoria da Mulher Doente como uma forma de sobreviver em uma realidade que me parece insuportável, e como uma maneira de dar o testemunho de um eu que não se sente como “meu”.

O estímulo inicial para o projeto da “Teoria da Mulher Doente” e a origem de seu nome, vieram de diversas fontes. Uma delas foi em resposta à Sad Girl Theory (“Teoria da Menina Triste”), de Audrey Wollen, que propõe que patologias historicamente classificadas como femininas sejam redefinidas como formas de protesto para as meninas: eu estava principalmente preocupada com a questão de o que acontece com a menina triste quando – e se – ela cresce. Outro estímulo veio da leitura do fantástico Heroines (“Heroínas”) de Kate Zambrano, que me deu uma coceira para foder por completo com o conceito de “heroísmo”, então quis propor uma figura com qualidades tradicionalmente anti-heroicas – especificamente a doença, o repouso, a inação – como capaz de ser símbolo de uma grande teoria. E outro veio do livro feminista Complaints and Disorders (“Queixas e Desordens”), de 1973, que diferencia a “mulher doente” da elite branca das “mulheres doentias” da classe trabalhadora não-branca.

A Teoria da Mulher Doente é para aquelas que se confrontam com sua insuportável vulnerabilidade e fragilidade todos os dias, e por isso têm que lutar para que sua experiência seja não só respeitada mas, em primeiro lugar, visibilizada. Para aquelas que, nas palavras de Audre Lord, nunca lhes coube sobreviver: porque este mundo foi construído contra sua sobrevivência. É para minhas colegas crônicas. Vocês sabem quem vocês são, mesmo que não lhes tenham pendurado um diagnóstico: um dos objetivos da Teoria da Mulher Doente é resistir à noção de que é preciso ser legitimada por uma instituição, para que possam nos consertar. Vocês não precisam ser consertadas, minhas rainhas – é o mundo que precisa de conserto.

Ofereço isso como um chamado às armas e um testemunho de reconhecimento. Espero que meus pensamentos possam fornecer articulação e ressonância, assim como ferramentas para sobrevivência e resiliência.

E para aquelas de vocês que não estão cronicamente doentes ou deficientes, a Teoria da Mulher Doente pede que estendam sua empatia para o lado de cá. Para nos defrontar, escutar, ver

sick4

5.

A Teoria da Mulher Doente é insistir que a maioria das formas de protesto político são internalizadas, vividas, encarnadas, sofridas e, sem dúvida, invisíveis. A Teoria da Mulher Doente redefine a existência em um corpo como algo que é essencialmente e sempre vulnerável, seguindo o trabalho de Judith Butler sobre precariedade e resistência. Pois esta premissa insiste que um corpo é definido por sua vulnerabilidade, e não temporariamente afetado por esta, a implicação é que se depende continuamente de infraestruturas de apoio para aguentar, e portanto precisamos remodelar o mundo em torno deste fato. A Teoria da Mulher Doente sustenta que o corpo e a mente são sensíveis e reativos a regimes de opressão – particularmente ao nosso atual regime neoliberal, suprematista branco, imperial-capitalista, cis-hétero-patriarcal. É que todos os nossos corpos e mentes carregam o trauma histórico disso, que o mundo em si é o que nos torna e mantém doentes.

Tomar o termo “mulher” como sujeito-posição deste trabalho é um abraço estratégico abrangente e uma consagração ao particular, em lugar do universal. Embora a identidade “mulher” tenha apagado e excluído muita gente (especialmente mulheres não-brancas e trans e pessoas gênero-fluido) optei por usá-la porque ainda representa as desassistidas, as subalternas, as oprimidas, as não-, as des-, as menos-que. Os problemas deste termo exigirão sempre crítica, e espero que a Teoria da Mulher Doente possa à sua própria maneira ajudar desfazê-los. Mas acima de tudo, me inspira usar a palavra “mulher” porque este ano eu vi que ainda pode ser radical ser uma mulher no século XXI. Eu a uso para homenagear uma querida amiga minha que se assumiu como gênero-fluido no ano passado. Para ela, o que mais importava era poder chamar-se mulher, utilizar o pronome “ela”. Não queria cirurgias nem hormônios, amava seu corpo e seu grande pênis e não queria mudar – só queria a palavra. Que a palavra em si possa ser empoderadora é o espírito que a Teoria da Mulher Doente propõe.

A Mulher Doente é identidade e corpo que pode pertencer a qualquer pessoa a quem tenha sido negada a existência privilegiada – ou a cruel e otimista promessa de tal existência – de ser um homem branco, heterossexual, saudável, neurotípico, de classe média ou alta, cis e fisicamente capaz domiciliado em um país rico, que nunca deixou de ter um convênio médico, e cuja importância social é reconhecida em todos os lugares e explicitada; cuja importância e assistência predominam nessa sociedade às custas de todas as outras pessoas.

A Mulher Doente é qualquer pessoa que não tem essa garantia de assistência.

À Mulher Doente é dito que, para esta sociedade, a assistência a ela, e até mesmo sua sobrevivência, não importa.

A Mulher Doente é toda pessoa “disfuncional”, “perigosa” e “em perigo”, “malcomportada”, “louca”, “incurável”, “traumatizada”, “desorientada”, “doente”, “crônica”, “incapacitada”, “miserável”, “indesejável”, todos os corpos “disfuncionais” pertencentes a mulheres, gente não-branca, pobre, doente, neuroatípica, deficiente, queer, trans e gênero-fluido, que foram historicamente patologizados, hospitalizados, institucionalizados, brutalizados, traduzidos como “incontroláveis” e, portanto, tornados culturalmente ilegítimos e politicamente invisíveis.

A Mulher Doente é uma mulher trans negra tendo ataques de pânico quando usa um banheiro público temendo a violência que a espera.

A Mulher Doente é a criança cujos pais tiveram sua história indígena apagada, que sofre do trauma de gerações de colonização e violência.

A Mulher Doente é uma sem-teto, principalmente aquela com alguma doença e sem acesso a tratamento e cujo único acesso a cuidados de saúde mental é uma estadia de 72 horas no hospital do condado.

A Mulher Doente é uma mulher negra mentalmente doente cuja família pediu a ajuda da polícia porque ela estava sofrendo um surto e que foi assassinada sob custódia policial e cuja história foi negada por todos os que atuam sob a supremacia branca. O nome dela é Tanesha Anderson.

A Mulher Doente é um homem gay de 50 anos que foi estuprado quando adolescente e se manteve em silêncio e envergonhado, acreditando que homens não podem ser estuprados.

A Mulher Doente é uma pessoa com deficiência que não pôde ir a uma palestra sobre direitos de deficientes porque esta foi realizada em um espaço sem acessibilidade.

A Mulher Doente é uma mulher branca com doença crônica radicada em um trauma sexual que deve tomar analgésicos para poder sair da cama.

A Mulher Doente é um homem hétero com depressão que vem sendo medicado (manipulado) desde o início da adolescência e agora luta para trabalhar as 60 horas semanais que seu emprego exige.

A Mulher Doente é alguém diagnosticado com uma doença crônica cuja família e amigos sempre lhe dizem que devia se exercitar mais.

A Mulher Doente é uma mulher queer não-branca cujo ativismo, intelecto, raiva e depressão são vistos pela sociedade branca como atributos desagradáveis de sua personalidade.

A Mulher Doente é um homem negro morto sob custódia policial, cuja versão oficial é a de que ele quebrou a própria coluna. Seu nome é Freddie Gray.

A Mulher Doente é o veterano sofrendo de TEPT na lista de espera que leva meses para ver um médico do Departamento de Veteranos.

A Mulher Doente é uma mãe solteira que imigrou ilegalmente para a “terra dos livres”, fazendo malabarismos para manter três empregos para alimentar sua família, achando cada dia mais difícil de respirar.

A Mulher Doente é a refugiada.

A Mulher Doente é a criança abusada.

A Mulher Doente é a pessoa autista que o mundo tenta “curar”.

A Mulher Doente são todas as pessoas que têm fome,

A Mulher Doente são as pessoas que estão morrendo.

E, fundamentalmente: A Mulher Doente é de quem o capitalismo precisa para se perpetuar.

Por quê?

Porque para se manter vivo, o capitalismo não pode se responsabilizar por nos dar assistência, sua lógica de exploração requer que algumas de nós morramos.

A “doença”, como hoje falamos dela, é uma construção capitalista, assim como seu oposto binário percebido, o “bem-estar”. A pessoa “bem” é a que está bem o suficiente para ir trabalhar. A pessoa “doente” é a que não pode ir. O que torna tão destrutiva a concepção de bem-estar como a forma de existência padrão, é que ela inventa a doença como temporária. Quando estar doente é uma abominação para a norma, cuidados e apoio são concebidos da mesma forma.

Cuidados, nessa configuração, são necessários apenas de vez em quando. Quando a doença é temporária, o cuidado não é normal.

Aqui está um exercício: vá ao espelho, olhe seu rosto e diga em voz alta: “Cuidar de você não é normal. Só posso fazer isso temporariamente”.

Dizer isso a si mesma será apenas um eco daquilo que o mundo repete o tempo todo.

6.

Eu costumava pensar que os gestos mais anticapitalistas de esquerda tinham a ver com o amor, em particular com poesia de amor: escrever um poema de amor e entregá-lo a quem você desejava parecia-me uma resistência radical. Mas agora vejo que estava errada.

O protesto mais anticapitalista é cuidar de outra pessoa e cuidar de si mesma. Enfrentar a prática historicamente feminizada – e, portanto, invisível – de dar assistência, alimentar, cuidar. Levar a sério nossa vulnerabilidade, vulnerabilidade e precariedade, honrando, respeitando e empoderando. Proteger-nos mutuamente, estabelecer e praticar comunidade. Uma irmandade radical, uma sociabilidade interdependente, uma política do cuidado.

Porque, uma vez que estejamos todas doentes e confinadas à cama, compartilhando nossas histórias de terapias e conforto, formando grupos de apoio, testemunhando histórias de trauma alheias, priorizando o cuidado e o amor de nossos corpos doentes, doloridos, caros, sensíveis e fantásticos, e não haja ninguém disponível para o trabalho, talvez então, finalmente, ouviremos o urro do tão necessário, muito esperado e foderosamente glorioso fim do capitalismo.

Este texto foi adaptado da palestra “My Body Is a Prison of Pain so I Want to Leave It Like a Mystic But I Also Love It & Want It to Matter Politically” ( “Meu corpo é uma prisão de dor e portanto quero abandoná-lo como uma mística mas eu também o amo & quero que importe politicamente”), apresentada na Human Resources, promovido pelo Women’s Center for Creative Work, em Los Angeles, no dia 7 de outubro de 2015. O vídeo está aqui.

Textos Recomendados

Arendt, Hannah. The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958. [em portugay aqui]

Berkowitz, Amy. Tender Points. Oakland: Timeless, Infinite Light, 2015.

Berlant, Lauren Gail. Cruel Optimism. Durham: Duke University Press, 2011.

Brown, Stephen Rex. “Woman Held in Psych Ward over Obama Twitter Claim.” NY Daily News. March 23, 2015.

Butler, Judith. “Vulnerability and Resistance.” REDCAT. December 19, 2014.

Cvetkovich, Ann. Depression: A Public Feeling. Durham, N.C.: Duke University Press, 2012.

Ehrenreich, Barbara, e Deirdre English. Complaints and Disorders; the Sexual Politics of Sickness. Old Westbury, N.Y.: Feminist Press, 1973.

Fassler, Joe. “How Doctors Take Women’s Pain Less Seriously.” The Atlantic, October 15, 2015.

Federici, Silvia. Caliban and the Witch: Women, the Body and Primitive Accumulation. New York: Autonomedia, 2003. [aqui em espanhol]

Halberstam, Jack. “Zombie Humanism at the End of the World.” Lecture, Weak Resistance: Everyday Struggles and the Politics of Failure, ICI Berlin, May 27, 2015.

Harney, Stefano, e Fred Moten. The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study. New York: Minor Compositions, 2013.

Hedva, Johanna. “My Body Is a Prison of Pain so I Want to Leave It Like a Mystic But I Also Love It & Want It to Matter Politically.” Lecture, Human Resources, Los Angeles, October 7, 2015.

Lazard, Carolyn. “How to Be a Person in the Age of Autoimmunity.” The Cluster Mag. January 16, 2013.

Lorde, Audre. A Burst of Light: Essays. Ithaca, N.Y.: Firebrand Books, 1988.

Lorde, Audre. The Cancer Journals. Special ed. San Francisco: Aunt Lute Books, 1997. [em espanhol aqui]

Mantel, Hilary. “Every Part of My Body Hurt.” The Guardian, June 7, 2004.

Miserandino, Christine. “The Spoon Theory Written by Christine Miserandino.” But You Dont Look Sick: Support for Those with Invisible Illness or Chronic Illness. April 25, 2013.

Rich, Adrienne. “The Burning of Paper Instead of Children.” In Adrienne Rich’s Poetry and Prose: Poems, Prose, Reviews, and Criticism, edited by Barbara Charlesworth Gelpi. New York: W.W. Norton, 1993.

Salek, Yasi. “Audrey Wollen on Sad Girl Theory.” CULTIST ZINE. June 19, 2014.

Starhawk. Dreaming the Dark: Magic, Sex, & Politics. 2nd ed. Boston: Beacon Press, 1988.

Thurman, Judith. “A Loss for Words: Can a Dying Language Be Saved?” The New Yorker, March 30, 2015.

Vankin, Jonathan. “Kam Brock: The Reason They Threw Her In A Mental Ward Was Crazy — What Happened Next Was Even Crazier.” The Inquisitr News. March 24, 2015.

Zambreno, Kate. Heroines. Semiotext(e) / Active Agents, 2012.