Kẽchĩtxo

Pedro Cesarino, em Oniska:

O romeya Armando Cherõpapa amanheceu muito doente. Para mim, uma gripe forte, talvez pneumonia. Já havia estado doente há uns dias atrás e, por conta disso, desceu do Paraná para ficar em Alegria, onde há muitos kẽchĩtxo, além de mim e dos remédios de estrangeiro. Dou antibióticos, dipirona e vitaminas. Para os kẽchĩtxo, kãpo, o duplo da rã Phillomedusa bicolor, e rome vaká, o duplo do tabaco, é que estão causando doenças no velho. Na noite anterior, Cherõpapa havia cantado iniki (cantos dos espíritos) e o duplo do tabaco causou-lhe mal. Logo cedo, os velhos kẽchĩtxo Memãpa e Tekãpapa cantam shõki [soprocantos, cantos de cura] sobre Cherõpapa, enquanto rapazes batem ayahuasca sob um tapiri, depois cozinhada por Inõpa em sua casa, a fim de reabastecer as reservas da maloca. Venho com remédios para Cherõpapa, depois que acabam de cantar shõki (soprocantos, cantos de cura). Pergunto se ele comeu e diz que não, que só beberia café feito por mim. Passam alguns instantes. Cherõpapa, fraco, levanta-se para urinar. Quando retorna e deita na rede, seu corpo começa a estrebuchar. “É yove?”, pergunto a Tekãpapa, que está sentado ao meu lado nos bancos paralelos. “Não, yochĩ”, responde. O yochĩ começa a cantar, levanta o corpo do velho, que sacode a rede frenético e quase cai para trás. “É vina yochĩ” (yochĩ marimbondo), constata Tekãpapa com preocupação e, junto a seu irmão Memãpa, passa imediatamente à seção familiar (shana naki) para cantar shõki sobre o pajé. Inõpa, o filho de Tekãpapa, vai ao rádio relatar à aldeia Paraná o que está acontecendo. A velha Võsĩewa, sentada ao meu lado, explica que os yochĩ, espectros agressivos, também cantam iniki, assim como os espíritos yove. Cherõpapa está suscetível aos assédios dos yora vaká, os espectros perigosos de pessoas mortas. Os espectros de parentes mortos são “roubadores de duplos” (yochĩ vaká viaya), em especial a mãe, o tio materno, o pai e o avô materno do sujeito: são duplos/espectros que retornaram do Caminho-Morte e ficam aqui atrapalhando os viventes, dizendo “kawã, mia chinãvrãi, kawã!”, “vamos! você está pensando em nós, vamos embora!” E a pessoa adoece.

Estamos na segunda noite da doença. Chegam alguns caçadores que haviam saído para o mato. Há muitos kẽchĩtxo de outras malocas sentados no kenã (bancos paralelos localizados na entrada principal da maloca), que vieram por causa da doença de Cherõpapa. O jovem romeya Venãpa deita em sua rede amarrada no alto das pilastras da maloca. Na seção familiar (shanã naki), Cherõpapa-carcaça, deitado, canta os iniki dos agressivos yochĩ. Instantes depois, o vaká de sua mãe é quem canta: agora, não mais o da mãe-espectro que o atordoava, mas sim o aspecto melhor da outrora pessoa-mãe, que vêm para ajudar o filho doente. Depois, é Kana Ina, o duplo do falecido João Pajé, que canta nele: está (em sua maloca/corpo) cuidando dele (sua maloca/corpo), assim como instantes antes fizera sua mãe.

Antes disso, mulheres yochĩ haviam entrado no corpo/maloca de Cherõpapa, encheram sua barriga e o fizeram doente. Uma série de yovevo vieram depois para restaurar a ordem em sua casa. Entre eles, apareceu o poderoso Kana Panã, que foi chamado ontem mas, como vinha de longe, chegou apenas agora. Às nove da manhã deste dia, enquanto descansava, Cherõpapa sonhou que havia montes destas mulheres yochĩ em seu corpo/casa, todas fazendo sexo (aka) entre si. Tentavam agarrar Cherõpapa, pegavam em seu pênis, em suas nádegas, agarravam seus braços. Acordou doente. Depois veio um yove e arrumou sua maloca/corpo. Neste mesmo dia, Cherõpapa já podia sentar na rede e cantar iniki. Os yove já conversam com os presentes através dele. Um deles, no próprio Cherõpapa, vêm dar notícias sobre ele mesmo: os vei yochĩ (‘espectros-morte’) estão expulsos e não entrarão mais (na maloca/corpo de Cherõpapa).

Na noite seguinte, levei creme de leite com banana ouro madura para o jantar na maloca, para que todos comessem. Cherõpapa, que já estava curado, também comeu. De madrugada, enquanto eu dormia em minha casa, txashõ vaká (o duplo do veado) veio e roubou o vaká de Cherõpapa, como descobriria apenas na manhã seguinte. Txasho é uma categoria que inclui boi, vaca, veado e carneiro – todos animais interditos, ao menos em princípio, para o romeya. Creme de leite vale aí, portanto, como uma extensão dos bichos indesejados. Durante a noite, Cherõpapa berrava – era o vaká do veado quem berrava nele. Quem estava lá era só seu shaká (sua carcaça), seu corpo (kaya, yora) com suas sombras (os outros yochĩ e vaká alienáveis apenas na morte). O verõ yochĩ e os chinã nató foram embora, levados pela gente-veado. Cherõpapa estava praticamente morto (vopia), isto é, incompleto. Os kẽchĩtxo (Tekãpapa e aprendizes) cantaram shõki durante a noite inteira. Enviaram seus espíritos yove auxiliares para encontrar os duplos de Cherõpapa que, assim, amanheceu bem. Fiquei sabendo da doença na manhã seguinte por alguém, que conversava calmamente comigo, encostado num tapiri antes de entrar na maloca onde tomaríamos o café da manhã: “Cherõpapa quase morreu essa noite”, “Mesmo? O que aconteceu?”, “Foi o doce que você ofereceu para ele”. “Diarréia, infecção alimentar”, pensava eu, preocupado com a situação. Logo em seguida, quando eu entrava tenso e sem jeito na maloca para comer, Cherõpapa me disse, sem sobressalto algum, que estava bem, mas não tinha conseguido dormir direito porque teve muita tosse e catarro (oko ãtsaka) e estava sem a bombinha broncodilatadora que eu havia levado comigo. Noutras vezes, beberá sem problemas creme de leite misturado com frutas, sem que nada lhe aconteça.

“Biologia de escola não explica nada”

De uma hóspede vitalícia do hotel:

A vizinha foi operada. Tinha hérnia, aproveitou e fez tudo. O marido disse que ela não gosta de falar que é bariátrica. Já vi muita gente que fez e está engordando loucamente. Mas os médicos adoram falar que é coisa simples, enchem a cabeça das pessoas pra elas fazerem. E, meu, o cara que fez medicina, não você, aí você acha que se ele tá falando deve ser verdade. Sabe o que é absurdo? A gente tem aula de biologia, mas não sabe onde fica nada. Se tem dor, não faz ideia do que tem ali dentro. Estou até hoje tentando entender a cirurgia que fizeram em mim, em que o cara mexeu, onde eu sinto e por quê. Ainda que esse ortopedista e a fisioterapeuta explicam tudo o que eu pergunto, como funciona. Ainda têm toda paciência, o que não é normal. Mas ainda estou tentando entender um joelho. Biologia de escola não explica nada… Agora que eu tô aprendendo direito onde fica todo aparelho digestivo, fígado, baço, intestinos… a gente vê desenhinhos lindos, mas não aprende que rim fica na lombar… essas coisas…

Silimarina Composta

Entrevista Transdisciplinar Queer Cripple Aleijada Def: Games of Crohn – Diario de una Internación

Leo Silvestri dixit:

A pedido de Sandra, que conheci na turnê “Games of Crohn – Diario de una internación”, na apresentação realizada em Barcelona no espaço das companheiras trabalhadoras sexuais da Aprosex, convidamos muitas companheiras defs e trabalhadoras sexuais para participar desta reunião de reflexões.

Sandra Estragués:

A partir de sua experiência no hospital onde esteve internada por causa da condição de Crohn, quais são os fatores que você diria que afetam de forma especial e diferenciada as mulheres – as biopoliticamente designadas “mulheres” – e que não afetam os homens cis heterossexuais? São os entornos hospitalares, como você diz em seu livro, “espaços de feminização forçada”?

Realmente não sei o que não afeta os homens, porque por sorte não sou um deles; mas comprovou-se que qualquer dor, especialmente na região corporal estratificada como reprodutivo-digestiva, expressada por uma corporalidade “mulher”, cis ou trans, costuma ser desconsiderada porque o mito da “histérica” freudiana que mente continua operando, de forma consciente ou não, no pessoal médico. Com isso o acesso à analgesia é sempre mais restrito quando se porta um útero ou uma feminilidade que costuma ser associada a um útero. Creio que o mundo é um espaço de feminização forçada, não só o hospital. Mas a infantilização da mulher no dispositivo hospitalar se faz notar com força: sempre nos tratam como menininhas com capacidade reduzida de compreensão, a quem se fala no diminutivo porque não entendemos bem sobre o que estão nos falando e nem terminam de explicar “para que não fique impressionada”. Como narro no livro, o peso e o que consideram um peso “normal” também tem relação com os padrões de beleza hegemônicos.

Em um trecho de seu livro você diz “A doença normaliza. Ela torna mulher, humana, se você se entrega, no pior sentido que essa palavra pode ter. Ela faz de você uma pessoa pouco autônoma, vítima […]”. Podemos deduzir, a partir de suas palavras, que o aparato médico é um reprodutor de violência sobre nós, um potente agente “normalizador”?

É um dos dispositivos de normalização e correção mais coercitivos com que contamos nos últimos anos. Afinal de contas, muitas vezes chamam “curar” o que pura e simplesmente é uma operação, em geral a ponta de bisturi, para ajustar até fazer encaixar uma corporalidade que ultrapassa os estreitos limites das identidades prescritas. O dispositivo hospitalar subjetiva até seus médicos, não só suas pacientes. Não está lá nem para companhar nem para dar assistência, nem também para curar, porque muitas vezes os quadros clínicos não são curáveis, porque não são doenças. Apenas são. A medicina se beneficiaria muito se tivesse um papel de acompanhamento e empoderamento, que atualmente não tem, especialmente para nós que necessitamos de suportes técnicos específicos. E podemos dizer o mesmo dos feminismos. Já não têm mais. Mas pelo lado da práxis médica, o mundo está dividido entre saudáveis e doentes e isso gera muitas vantagens, em especial para aqueles que detêm o protocolo que define quem fica de um lado e quem fica do outro. Para mim o aparato médico é o braço armado da biopolítica. Se você se descuida, podem ser pessoas realmente perigosas, dotadas, por um lado, do saber/poder do qual ninguém desconfia ou questiona e, por outro, das armas/ferramentas. Não tenho uma relação harmoniosa com a instituição corporativa médica. Tento ir pouco e me relacionar o menos possível só com pessoas específicas com quem, sim, podemos trabalhar. Em geral me parecem pessoas embrutecidas por sua maneira de adquirir conhecimentos e por sua disciplina com pouca capacidade de empatia, e uma soberba inédita, apesar de seu embrutecimento.

Em seu livro você também afirma “As feministas continuam pensando que são melhores que as trabalhadoras sexuais e as defs”. Você acredita que o feminismo abolicionista reproduz os argumentos do capacitismo, quando essas feministas se consideram “melhores” que as trabalhadoras sexuais, partindo da ideia do corpo como algo sagrado?

O feminismo hegemônico foi historicamente capacitista como quase tudo até a atualidade – em seu essencialismo, utilizando argumentos do dispositivo médico corretivo-normalizador para ditar quem éramos as mulheres e quem não era (primeiro foram as lésbicas, depois foi a vez das trans e amanhã, quem sabe, talvez as deformadas). Nos dias de hoje encontramos frases feministas tais como “a transexualidade é parte da dominação masculina”. Sem dúvida as trabalhadoras sexuais, assim como o “coletivo de diversidade funcional”, isto é, nós as defs/aleijadas, somos um exemplo contundente de que a dissidência não é necessariamente sexual, e que muitas vezes, como acontece com o véu na Europa, o que aparentemente é o epítome do tradicionalismo conservador (assim como essa imagem da suposta beleza hegemônica da trabalhadora sexual, que é sempre bastante mítica e quando se desce à realidade a coisa não é bem assim) na realidade tem potências contestatárias em confronto contra a ordem estabelecida (como o véu dentro da disputa conta a hegemonia ocidental). Atos de confronto e desobediência, inclusive sem o saber, o que me parece ainda mais fascinante. Devir Antígona.

Bárbara G. F. Muriel:

Qual é, para você, a potência política da dor? E das nossas cicatrizes?

Uma pensadora brasileira, Suely Rolnik, fala de “corpos vibráteis”. Acredito que somos isso: corpas que se agitam, vibram, estremecem, fendem-se, gritam, fazem ranger o maquinário do normal. Não concebo, desde antes de meu diagnóstico, uma vida sem dor. Não consigo pensar em nada pior que a não-dor. Recordemos que a dor não é o sofrimento e que a dor, como foi longamente estudado desde Sade, Genet ou Foucault até o grupo Samois, pode nos lançar em abismos insondáveis de extremo prazer ou autoconhecimento. Se você me permite ser poética, eu diria, citando o verso do poeta irlandês Arthur O’Shaughenessy, que somos quem movemos e agitamos o mundo. A revolução é das frágeis sencientes cuja “saúde” tão vulnerável tem a potência de fomentar uma melhor escuta do existente e da vida. Caso contrário, será simplesmente publicidade para conseguir uma melhor posição social ou pornô inspiracional. Fazer da dor física, do vazio existencial, uma experiência política é o desafio. Creio que é disso que fala Games of Crohn tanto quanto outras produções ou criações de corpos vibráteis, como as suas na área das artes visuais, por exemplo. Doente e anormal são, para mim, denominações feitas em referência a um limite que me circunscreve no entorno ou contra a normalidade. É claro que uso esses conceitos quando é necessário incomodar. Mas dentro de mim não acredito nisso. Convivo com uma gata que é quase cega e surda como uma parede. Não tem diagnóstico, portanto, apesar de ser muito particular aos meus olhos, ela simplesmente existe uma vida prazerosa sem perceber que não vê ou não ouve. Sua vida é assim. E me parece que por isso mesmo (e não apesar disso mesmo) vive não só muito alegremente, como desdobrou uma grande quantidade de potências: por exemplo, não teme o barulho da metrópole onde vive, não se assusta. Sua suposta incapacidade se vê como uma adaptação. Creio que muitas de nós poderíamos ser como a Elliot, a gata surda-cega. É o modelo social que nos impede. Como já disse por aí, sinto que uma boa parte de mim não participa deste banquete sem piedade chamado humanidade, ama e soberana de tudo o que existe, que aplaina e asfalta a rodovia do progresso, e celebro isso, celebrarei sempre, não importa o quanto doa, porque qualquer coisa que me faça menos humana (entendendo-se por humano esse ideal regulatório de perfeição e normalidade que ninguém resiste e por humanismo essas soberanias submetidas contra as quais nos advertia Foucault em Microfísica do Poder) me cai bem e me da alegria, isto é, incrementa minhas potências de agir ainda que às vezes tenha que estar quieta, ainda que no ínterim tenha que fazer terríveis concessões.

Miriam Vega:

Nem toda def carrega implícita uma dor física em sua corpa, e nem toda corpa que dói é considerada def pelo sistema imperante. Como você acha que este vazio afeta o interior da subjetividade que se reconhece como def? Como o sistema representa o corpo def?

O capacitismo cria seu próprio modelo estigmatizador em ambos os sentidos da deficiência. Só são defs as pessoas com as chamadas deficiências múltiplas e as consideradas com suas capacidades intelectivas devastadas, como tive que escutar de uma professora especializada em deficiência para referir-se a alguém surdo e cego. Portanto, se você pode se movimentar, se não está em cadeira de rodas, e não finge uma certa imbecilidade, você não é def, invisibilizando toda uma série de fatores com suas necessidades específicas que não são visíveis a primeira vista. Estamos realizando com Mai Stansauger, com quem fizemos o documentário do Crohn, uma série de vídeos que se chama Mutantes y Orgullosas sobre condições invisíveis: endometriose, ostomia, esclerose múltipla, HIV, diferentes diagnósticos psiquiátricos e Crohn. Toda essa gama de pessoas que em muitos casos são defs sem documentos, cidadãs de segunda de uma cidadania de saúde já subalterna. Este fenômeno de produzir, através da opressão, um estigma que por sua vez nega importância e existência àquelas pessoas não estigmatizadas também se observa frequentemente em outros fenômenos como o estupro ou o aborto: enquanto seguirmos pensando que o estupro só existe quando ocorre no meio da noite, onde um desconhecido te dá uma paulada na cabeça e te arrasta para um descampado, negaremos a existência de quadros muito mais sutis, infrafamiliares, com gente de confiança, todo tipo de abusos que muitas vezes dificilmente são detectáveis até para a pessoa que os sofre, que só os verifica em seu mal-estar. E assim também com o aborto, que é considerado um descuido ou má sorte e não um risco ou um efeito colateral intrínseco a toda relação penetrativa-coital onde estão envolvidos líquidos seminais.

Não acredito nas olimpíadas da opressão, por isso não vale a pena competir para ver quem sofre mais a opressão capacitista e sim detectar melhor quem se beneficia com o regime e como desmantelá-lo. Do mesmo modo não acho que vivo melhor porque me desloco sobre minhas duas pernas e não sobre umas próteses de carbono ou uma cadeira de rodas. Também não creio que existam quadros ou condições mais sofridos que outros. Segundo quem tal ou qual vida é pior que a outra? Não me consta que ter maior capacidade de movimentos torne uma vida mais rica só porque há um mundo feito para pessoas com certas características e não outras. Creio que é necessário nos juntar, nos encontrar no que temos em comum nesta forma realmente divergente de habitar o mundo e visibilizar os pontos de encontro: como se explica no famoso vídeo de Sunaura Taylor com Judith Butler, os crimes de ódio que ainda ocorrem contra as populações cujas expressões de gênero e desejo excedem os ditames da heterossexualidade se baseiam em como as pessoas são vistas, ou se movem ou se deslocam, tal como acontece com nossa comunidade aleijada ou com o coletivo de trabalhadoras sexuais.

Neste livro você formula um diário que lhe sustenta durante a internação e a recuperação de seu corpo, inclusive poderíamos falar que a palavra é formulada como uma prótese que te mantém para não te ver cair. Mas por outro lado poderíamos dizer que seu princípio ativo funciona com sua leitura, com a responsabilidade que o corpo leitor adquire para entender que este livro não tem o propósito de contar para equilibrar o excesso, mas de eriçar consciências e de fazer máquina que modifique e esbofeteie o corpo capacitista. Com tudo isso me surgem várias perguntas: como fazer o corpo capacitista entender que o que impera não é a terapia, mas sua maneira de proceder?

Adoro as suas perguntas. Antes de tudo, obrigada. Eu não quero fazer ninguém entender nada. Quem puder sentir conosco, que sinta, o resto, sinto muito, rezarei a Baphomet para que fiquem bem. Ou como dizia nosso velho e querido comediante Fernando Peña, “desejo a todos que adoeçam de uma doença terminal, mas não morram”… ou algo assim. Ultimamente ando desejando muito que as pessoas adoeçam. Vai depender de sua maneira de sentir ou entender “a doença” se me dirão obrigado ou me mandarão cagar. Mas não creio que possa haver diálogo com quem se beneficia de nossa opressão. Assim como as afrodescendentes e outras corpas feitas sob os efeitos da opressão branca não se sentam para pensar como fazer branquinhas antirracistas como nós entenderem, mas sim como desbaratar o regime.

A partir de seu posicionamento de professora, de querer compartilhar conhecimento, de ensinar paradigmas úteis, você acredita que se deve com o foco no discurso fazer entender o outro corpo ou, pelo contrário, é melhor investir forças em outras questões que elevem nossas potências?

Meu trabalho docente é um trabalho vivível. Simplesmente isso. Se eu soubesse, seria eletricista. Não há nada mais por trás disso. Lamento não ter pensado em ser puta antes, queria ter sido trabalhadora sexual bem jovem por muito dinheiro, quando ser magra e estar hiperdepilada não me custava tanto esforço.

Recomendo que sempre o esforço e o afã estejam orientados para o incremento da própria potência. Como a potência só se incrementa compondo com outros corpos (não necessariamente humanos), então nunca se está inteiramente só ou isolada e graciosamente se dá a volta no individualismo. Devemos repelir com suma força a tentação de ajudar os outros e fazer o bem, de fazer alguém entender algo. É um lugar não só infrutífero como também problemático, como de púlpito: atrás dessa função pseudopedagógica bondosa, que nada tem a ver com a capacidade ético-afetiva, se encontra Hitler jogando bridge com a madre Teresa de Calcutá. Quem queira sentir, que sinta. Os chamados estão destinados a quem pode sentir, e o devir é sempre minoritário.

Qual a sua opinião sobre a arteterapia e a prática do arteterapeuta? Até quando vamos continuar infantilizadas?

Nem sei o que é, e pelo jeito que soa, parece que não me interessa. Em princípio desconfio da arte, exceto que seja ofensiva e quando é muito ofensiva, pois aí já não é considerada arte em nosso mundo atual. Na realidade desconfio de tudo o que não ofenda. Na verdade, não sei te dizer até quando. Só sei o que dizia Beauvoir: o opressor não seria tão forte sem a cumplicidade do oprimido. Se bem que pode haver usos estratégicos desse infantilismo, creio que é bom não acreditar no jogo que se joga para ganhar um lugar. Quando você consegue que sua interpelação capacitista lhe dê uma única existência, cagou. O devir “menina” não tem nada a ver com ser uma eterna menininha por ser def. Como o coletivo def se encarregou de desenvolver ad nauseam nos últimos tempos todas as corpas que assim desejem devem ter acesso ao mundo dos prazeres corporais, um dos quais fundamentalmente é o exercício da sexualidade. Não tenho soluções nem respostas, mas me dou conta que as pessoas Down, fala dizer alguém, merecem trepar quando assim desejarem, como qualquer outra pessoa. Especialmente as neurodivergentes que ficaram para trás por ser sempre consideradas eternas querubinas assexuadas. Não tenho ideia de como, mas sei que é necessário. Talvez tivéssemos que perguntar a elas para ver o que têm a nos dizer. Mas cada vez que alguém tenta abordar esses temas, assim como a sexualidade infantil, aparece o anjo protetor da infância, essa invenção do capitalismo industrial ao lado da família nuclear, para nos calar com seu futurismo reprodutivo e já não se pode dialogar.

Volto a reler algumas páginas de Games of Crohn para debruçar-me sobre o termo “paciente”. Tenho arrepios quando este termo é explorado a tal ponto, que parece que o comportamento que se espera do corpo que experimenta algum tipo de enfermidade é algo que poderíamos definir como a máxima submissão antes de ser agredido fisicamente. Qual sua opinião sobre toda essa violência intrínseca invisibilizada e que aos olhos do não def pode parecer um delírio? Você poderia nos falar desta expropriação do corpo?

O dispositivo médico produz o corpo paciente, o objetifica, até a posição para examinar é ideal para a prática de auscultar e apalpar, mas não para o corpo que é tratado como paciente, do grego pathos, sofrer, que por sua vez deriva de patheuomai, ser penetrado analmente, ser infantilizado. Devemos fazer nossas entradas hospitalares com técnicas para repelir essas investidas que nos produzem como pacientes, isto é, acatadoras acríticas do poder médico. E se não podemos sós, coisa que perfeitamente pode acontecer, devemos preparar outras para que nos apoiem e acompanhem quando nós mesmas não podemos fazer. Se vamos nos empenhar para fazer alguém entender algo, que seja às amigas que nos levam até a plantonista, para que obriguem – como for – o pessoal médico a nos dar a morfina antes que caiamos desvanecidas no delírio da dor. Para as que estamos obrigadas a passar tempos internadas, temos que recordar que não estamos à disposição de quem pratica. Como a prisão, o hospital também é um espaço de luta, não um paraíso neutro.

Tendo chegado a este ponto de estigmatização do corpo “doente”, talvez tivéssemos que começar a nos preocupar por todos esses corpos que saíram prejudicados do sistema médico, econômico, político e social. Ocorre-me a fantasia, porque vejo isso como uma necessidade, de criar espaços que ajudem esses corpos “doentes”, não para saber gerir sua doença mas para restabelecer sua psique depois do dano e do grau de violência que passaram depois de se relacionar com o corpo saudável. Em seu caso, como você experimentou estas situações de violência? Neste processo de Crohn, o que mais lhe prejudicou: a doença ou a relação com o ser humano e como se relaciona com a doença?

Aonde você quer restabelecê-la? Tenho vontade de lhe dizer que nasci prejudicada. Mas, outra vez, supor o dano é supor que há algo perfeito e a verdade é que não há condições em estado selvagem. Somos operações de diagnóstico. As máquinas só funcionam se quebrando. Para mim o Crohn não é uma doença. Não sinto que me prejudique, ainda que, bom, indubitavelmente tenha alguns efeitos, mas isso significa que meu corpo vive dessa maneira, é a maneira de funcionar que ele tem. Abraço amorosamente meu destino, amor fati. E finalmente, o pior mal é viver no mundo, mas não meu corpo e o que está nele. O sutil equilíbrio entre não me deixar subjetivar vítima e confessar que me foi causado um dano. Não tenho solução mas sei me dar conta que a culpa não é do Crohn, e de fato ele me deu tanto que hoje eu já não poderia renunciar a ele. Ele me deu que estou sendo agora. E isso eu não mudaria.

Uma das singularidades deste livro foi o grau de verdade com que ele funciona, a omissão de filtros para não cair na diplomacia, apostar em um texto cru ainda que ofenda e doa. Parece que somos capazes de absorver índices desproporcionais de violência, imagens onde se derrama carne e sangue, praticar o desafeto com cada gesto opressivo. Mas por outro lado estamos nos tornando intolerantes com a palavra, com a mensagem de whatsapp que não levam emoticon de sorriso porque senão parece que está dando bronca… parece que não se pode dizer nada.

Como li Paco Vidarte, devolver ao mundo merda e peidos, cagar no pau, se vou viver com cólicas porque o mundo está como está, então todas vamos ter gastroenterocolite à noite. Eu me dedico a isso. Sinceramente, não há nada mais restaurador para mim que um bom e querido deboche. E a resposta da oprimida não é o mesmo que o deboche insider, que a violência ou o bullying do opressor. Jamais entregar uma imagem reconciliada ao público leitor. Se a literatura é um espelho onde se contemplar bonita, não faço literatura. Escrevo para incomodar quem está cômodo e para dar conforto a quem se incomoda com essa comodidade.

Se eu tivesse que tirar uma contraleitura de Games of Crohn, me atreveria a dizer a importância e a decepção que carrega a palavra e o significante amizade como fio condutor que move parte desta obra, a deserção como lugar para se cuidar e o saber dar até onde é possível sem que te diminuam. Por tudo isso, eu gostaria de lhe perguntar em que momento vital você se encontra em relação à amizade? Você considera que o Crohn é uma aliada para lhe ajudar nesta ação de fechar e abrir a alma para outros corpos?

No pior momento possível! E celebro isso, fiel a meu estilo, dançando a noite toda com aquilo que veio a mim. Sinceramente, já não me conto historinhas idealizadoras sobre isso. E me encontro mais forte que nunca na solidão, mais à vontade que nunca comigo mesma. Encontro-me aberta às surpresas, mas com cautela, administrando doses baixas mas intensas de sociabilidade, tudo o que pode ser retirado da comunidade terrível e envenenada. A vida passa em um peido, e não fizemos o que gostamos de fazer. Só nos juntamos para socializar. E isso para mim não é vida.

Bárbara G. F. Muriel:

Você acha possível tecer aliança a partir dos feminismos?

É possível e é fundamental voltar a construir um feminismo (ou como o queiramos chamar, que para mim dá na mesma como o chamemos) que saia dos esquemas capacitistas e humanos de se manifestar (muitas de nós não poderemos ir amanhã à passeata porque se tomamos chuva o sistema imunológico nos manda a conta, por exemplo). Continuo acreditando na figura incômoda, incorrigível, híbrida de ciborgue, transpassando com o corpo dimensões estanques e exercendo as políticas do devir. Quanto dos feminismos originais essas incômodas alianças ilegítimas terão, eu ignoro. Pelo momento onde vivo, o feminismo ainda não se deu conta que continuar demandando ao Estado Nazional uma lei de aborto legal no hospital com justificativas do tipo “gravíssimas malformações do feto” é um erro capacitista e uma reafirmação muito perigosa da biopolítica que patologiza processos como parir ou abortar, que nada têm a ver sequer com um quadro clínico: nem o hospital é especialmente melhor para nada que não seja uma doença, como abortar ou parir (de fato é um lugar perigoso, de judicialização e de violência para as mulheres) nem é necessário colocar justificativas eugenistas para reafirmar a autonomia corporal de interromper um processo biológico não desejado. Aqui – e provavelmente em lugar nenhum – o feminismo não se deu conta, nem quer se dar, que a ciência surge a partir do maior massacre feminicida da história deste planeta, que se chamou caça às bruxas, em cujas fogueiras se queimaram as revoltas camponesas e indígenas tanto da Idade Média europeia quanto nas regiões autóctones da chamada América Latina (nem nome próprio temos) e seus conhecimentos ancestrais. Ou que a obstetrícia, especificamente, tem uma genealogia de tortura até o inenarrável de mulheres africanas escravizadas por senhores cientistas brancos sádicos. Estes feminismos vivem sob o jugo do paradigma moderno da ilustração e a única oposição a isso é um bando de autogestionárias da ignorância que ou te responsabilizam por sua condição por você ter vivido de tal ou qual maneira ou querem reduzir o dano produzido por uma ELA com um chá de sei lá o quê. Por isso se canta “aborto legal no hospital”.

Mas voltando ao aborto, o simples desejo deveria bastar para que fosse feito como e onde se quisesse, sem perigo de ir presa. O feminismo deveria lutar para fazer a vida de todas, incluídas as malformações tipo o polegar opositor da macaca Lucy, vivíveis e não construir a ideia de que sob certas pautas, ou certas razões, abortar está bem. Em todo caso, deveríamos nascer só as que vamos ser consideradas “malformadas”, para ver se o capitalismo pode subsistir quando sejamos só nós, as que não podemos trabalhar dentro dele. Só proponho uma distopia tão ridícula como isso de que tem que haver uma justificativa para abortar ou que ter uma cria “malformada” (insisto com a palavra porque ficou na redação do projeto de lei apresentado pelo feminismo na Argentina sem que ninguém dissesse nada nas plenárias) é pior que outra coisa. Tal como vejo, ter prole é sempre uma fatalidade à qual deveríamos todas nos opor. Mas sou muito clássica. Este feminismo caiu em desuso.

Shukare Otero:

Games of Crohn é tanto o nome do seu livro como do documentário que você filmou junto com Mai Stansauger. Que aspectos narrativos, filosóficos, poéticos, etc., o formato audiovisual permitiu desenvolver e quais o formato escrito permitiu? Que relação houve entre ambos?

Não muita, para lhe ser honesta. Exceto que a capa do livro e o documentário estiveram a cargo de minha amiga Mai Stansauger. Mas não foi muito pensado. Não sei se há relação além estar unidos pela narrativa sobre uma condição e por suas fazedoras. O documentário, apesar de dialogar como viver com Crohn depois de estar internada, saiu antes. Ao contrário, o livro, que ia sendo escrito em tempo real, saiu depois.

A escrita é uma ferramenta para o processo de ressignificação e empoderamento, para extrair potências daquilo que poderia nos entristecer?

Para mim é, não sei se pode ser universalizável nem para todo mundo. Para mim, escrever é uma maneira de sobreviver, sempre foi. Escrever o gênero que for. Por isso é paradoxal, porque se minha potência de agir tivesse ficado completamente obturada não teria poderia tê-lo feito. Cada corpa deve encontrar sua máquina de guerra contra as paixões tristes.

O texto vai indo e vindo de uma linguagem mais íntima, mais informal, a mais poética, a mais filosófica. O que te leva a se mover entre estas linguagens a cada momento?

Suponho que sou assim… Em minha vida em geral também. Por um lado, adoro a linguagem coloquial que utilizo em minha cotidianidade, inclusive para falar de filosofia, mas, ao mesmo tempo, me interessa abordá-la a partir de seu jargão específico sem me perder da palavra poética que no final creio que é a que desautomatiza a percepção. Por isso os três registros, mas não é uma questão que busco, mas que me sai assim.

O que supõe fazer filosofia a partir dos acontecimentos íntimos, da própria experiência?

Parece-me que não há outra maneira de fazê-la, pelo menos para mim não interessa. Existe essa velha frase de Nietzsche que tanto amo, “de tudo o que se escreve, só me interessa aquilo que se escreve com o próprio sangue. Escreva com sangue e saberá que o sangue é espírito”. Por outro lado, me calhou ser uma pessoa que eu gosto de ser, me acho interessante e acho interessante o que me acontece. Portanto, não poderia ter escrito de outra forma. Nem consigo entender bem a diferença, certamente muito universitária e fora de moda, entre a experiência, o corpo, a filosofia e a ficção literária, como se uma coisa não estivesse imersa ou entrelaçada (ou grudada) com a outra.

Boa parte de sua terminologia vem de textos filosóficos. Você acredita a sua leitura é difícil para quem não costuma ler filosofia? É necessário ler Platão para entender por que você o acusa de todos os males, por exemplo?

Nunca é necessário ler Platão. Espinosa, Nietzsche, Foucault, Wittig ou Buttler, sim. Se são difíceis, e não me consta que sejam mais que outras coisas, então vai demorar mais tempo e terão que ser lidos mais vezes. Deve-se labutar, perseverar. Eventualmente se entendem, ainda que demore. As coisas levam um tempo. Ler e entender filosofia, vivê-la, torná-la carne, poder transmiti-la depois ou dialogar na filosofia sobre a filosofia também. Se é difícil ler-me, não é por causa da terminologia, mas porque me esforço para afetar inclusive virulentamente quem me lê, e muita gente não quer isso porque não entrego uma imagem reconciliadora sobre a vida. Creio que uma filosofia como Espinosa pode estar ao alcance de quem seja. É a alta cultura, à qual é dever se opor até que seja destruída, quem dita que coisas certas pessoas podem, sim, entender, e que coisas não. É uma mentira. Se leva tempo, pois demorará mais, como tantas outras coisas…

No livro você fala de políticas antirressentimento diante das pessoas que não podem se afetar como o corpo doente, que não sabem cuidar… É mais difícil gerir o ressentimento contra quem não cuida de nós quando necessitamos mais desses cuidados?

O ressentimento é sempre difícil de gerir. Como não viver para a vingança – o que me parece uma perda absoluta de vida – sem reterritorializar um cristãozão que oferece a outra face? Não faço ideia. Creio que quem não sabe cuidar, que não sabe se afetar com um corpo assim chamado doente o que requer cuidados se perde de muita coisa, e não sabe se reconhecer nessa mesma situação, que mais cedo ou mais tarde chegará. Sei que as pessoas que estiveram próximas quando estive internada saíram mais que enriquecidas da experiência. O dilema, já não filosófico mas feminista, é por que no interior do lar da família nuclear essa tarefa recai sobre as pessoas designadas à feminilidade e por amor. Mas esse não é um problema da condição, mas do sistema capitalista que criou a família nuclear, da heterossexualidade como regime político e do capitalismo, e que submeteu as mulheres na Baixa Idade Média a ser as provedoras de alimento para as infâncias expropriadas de suas potências, incapazes ambas de produzir sua própria economia, ambas as partes recluídas no interior do lar, sem laços com a comunidade.

No livro você fala da exigência social de ser jovem até bem entrados os 40. Neste contexto, é a deficiência, o não poder ser como se supõe que deve ser a jovem, uma oportunidade para explorar ritmos de vida mais pausados, uma via para fugir das lógicas do urgente?

É um devir anciã que eu gosto muito. Essa é uma de suas potências, e a velhice, apesar do que acreditam as pessoas subjetivadas nas bondades da inovação, do novo e do jovem, tem potências maravilhosas a se invocar. Uma delas é poder dizer o que dá vontade, sem vergonha nem medo; a outra é que te deixam em paz, literalmente, já que não te solicitam socialmente. E isso dá tempo para criar e viver. Permite não responder a demanda constante da ansiedade neurótica do habitante médio da metrópole imperial.

Até que ponto existe o perigo de contribuir para a romantização das corporalidades deficientes por serem não-normativas, como ocorre com certas identidades, sem que isso suponha uma afetação real para quem observa de fora (tanto o pornô inspiracional quanto mascotes dos movimentos “progressistas”)?

Vamos ter que correr esse risco, que está sempre presente e é feroz. Cansam-me essas atividades para defs sem defs ou onde as vozes de comando são vozes que vivem de, mas não são. Fazer falar o subalterno, ser uma amplificação, quando puder. Há muito proxenetismo encoberto, isto é, gente que vive do corpo de outra def. Talvez seja uma romantização, não sei, mas creio no potencial crítico daquelas corpas definidas como anormais mas que usaram esse limite restritivo para um fenômeno singular de borda, de desterritorialização. Deficiência não é uma identidade, é o nome de uma invocação afetativa, é uma forma de vida com outras de maneira crítica contra o regime da normalidade.

Em um mundo imerso em políticas de visibilidade, de ocupação da rua ou ocupação das instituições, que formas de visibilização ou que políticas que não dependam das lógicas de visibilização desenvolvem os corpos para os quais mover-se, falar, sair à rua, é problemático e frequentemente impossível?

Creio que ninguém tenha desenvolvido isso melhor que Johanna Hedva em sua Teoria da Mulher Doente, não só como formas do político para quem, por diferentes motivos, não podemos habitar o espaço público da política (por medo, deficiência, tempo). Também creio que em uma sociedade do espetáculo como a nossa, boa parte das vezes a manifestação, especialmente a pacífica, supõe um entretenimento. Não tenho nada contra se divertir, mas saibamos disso: nossa participação política dentro das formas da política clássica foi se reduzindo à seleção de bens de consumo ou a formas do ócio recreativo mais trivial. Creio que nossos corpos são em si mesmos uma forma de protesto contra o regime de normalidade que se nega a ficar mais complexo ou a se arriscar.

Ultimamente, por ser uma questão que está me tocando muito de perto, ando me perguntando se não nos prejudicam mais as pessoas que acreditam se afetar e na realidade fazem/exibem caridade com nossos corpos que aquelas que diretamente desaparecem ou tentam não se envolver. Essa Boa Consciência que se autoafirma sobre nós sem nós e nos subjetiva “pacientes” sempre agradecidas por suas migalhas. Às vezes que nos causa mais danos são as pessoas que creem estar ajudando, e sinto que aquilo que você escrevia em seu blogue sobre a “pedagogia do opressor” é também muito adequado para as pessoas que ao acreditar que toda atenção sua deve ser agradecida, esperam que o corpo paciente seja sempre dócil, suave e educado na hora de lhes dizer o que fazem mal. Como você lida com isso? A ideia de autonomia que a maioria – ou uma grande parte – do movimento feminista utiliza é concebida como não necessitar nem depender de outras pessoas, o que vem a reforçar uma visão muito capacitista do empoderamento. É possível ressignificar o conceito de autonomia como, por exemplo, a possibilidade de determinar ou escolher o que mais convém ao próprio corpo?

Eu não lido com isso, para ser honesta. Sou muito pouco hábil com o que chamamos de “relações”. Vivo muito retirada. Também não frequento muito esse grupo doutrinário que chamamos “movimento feminista”, porque seja isso o que for, se dedica majoritariamente à política como espaço público, mas não ao político que é o espaço do tecido de redes, quando não se dedica pura e simplesmente a policiar e a competir. Prefiro optar por estar fora, dizer que não e não participar mais que de canto. O que escolhi fazer com a vida, se faz melhor sem tanto tumulto. O Crohn me fez devir anciã precocemente e me parece que está muito bem. Retiro-me do mundo, vou um pouquinho à morte onde posso pensar sem tanto barulho e sociabilidade envenenada. Por outro lado, estou completamente de acordo com a sua leitura de autonomia. De fato, não só não sou autônoma como não creio que seja desejável o ser. Sinto-me interconectada a muitas existentes, não só pessoas, que dotam minha existência de sentido e me dão vida e me parece formidável existir em rede. Efetivamente, creio que você tem uma grande definição de autonomia como aquilo com que meu corpo combina e incrementa minhas potências. Uma ideia espinosiana da potência como experiência compartilhada.

Finalmente, eu tinha a curiosidade sobre a recepção que o livro teve desde que foi publicado. Games of Crohn começou como um diário-terapia para sobreviver à clínica e ao aparato médico e agora é um livro que circula internacionalmente. Que encontros ele gerou, que respostas teve, o que se produziu ao redor da divulgação deste livro?

O livro continua sendo uma maneira de viver para mim. Mas, sobretudo, uma maneira de tocar os ovários de mais de uma feminista convencional e ortodoxa e suas boas maneiras, seja dentro do queer ou do essencialismo. Mutantes y Orgullosas, nome de nossa nova produção audiovisual. A revolução, como já disse, é das frágeis – isto é, das poderosas – ou não é.

Eva Vica:

No capítulo intitulado “Feministas enemigas de putas y enanos” (“Feministas inimigas de putas e anões”) você faz referência às feministas que se escandalizam por haver pessoas que fazem sexo com aleijades em troca de dinheiro. Qual sua opinião sobre a existência de formas de trabalho sexual especializadas nesta área como, por exemplo, xs assistentes sexuais?

Acho que a assistência sexual é uma especialização dentro do trabalho sexual, como as dominadoras, ou as “passivonas”, ou as “girlfriend experience”. Estou total e completamente a favor do trabalho sexual, em qualquer de suas variantes. Se bem que eu gostaria de viver em um mundo onde ninguém tivesse que pagar por nada, me parece que as mulheres – lato sensu – termos que continuar oferecendo certas tarefas de cuidado, atenção, limpeza, procriação, suporte afetivo e sentimental e amizade por nada mais que “amor” é um dos maiores erros políticos do feminismo da igualdade, junto da luta para que as mulheres consigamos nos equiparar à masculinidade hegemônica que produz militares e policiais. Cada vez que uma de nós se torna parte das forças repressivas de segurança, o feminismo morre um pouco. Só uma pessoa delirante, demente e desequilibrada pelo capitalismo pode achar que a igualdade é ser militar e não puta. Oxalá o abolicionismo pusesse toda a força que coloca em tentar proibir que as trabalhadoras sexuais façam/façamos o que queremos com nossas corpas em subtrair as subjetividades das solidariedades microfascistas. Por outro lado, supor que não deveria existir o sexo pago para clientes defs é um dos conceitos mais capacitistas jamais criados: como se trepar com defs por dinheiro fosse ainda pior que trepar com supostos não-defs por dinheiro ou gratis, como se a questão da deficiência, mais que um kink ou uma especialização, fosse uma tragédia que ninguém, a menos que seja muito, muito pobre, faria. Lamentavelmente, quando se fala da função social dos serviços sexuais e se usa o exemplo dos benefícios prestados ao coletivo def sempre surge o capacitismo que crê que não há dinheiro que pague a asquerosidade de trepar com uma pessoa def. Se soubessem. Se soubessem as vantagens, talvez se voltassem à especialização def para prestar serviços para o coletivo de deficiência ou arrumariam amantes defs. Esta postura me faz lembrar das pró-saco gestacional antiaborto, que falam de bebê para se referir a embriões, mas depois pedem mão dura, pena de morte e redução da maioridade penal uma vez que o “bebê” não foi abortado. Eu prefiro pensar nisso como uma aliança política e um agenciamento empoderante onde vários mundos geram um mecanismo para sobreviver e se apoiar mutuamente. Valorizo isso infinitamente.

Por que você acha que o trabalho sexual exercido de forma livre e autônoma é algo que, em geral, incomoda tanto?

Por motivos similares aos que torna incômoda uma pessoa que convive com uma condição incurável, permanente, degenerativa, dolorosa, dolorosa e, no entanto, vive bem: somos a demonstração empírica de que a vida normal não está tão boa e não é desejável; somos aquelas que em boa medida o sistema não pôde cooptar com seus discursos de vitimismo, patetismo, autopiedade, miséria e tristeza que sustenta o setor que acredita em sua normalidade como o reino deste mundo. Pois não, ser normal e sã não é a grande coisa. Não só dizemos isso, como também demonstramos empiricamente.

Shukare:

Com as perguntas sobre a especialização em diversidade funcional dentro do trabalho sexual me vinha à cabeça a ideia de que há corpas defs não só consumindo como fornecendo serviços sexuais. Há possibilidade das pessoas com deficiência trabalharem na indústria do sexo?

Claro que há! Muitas pessoas cujas corporalidades são lidas dentro do paradigma da deficiência são atores e atrizes pornôs e também são fornecedoras de serviços. Há muito kink dentro do pornô, seja industrial ou não, e do trabalho sexual. Acho muito acertado que você tenha trazido isso à discussão. Games of Crohn – Diario de una Internación está dedicado às pessoas coprófagas, por exemplo, porque com elas as diarreicas e ostomizadas compartilhamos o paraíso perverso e escatológico.

GynePunk, as bruxas ciborgues da ginecologia DIY

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Ewen Chardronnet no MAKERY/media for labs em 30 de junho de 2015

O coletivo catalão GynePunk quer descolonizar o corpo feminino. Com este objetivo, está desenvolvendo instrumentos de primeiros socorros ginecológicos, para mulheres socialmente desfavorecidas, refugiadas, trabalhadoras sexuais. Mas também para elas mesmas.

Localizada nas colinas a oeste de Barcelona, a comunidade de Calafou onde o coletivo GynePunk surgiu se autodefine como uma “colônia ecoindustrial pós-capitalista”. Seu ambiente não tem nada de idílico – o rio está contaminado, a velha usina hidrelétrica gera campos elétricos que afetam a vida diária. No entanto, algumas pessoas se cotizaram para comprar estes 28.000 metros quadrados e criar 27 apartamentos. A vida em Calafou é uma cooperativa, com diversos espaços comuns, um estúdio de marcenaria, uma fundição e um hackerspace ocupado pelo biolaboratório Pechblenda.

Dildomancia

Pechblenda é parte da rede internacional de biologia DIY de código aberto Hackteria. Segundo Paula Pin, a quem encontramos em Nantes durante sua residência 0.camp no fablab de Ping e da Plateforme C: “Decidimos nos instalar em Calafou em 2013, porque acreditávamos que tínhamos que viver juntas em cooperativa para colocar nossas ideias em prática. Trabalhar com fluidos em geral era nosso objetivo principal, da análise da água do rio à análise de nossos fluidos corporais. Uma vez instaladas em Calafou, iniciamos um grupo de sexologia espontâneo”. Ainda que as mulheres já estivessem trabalhando com temas relacionados ao chauvinismo masculino, as “anarcofeministas e transhackfeministas” não se concentravam “o suficiente” no corpo.

Como podemos dar uma forma mais orgânica aos brinquedos sexuais, que sejam mais educativos?” continua Paula. “Também queríamos seguir as ideias de Annie Sprinkle e Beth Stephens, que com seu movimento ecossexual defendem a desgenitalização da sexualidade”. Seu movimento também é parte do movimento pós-pornografia, que é muito forte na Espanha e promove uma visão diferente da sexualidade e da pornografia mainstream, que atualmente enfatiza exclusivamente relações sexuais genitais.

Também demos oficinas sobre ‘dildomancia’, demonstrando como fazer lubrificantes naturais e tratar problemas vaginais com plantas. Klau Kinky, que começou a documentar este trabalho, veio então com o conceito de GynePunk”.

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Anarcha, Betsey, Lucy y outras chicas del montón

Klau Kinky estava explorando a questão da descolonização do corpo feminino. Enquanto pesquisava a sexologia, ela se deparou com os nomes dos ginecologistas americanos do século XIX J. Marionn Sims e Alexander Skene. O primeiro inventou o espéculo, e o último deu seu nome às glândulas de skene, análogas à próstata masculina e associada à ejaculação feminina.

Esses pais da ginecologia moderna praticaram suas pesquisas ginecológicas em escravas das plantations, sem anestesia. De 1844 a 1849, Sims fez experimentos em três escravas no Alabama – Anarcha, Betsey e Lucy – que sofriam de fístulas. Anarcha foi operada 30 vezes sem anestesia. Foi só depois do sucesso destas cirurgias que ele começou a operar mulheres brancas, desta vez com anestesia. Essas experiências, consideradas um passo em direção à cirurgia vaginal moderna, permitiram a Sims projetar instrumentos médicos, inclusive o espéculo.

Klau, então, decidiu dedicar seu projeto a “Anarcha, Betsey, Lucy y outras chicas del montón”, em referência a um dos primeiros filmes de Pedro Almodóvar, Pepi, Luci, Bom y outras chicas del montón (1980). Ela também rebatizou a glândula de skene e as glândulas de Bartholin como glândula de Anarcha e glândulas de Lucy e Betsey, em homenagem às escravas que foram vítimas das experiências de Sims.

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↑ Centrífuga GynePunk para análise de fluidos corporais

O kit ginecológico de emergência

Mas Klau e o GynePunk não pararam por aí. Para uma oficina no Hangar em Barcelona, elas desenvolveram uma caixa biolaboratório de emergência. O objetivo era reunir ferramentas de biohacking DIY para analisar fluidos corporais: sangue, urina, fluidos vaginais. Ajudado pela rede Hackteria, o GynePunk desenvolveu três ferramentas: uma centrífuga, um microscópio e uma estufa. A centrífuga separa os sólidos dos líquidos, e decanta o conteúdo para exame no microscópio. O microscópio, uma ferramenta útil para a citologia (o estudo da morfologia da célula) e a histologia (morfologia dos tecidos), é usado para identificar infecção urinária e outras infecções genitais por fungos. E, finalmente, a estufa desenvolve as bactérias em uma placa de petri, nutrindo-as para revelar sua presença.

O objetivo do GynePunk é desenvolver um kit de ferramentas para medicina ginecológica de emergência, algo como a redução de riscos para usuários de drogas. O kit pode ser útil para imigrantes sem cobertura de saúde, para campos de refugiados, mas também para trabalhadoras sexuais, organizadas ou não.

Mas o kit também é útil para as próprias integrantes do GynePunk. Em Calafou há um grupo de saúde que busca alternativas que ajudam a evitar consultas médicas para quem não tem dinheiro ou assistência médica apropriada. É também uma militância pela medicina alternativa, conhecimento ancestral, medicina chinesa, bruxaria e receitas da vovó… “Somos bruxas ciborgues!” diz Paula. “Nós queremos atualizar o conhecimento ancestral com o uso independente da tecnologia”.

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↑ Microscópio DIY em homenagem a Mary Ward, uma especialista em microscópios do séc.XIX

Espéculo 3D

O Gynepunk também inspira a rede Hackteria com sua vontade de democratizar e “libertar” os instrumentos e protocolos usados na obstetrícia e na ginecologia para permitir diagnósticos de baixo custo. Urs Gaudenz, membro da Hackteria e do Gaudi Labs da Suíça, desenvolveu recentemente um espéculo para impressoras 3D (disponível no Thingiverse) e desenvolve ferramentas genéricas usando elementos reapropriados de produtos de consumo amplamente disponíveis (motor de DVD player, discos rígidos, ventoinhas de computadores) ou projetos abertos para fabricação digital. Outros projetos e protótipos exploram o campo performativo corporal pós-pornô, como os dispositivos de código aberto para microfluidos “OpenDrop” e sensores de osciladores de cristal, como o “Wild OpenQCM”, que combina dois cristais de quartzo com um circuito de theremin para transformar o bio-sensor openQCM em um instrumento de BodyNoise para performance de som.

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↑ O espéculo para impressoras 3D do Gaudi Labs

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A Teoria da Mulher Doente

Na tarde do domingo passado, o staff do hotel subia a Rua Augusta na manifestação contra o golpe convocada pelas mulheres. Observando as pessoas que das janelas dos prédios acenavam para nós com bandeiras e panos vermelhos, ChaosTotal comentou: “moram aqui do lado, por que não vêm pra rua também?”. Respondemos que muita gente, por mais vontade que tivesse, não podia estar ali caminhando conosco, por vários motivos. Johanna Hedva nos explica melhor isso e muitas outras coisas importantes.

[como de costume, a tradução foi feita pelas macacas idosas durante as atividades antidemência no asilo do Puerco Suíno. Está imperfeita, cheia de erros, por isso pode e deve ser melhorada por quem se dispuser].

★☭★

A TEORIA DA MULHER DOENTE

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Johanna Hedva vive com uma doença crônica e sua Teoria da Mulher Doente é para todas aquelas que nunca imaginaram sobreviver, mas sobreviveram.

1.

No final de 2014 eu estava num surto de uma patologia crônica que, entre cada 12 ou 18 meses, torna-se tão forte que me deixa sem poder caminhar, dirigir, fazer meu trabalho, às vezes falar ou entender o que falam, tomar banho sem ajuda e sair da cama, por cinco meses a cada episódio. Naquela vez, coincidiu com os protestos de Black Lives Matter, aos quais eu teria ido sem pensar, se pudesse. Vivo a uma quadra do parque MacArthur em Los Angeles, um bairro predominantemente latino e popularmente conhecido como um lugar onde muitos imigrantes começam sua vida nos Estados Unidos. Portanto, não surpreende que o parque seja um dos mais ativos locais de protesto na cidade.

Ouvi os sons da manifestação se aproximando de minha janela. Grudada a minha cama, ergui meu punho de mulher doente em solidariedade.

Comecei a pensar sobre as formas de protesto permitidas às pessoas doentes – me pareceu que muitas das pessoas às quais Black Lives Matter se destina não podem, talvez, estar presentes nas manifestações porque estão presas a um trabalho, pelo risco de demissão se forem às manifestações, por estarem literalmente presas, e, claro, pela ameaça da violência e brutalidade policial… mas também por doença ou deficiência, ou por cuidarem de alguém com uma doença ou deficiência. Continue reading

Lincoln Detox Center 3: Gangues em Nova Iorque

Descobrimos o Lincoln Detox Center através deste texto do Felix Guattari, publicado no Brasil no início da década 1980, num livro chamado Revolução Molecular. Aqui Guattari destaca o protagonismo das gangues de rua do South Bronx no programa de desintoxicação do Lincoln Hospital, coisa que não pudemos confirmar em outras fontes. Pelo contrário, como se vê nos relatos reproduzidos em outras postagens aqui no CH, os grupos que Guattari chama de “movimentos revolucionários nacionais” [Young Lords, BPP, Republic of New Afrika] aparecem sempre como os grandes articuladores do Lincoln Detox. Porém, todos coincidem com FG num ponto que nos interessa bastante: a dissolução do poder médico [da “iatrocracia”, como diriam os valentes do SPK/PF] no Centro. Desde o início, os médicos foram afastados do comando do  Programa, assumindo sempre um papel coadjuvante – recordemos a surpreendente narrativa de Vicente “Panamá” Alba de como o programa começou a utilizar a acupuntura.

As fotos parece que foram feitas por Hélio Oiticica em seu desterro novaiorquino, mais precisamente no dia 19 de novembro de 1974, numa das sessões de gravação de vídeo de Martine Barrat com as gangues do South Bronx. A respeito, Barrat diz em seu site:

Meu querido amigo Hélio Oiticica costumava nos visitar, as gangues e eu, no South Bronx. Os membros das gangues  o amavam […]

A Gerência p/ Macacas Idosas do IGPS

★★★

GANGUES EM NOVA IORQUE

Felix Guattari [tradução de Suely Rolnik]

A marginalidade é o lugar onde se podem ler os pontos de ruptura nas estruturas sociais e os esboços de problemática nova no campo da economia desejante coletiva. Trata-se de analisar a marginalidade, não como uma manifestação psicopatológica, mas como a parte mais viva, a mais móvel das coletividades humanas nas suas tentativas de encontrar respostas às mudanças nas estruturas sociais e materiais.

Mas a própria noção de marginalidade permanece extremamente ambígua. De fato, ela implica sempre a ideia de uma dependência secreta da sociedade pretensamente normal. A marginalidade chama o recentramento, a recuperação. Gostaríamos de lhe opor a ideia da minoria. Uma minoria pode se querer definitivamente minoritária. Por exemplo, os homossexuais militantes nos Estados Unidos são minoritários que recusam ser marginalizados. Nesse mesmo sentido pode-se considerar que as gangues negras e porto-riquenhas nos Estados Unidos não são mais marginais do que o são os negros e os porto-riquenhos nos bairros das grandes cidades que eles controlam, às vezes, quase que inteiramente. Trata-se de um fenômeno novo que indica direções novas. Uma simplificação corrente consiste em dizer que este tipo de gangue não põe em ação senão mecanismos de autodefesa e que sua existência é apenas a consequência do fato de que o poder politico, os partidos e os sindicatos ainda não encontraram resposta a esse problema. (Foi na esperança de achar uma tal resposta que Reagan, quando governador da Califórnia, tentou estabelecer um colossal centro de pesquisas para estudar os meios de reabsorver a violência. Seus trabalhos deveriam orientar-se na direção, apenas caricaturada, do filme Laranja Mecânica).

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É fato que, no quadro dos fenômenos de decomposição que certas grandes cidades dos Estados Unidos conhecem, a urbanização e a “urbanidade”, por mais que tenha sido feito, deixam de funcionar lado a lado. O papel de melting pot da cidade deixa lugar, nesses casos de câncer do tecido urbano, a uma aceleração das formas de segregação racial, a um reforçamento dos particularismos que vai ate à impossibilidade de circular de um bairro a outro. (A polícia, hoje em dia, só penetra excepcionalmente em certos bairros de Nova Iorque.)

Ao invés de considerar tais fenômenos como respostas coletivas improvisadas a uma carência (a carência de moradia, por exemplo), dever-se-ia estudá-los como uma experimentação social na marra, em grande escala. De forma mais ao menos consequente, as minorias sociais exploram os problemas da economia do desejo no campo urbano. Essa exploração não propõe formas ou modelos, ela não traz remédio a algo que seria patológico: ela indica, isto sim, a direção de novas modalidades de organização da subjetividade coletiva.

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Detenhamo-nos num exemplo típico: o do South Bronx em Nova Iorque. Gangues de jovens, que reúnem às vezes vários milhares de indivíduos, esquadrinham toda essa parte da cidade. Eles se deram uma organização muito rígida, muito hierarquizada e mesmo tradicionalista. As mulheres estão organizadas em gangues paralelas, mas permanecem completamente sujeitas as gangues masculinas. Tais gangues participam, por um lado, de uma economia desejante fascista, e, por outro, daquilo que certos de seus dirigentes chamam eles mesmos de um socialismo primitivo (grass-root). Destaquemos entretanto os sinais de uma evolução interessante. Em certas gangues porto-riquenhas de Nova Iorque, onde as meninas eram tradicionalmente sujeitas aos chefes masculinos, aparecem agora estruturas de organização femininas mais autônomas, e que não reproduzem os mesmos tipos de hierarquia; as meninas dizem que, diferentemente dos rapazes, não experimentaram a necessidade de uma tal estruturação. Para elas, se trata de buscar um outro tipo de organização que se diferencie da mitologia ligada a uma espécie de culto fálico do chefe.

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Toda uma série de questões pode ser colocada a partir daí:

como é que se chegou a isso, principalmente no plano da segregação racial?

por que os movimentos de emancipação foram forçados a se fazer implicitamente agentes desta segregação?

por que os movimentos revolucionários nacionais (Black Panthers, Black Muslims, Young Lords, etc…) permaneceram sem possibilidade de controle sobre esses milhares de gangues que esquadrinham, quarteirão por quarteirão, uma parte considerável das grandes cidades americanas?

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Uma certa cultura, específica das massas mais deserdadas, um certo modelo de vida, um certo sentido da dignidade humana existem nessas gangues, e poderíamos igualmente creditar-lhes certas intervenções sociais que trazem respostas a problemas que nenhum tipo de poder de Estado pode abordar. Foi assim que no South Bronx bastou que uma equipe de médicos trabalhasse junto com as gangues para que se pudesse desenvolver um sistema muito original de organização da higiene mental.

Assinalemos, em particular, a propósito do problema da droga, uma experiência das mais originais, sempre no South Bronx. Há dois anos, durante as lutas raciais, o Lincoln Hospital foi ocupado por militantes revolucionários, depois evacuado ao cabo de algumas semanas. Mas todo um andar do hospital continuou a ser ocupado e não cessou de o ser, desde este período, por ex-drogados que assumiram por si mesmos a organização de um serviço de desintoxicação. Esta instauração da autogestão num serviço hospitalar mereceria ser explorada em todos os seus detalhes. Destaquemos simplesmente alguns fatos:

o essencial da equipe é composto por ex-drogados;

os médicos jamais têm acesso direto aos doentes e aos serviços;

o centro faz sua própria polícia e um status quo pode instituir-se com a polícia do Estado de Nova Iorque;

o Estado de Nova Iorque, após haver lutado muito tempo contra o Centro, foi levado finalmente a subvencioná-lo;

fez-se uma utilização muito particular da metadona, que é empregada aqui apenas como tratamento intensivo durante alguns dias, enquanto que nos serviços clássicos sua administração dura anos e constitui uma espécie de droga artificial sujeitando definitivamente o ex-drogado ao “poder médico”.

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Mas o que e talvez o mais interessante é a conjunção da ação das gangues com esse serviço de autogestão. Ela acabou não somente por aperfeiçoar um sistema de tratamento eficaz (veem-se drogados chegar por si mesmos, titubeando, ao Centro), mas por trazer soluções a um problema mais geral, o do tráfico da droga. Com efeito, as gangues tomaram o controle da situação, na verdade meio rudemente, eliminando pela persuasão, ou mesmo algumas vezes fisicamente, os pushers (traficantes).

Certas gangues e certos movimentos negros tomaram consciência da manipulação de que eram objetos, através da droga, pelo poder de Estado. (A coisa se tomou manifesta para eles quando se descobriu que os estoques de droga, apreendidos pela polícia nova-iorquina, tinham sido substituídos por farinha e revendidos pela polícia, e isso numa escala colossal.)

Mas o exemplos de tais ações relativamente pacificas continuam sendo exceção. A violência e o medo, frequentemente alimentados pela polícia, reinam no seio das gangues. Não se pode dizer que uma tal “experiência” nos propõe um modelo de “qualidade de vida”.

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Certos esboços de organização mais sistemática são combatidos pelas autoridades, em particular as relações que começavam a se instituir entre as diferentes gangues e mesmo entre as diferentes raças (negros, porto-riquenhos, chicanos, etc…) e as relações entre as gangues locais e os movimentos implantados nacionalmente.

O fenômeno das gangues, em sua amplitude e em seu estilo atual, data de bem poucos anos. Antigamente o conjunto dos movimentos negros tinha sido submerso por uma onda de droga branca que havia chegado até os altos escalões. Mas não é ao nível dos movimentos nacionais que um início de resposta ao problema da droga foi encontrada, e sim ao nível das gangues, que aliás consideravam tais movimentos muito elitistas, comparados a elas que permanecem em contato estreito com as massas e com os pés na terra.

Alguns professores e trabalhadores sociais começaram a trabalhar com estas gangues. Um professor e uma cineasta francesa1 realizaram com eles alguns filmes em video. As autoridades toleraram mal tais ‘iniciativas, tentaram recuperá-las com fins policiais. É possível entretanto que a Rede Alternativa à Psiquiatria2 consiga refazer estas tentativas.

Notas —————–

1N. da Trad.: Guattari se refere a Martine Barrat, fotógrafa e cineasta francesa, radicada em Nova Iorque, que vem acompanhando, desde 1971 as gangues de adolescentes negros e porto-riquenhos em South Bronx. Trabalha com video-teipe, muitas vezes manipulado pelas próprias gangues, sendo um registro que rompe com o silêncio forçado deste setor da vida social norte-americana. A circulação intensa do trabalho de Martine Harrat – inúmeras exposições, artigos de jornal e revista; programas de televisão – tem levado a voz das gangues pelo mundo. Martine Harrat esteve no Brasil, em 1979, durante alguns meses, vivendo em Mangueira.

2N. da Trad.: Cf. o cap. “A Trama da Rede” do livro Revolução Molecular.

Lincoln Detox Center 2: Nehanda Abiodun relembra

Nehanda Abiodun é uma harlemita exilada em Cuba desde o final da década de 70. É considerada a Madrinha do Hip Hop na ilha. Atualmente sua segurança está ameaçada pela normalização das relações entre Cuba e os EUA, onde o FBI segue pedindo sua cabeça, assim como a de Assata Shakur. Num relato autobiográfico, Nehanda conta sua passagem pelo Lincoln Detox Center:

Quando saí da Universidade de Columbia, comecei a trabalhar em uma clínica de metadona no East Harlem. Como muitas outras pessoas naquela época, eu achava que a metadona era uma solução clínica viável para a dependência de heroína. No final, fui demitida da clínica por me recusar a aumentar a dosagem em um dos pacientes que havia conseguido parar de usar drogas ilícitas e reduzido a administração de metadona de 120 mg para 20 mg em um espaço de tempo muito curto. A opinião dos donos da clínica era que eu havia reduzido a dosagem de metadona rápido demais. Minha defesa era que o paciente não estava mais usando drogas ilícitas, não se queixava de nenhum desconforto físico e estava lidando bem com suas responsabilidades externas. O ultimato dos donos da clínica foi que eu devia aumentar a dosagem de metadona ou seria demitida. Optei por ser demitida em vez de forçar um paciente a tomar mais drogas que o necessário.

Depois que fui demitida comecei a pesquisar alternativas à desintoxicação com drogas. Foi essa pesquisa que me levou à clínica de desintoxicação com acupuntura do Lincoln Hospital. Fundada por ativistas e ex-ativistas do Black Panther Party, da Republic of New Afrika, dos Young Lords e da Students for a Democratic Society, a clínica havia tratado com sucesso de milhares de dependentes de álcool e drogas usando a acupuntura. Muito de seu sucesso se devia a um plano de tratamento holístico abrangente aliado a aulas de educação política e trabalho comunitário dos quais os pacientes tinham que participar.

As aulas de educação política possibilitavam que o paciente compreendesse sua dependência em um contexto mais político, como a dependência contribuía não só para sua deterioração individual, mas também da família e da comunidade. Era nessas aulas que aprendiam sobre o envolvimento da CIA com o tráfico de heroína, usando os sacos que traziam os corpos dos soldados mortos no Vietnã para transportar a droga. Também aprendiam como a dependência de drogas tinha sido usada como meio de enfraquecimento de movimentos progressistas nacionais e estrangeiros.

O trabalho comunitário do qual eram convidados a participar incluía tarefas como ajudar um inquilino despejado a encontrar moradia; trabalho com direitos sociais; ajudar no transporte de uma família para visitar algum parente preso; ou estar presente em um julgamento para mostrar apoio a um dos muitos presos políticos que estavam sendo jogados nas prisões por seu trabalho político.

As aulas e o trabalho comunitário eram elementos importantes para o processo de cura porque possibilitavam aos pacientes entender sua opressão de uma maneira mais global e deixarem de ser parasitas para então contribuir com o bem-estar de sua comunidade.

O Lincoln Detox deixou de existir como um centro de saúde controlado pela comunidade quando cerca de 200 membros do departamento de polícia de Nova Iorque e suas equipes da SWAT empregaram a força para fechá-lo. A justificativa oficial foi o mau uso dos recursos mas o motivo real foi revelado quando o prefeito Koch disse que “o Lincoln Detox era um terreno fértil para células revolucionárias”.

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Entrevista com Vicente “Panamá” Alba feita por Molly Porzing para o The Abolitionist – tradução puerca do Instituto Geriátrico Puerco Suíno.
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↑ O South Bronx no início da década de 1970: edifícios demolidos pela especulação imobiliária. Ao fundo, a bandeira de Porto Rico

O que foi o Lincoln Detox Center [Centro de Desintoxicação Lincoln]? Como e por que ele começou?

No final dos anos 60 e começo dos 70, em Nova York, vivíamos uma epidemia de drogas. Em novembro de 1970 eu tinha 19 anos e havia sido dependente de heroína por cinco anos. Comecei a usar heroína quando tinha 14 anos, o que era bastante comum entre jovens de minha geração. Cerca de 15% da população era dependente (nas comunidades no South Bronx, Harlem, Lower East Side, Bushwick no Brooklyn, incluindo todo mundo, de um bebê recém-nascido até uma pessoa idosa)1. A maior concentração de dependentes estava entre adolescentes e pessoas entre os 20 e 30 anos. A dependência naquela época era principalmente de heroína.

Nos anos 60 o governo dos EUA estava empenhado em uma guerra no sudeste asiático, popularmente conhecida como a Guerra do Vietnã, mas os Estados Unidos se envolveram em todo o sudeste asiático. Havia uma linha aérea que era uma operação da CIA para o transporte de heroína do sudeste asiático para os EUA. Hoje nós vemos nos filmes de Hollywood “gangsters” importando heroína, mas o grosso da heroína importada para os Estados Unidos era parte de uma operação do governo dos Estados Unidos, que tinha como alvo as comunidades não-brancas2, comunidades negras e latinas.

Em Nova York, a heroína devastou a maior parte do Harlem e do South Bronx. Jovens usavam heroína abertamente, cheiravam heroína nos salões de baile ou nos banheiros das escolas, e acabavam se injetando por via intravenosa. Era uma epidemia que fez o pantera negra Michael Cetewayo Tabor, um dos 21 de Nova York, escrever um panfleto chamado “Capitalism Plus Dope Equals Genocide(“Capitalismo Mais Droga Igual Genocídio), que nós usamos bastante. Em 1969 o Black Panther Party na cidade de Nova York foi dizimado pelo indiciamento de 21 panteras negras e precisava se concentrar no julgamento, deixando de atuar em outras áreas naquele momento. Devido a relação que o Black Panther Party e os Young Lords tinham, juntos começamos a ver a epidemia de heroína, a saúde geral de nossas comunidades e as posições das instituições de saúde pública contra nossas comunidades.

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↑ Lincoln Hospital: Açougue – charge do Palante, jornal dos Young Lords

O Lincoln Hospital foi construído em 1839 para receber ex-escravos que migravam do sul. Por volta de 1970, ele era a única instalação médica no South Bronx. Era uma estrutura de tijolos em ruínas, do século anterior, que nunca havia sido reformada. Era conhecido como o “açougue do South Bronx”. No antigo Lincoln Hospital (e ainda hoje), você andava pelo corredor e via sangue em todo lugar – sangue nas paredes, nos lençóis, nas macas, nos seus sapatos. Os médicos eram designados para lá para fazer estágio e aprender em negros, porto-riquenhos e na pequena comunidade branca do South Bronx.

No começo de 1970, uma mulher de nome Carmen Rodríguez3 foi trucidada no hospital e sangrou até morrer em uma maca. Depois de sua morte, os Young Lords, com a participação de alguns Panteras Negras, ocuparam o Lincoln Hospital pela primeira vez e exigiram uma assistência médica melhor para as pessoas naquela comunidade.

No começo de 1970, uma mulher de nome Carmen Rodríguez3 foi trucidada no hospital e sangrou até morrer em uma maca. Depois de sua morte, os Young Lords, com a participação de alguns Panteras Negras, ocuparam o Lincoln Hospital pela primeira vez e exigiram uma assistência médica melhor para as pessoas naquela comunidade.

Durante a ocupação, Young Lords, Panteras, apoiadores e tradutores, colocaram mesas onde as pessoas vieram relatar suas experiências de tratamento médico. A ocupação se dedicou em grande parte a mostrar que não havia tradutores no Lincoln Hospital. O South Bronx é uma comunidade predominantemente porto-riquenha, principalmente de recém-chegados que falavam espanhol ou de segunda geração que não falava quase nada de inglês. As pessoas iam para o Lincoln Hospital buscando tratamento médico e lá não havia ninguém para entender sua doença ou problema. A administração do hospital também foi confrontada com a falta de serviços para dependência, principalmente dependência em heroína. A comunidade disse ao hospital que um dos problemas era que você vinha ao hospital e não recebia tratamento algum. O hospital não deu importância a isso.

Meses depois, em 10 de novembro de 1970, um grupo de Young Lords, membros de uma coalizão antidrogas do South Bronx e do Health Revolutionary Unity Movement (uma organização de massas dos trabalhadores da saúde), com o apoio do Think Lincoln Collective, ocupou o prédio de Residência dos Enfermeiros do Lincoln Hospital e estabeleceu um programa de tratamento de drogas chamado The People’s Drug Program (Programa Popular de Drogas), que ficou conhecido como Lincoln Detox Center (Centro de Desintoxicação Lincoln).

A polícia nos cercou e nós dissemos que não sairíamos. Por volta do segundo dia, a notícia da ocupação havia se espalhado de boca em boca e tínhamos centenas de pessoas fazendo fila querendo receber tratamento para dependência. Mais ou menos um mês depois, a administração teve que reconhecer o fato de que nós não sairíamos. Eles não se decidiam em relação à proposta de usar uma verba destinada para tratamento que não havia sido usada. O dinheiro foi trazido e uma equipe foi contratada entre os próprios voluntários do programa de desintoxicação do Lincoln que começamos. É claro que os poderes constituídos não nos queriam lá, mas não sabiam como lidar com as pessoas dizendo que não devíamos ir embora. Nós ficamos e servimos ao nosso povo. Fomos muito eficientes e mantivemos nosso programa funcionando até 1979.

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↑ Panfleto do Think Lincoln Committee, organização de base fundamental para a criação do Lincoln Detox

Qual foi a sua participação?

Eu me uni à criação do Lincoln Detox desde o primeiro dia. Antes disso, meu principal objetivo era conseguir drogas, até que uma vez a Cleo Silvers4 e eu estávamos sentados em uma varanda e ela me mostrou algo muito importante. Ela me disse para olhar para um carro patrulha da Polícia da Cidade de Nova York onde dois policiais estavam vendendo heroína. Ela disse, “Olhe aqueles tiras. Olhe para quem você está dando o seu dinheiro!”. O clima em nossas comunidades naquela época era muito importante. De um lado tínhamos a epidemia de drogas, mas havia algo de revolução no ar – a mudança era algo que você podia respirar, que você podia sentir o gosto, que você podia sentir, porque o movimento era muito vibrante. Alguns dias antes, no 30 de outubro, houve uma manifestação de massas convocada pelos Young Lords5 e eu participei da manifestação, mesmo ainda sendo um dependente.

Por causa da maneira como me senti naquele dia, eu disse a mim mesmo que não podia continuar sendo um usuário de droga. Eu não podia ser um dependente de heroína e um revolucionário, e eu queria ser um revolucionário. Tomei a decisão de largar o hábito das drogas. Por coincidência, naquele dia eu liguei para a Cleo, que me falou desse lugar e dessas pessoas. Eu encontrei um casal de jovens irmãos da União de Estudantes Porto-riquenhos, que me levaram até a Cleo no Lincoln Hospital. Ele tinha acabado de ser ocupado cerca de meia hora antes. Como eu já estava saindo de minha dependência, eu não me desintoxiquei no Lincoln Detox, mas me desintoxiquei sozinho, de uma vez [cold turkey], num desafio que coloquei a mim mesmo.

Saindo desta experiência eu fui recrutado pelo Young Lords Party, talvez um mês depois do primeiro dia do programa. A presença do movimento latino no movimento revolucionário nos Estados Unidos ainda não tinha ocorrido em Nova York. Isso havia acontecido no sudoeste com os Brown Berets, mas a comunidade latina em Nova York era predominantemente porto-riquenha. Quando me juntei aos Young Lords, fui designado para o Lincoln Detox onde trabalhei como conselheiro.

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↑ “O Lincoln Hospital pertence ao povo”. A partir da esquerda: Dorothea Tillie, Cleo Silvers (sentada), Pablo Guzman (sentado), Juan Gonzalez (de pé), Andrew Jackson (sentado, rosto parcialmente oculto); outras pessoas não identificadas. Uma das poucas fotos – se não a única – do Lincoln Hospital ocupado disponíveis na rede.

O que o Lincoln Detox Center fazia? Qual era a abordagem utilizada?

Nós oferecíamos desintoxicação. Tínhamos o apoio de médicos que nos forneciam metadona, que nós então fornecíamos às pessoas em doses crescentes ao longo de dez dias para que as pessoas saíssem [da heroína], substituindo a heroína por metadona e então reduzindo os miligramas a cada dia. Depois do décimo dia você estava fisicamente limpo.

Isso também foi bem na época em que Richard Nixon abriu as relações com a China. Muita coisa foi divulgada sobre o modo de vida chinês e como os serviços de saúde eram fornecidos ao povo da China. Ouvimos falar da acupuntura. Nós lemos um artigo de revista sobre a situação na Tailândia, onde um acupunturista usou a acupuntura para tratar alguém com problemas respiratórios e dependência de ópio. Nós lemos que a estimulação do ponto do pulmão na orelha foi a chave do tratamento. Fomos até a Chinatown, conseguimos agulhas de acupuntura e começamos a experimentar uns nos outros. Nós então desenvolvemos o coletivo de acupuntura no Lincoln Detox6.

Nós também entendemos que a dependência de um indivíduo não era apenas um problema físico, mas um problema psicológico. Este era um problema generalizado em nossa comunidade, não porque nós como comunidade fôssemos psicologicamente deficientes, mas porque a opressão e as condições de vida brutais nos levavam a isso. Havia um livro chamado The Radical Therapist (“O Terapeuta Radical”) que alguns de nós lemos.

Nós desenvolvemos uma terapia que integrava educação política às discussões terapêuticas. Realizamos sessões em grupo com participantes majoritariamente negros e porto-riquenhos, dedicadas a discussões sobre o que era se sentir negro ou porto-riquenho, o que significava para alguém que era chamado de “spic”7 não entender o que porto-riquenho era. O povo porto-riquenho é súdito colonial dos Estados Unidos. Você pergunta a um porto-riquenho em geral, um porto-riquenho sem consciência e ele vai dizer: “Sou um cidadão dos Estados Unidos”. Bom, você é um cidadão indesejado dos Estados Unidos, então qual é a sensação e o sentido disso? Os efeitos do colonialismo e o tratamento que os porto-riquenhos recebem do Estado não são compreendidos porque são internalizados. Você tem que começar com o significado disso. Como você se sente com a impossibilidade da sua família te prover? Por que os tiras te odeiam? Por que a escola te odeia? Eu fui à escola pública, não sabia inglês na 5ª série e fui colocado em uma classe para “deficientes mentais”. Quais são os impactos desse tipo de tratamento por parte das instituições da sociedade? O que acontece com uma pessoa que vive nessas condições, que é espancada pela polícia e chamada de “spic sujo” ou a quem é negada a amizade, porque a pessoa é branca e você é de cor? Há um impacto cumulativo desse tipo de existência e queríamos discutir isso.

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↑ Sede dos Young Lords no Bronx

Como o Lincoln Detox incorporou atividades de organização de base no decorrer de seu trabalho?

Quando você está ocupado em correr atrás de droga, correndo atrás de dinheiro para conseguir drogas, ficando louco, ou estando em um ambiente com outras pessoas que ficam loucas com você, isso se torna um modo de vida. Quando as pessoas querem alternativas, você tem que fornecê-las. Nós não tínhamos os meios para dizer: Ok, você tem 17 anos, pode se beneficiar concluindo a escola. Aqui está uma escola com professores que se importam, com conselheiros que se importam e assim por diante, para dar às pessoas a educação desejada ou encaminhá-las a um emprego, em especial as pessoas que estivessem fora da força de trabalho.

Dado o poder natural da abordagem terapêutica, era muito importante que tudo fosse voluntário, que as pessoas tivessem vontade de fazer aquilo. Se elas aprendiam alguma coisa em nosso programa educacional e nas sessões terapêuticas, queriam fazer algo a respeito desses problemas. Queríamos encaminhá-las para que se envolvessem, se engajassem em campanhas que estavam acontecendo na comunidade.

Tínhamos gente defendendo pessoas em centros sociais, capacitando pessoas sobre os direitos dos beneficiários da previdência social, e tradutores que defendiam as pessoas que falavam espanhol. Participamos da fundação de uma coalizão para trabalhadores de minorias da construção, porque o trabalho na construção era um emprego bem pago e a indústria excluía as minorias. Essas foram algumas das coisas que fizemos, além de campanhas políticas. Algumas pessoas que vieram através de nossos programas se juntaram aos Young Lords, ao Black Panther Party ou à Republic of New Afrika. Algumas se tornaram muçulmanas e se envolveram profundamente. Outras se envolveram na campanha pela libertação de presos políticos ou começaram a criar coletivos.

Nós lutamos todos os dias – lutamos pelo direito de comer, pelo direito de ser pagos, pelo direito de ser respeitados, pelo direito de não ser fodidos pela polícia. Nós nunca pedimos nada em troca.

Quais foram alguns dos pontos fortes, sucessos, desafios e debilidades?

Houve pontos fortes e sucessos ao longo do tempo, mas nem tudo foi glória. Houve um monte de desafios e debilidades. Desde o primeiro dia, 10 de novembro de 1970, tivemos um fluxo constante de pessoas todos os dias buscando ajuda. Centenas e centenas de pessoas vieram – não estou falando de uma ou duas dúzias de pessoas – assim que a notícia sobre o Lincoln Detox se espalhou, a oportunidade para as pessoas entrarem e receberem ajuda efetiva de gente comum (não de profissionais brancos mas de seu próprio povo) que tinha um coração amoroso, desenvolvendo uma compreensão das coisas que eles precisavam articular. As pessoas vinham de toda Nova York, Long Island, Nova Jersey também. O programa Lincoln Detox tornou-se tão bem sucedido e eficaz que uma delegação das Nações Unidas nos visitou e reconheceu isso.

Naquele momento a acupuntura se tornou polêmica porque se tratava de pessoal “não-médico” prestando cuidados médicos. Então leis foram aprovadas a respeito de quem poderia praticar a acupuntura, fazendo com que só pudesse ser feita sob a supervisão de um médico que talvez nem tivesse a mínima ideia do que era a acupuntura. As lutas políticas – para manter o financiamento do programa, para manter o programa funcionando, contra a polícia local assim como a polícia do hospital que continuamente tentavam entrar no programa (o Lincoln Detox era um refúgio onde dependentes podiam ir sem medo da polícia) – foram grandes desafios. Em seguida lutamos para que o hospital cobrisse as despesas com as refeições para o programa. As pessoas vinham das ruas, não tinham nada para comer e precisavam de tratamento. Nós lutamos e, finalmente, conseguimos.

Nós também lutamos para desenvolver nossa habilidade no tratamento, acupuntura e desintoxicação. No momento em que iniciamos o programa, houve um grande pressão para a manutenção da metadona como uma forma de tratamento. A metadona é uma droga assustadora desenvolvida originalmente por cientistas nazistas com o fim de lhes fornecer opiáceos É altamente viciante e seu abandono é diferente daquele da heroína. As pessoas lentamente desenvolveram um protocolo para a desintoxicação da metadona. Podíamos desintoxicar uma pessoa da heroína em dez dias e ela ficava bem fisicamente. A metadona era muito dolorosa por muitos meses – três ou quatro, às vezes.

A existência do programa foi uma pedra no sapato do governo. Éramos revolucionários e radicais trabalhando, recrutando pessoas para fazer um trabalho que o governo não queria que acontecesse.

Uma manhã em 1979 nós chegamos para trabalhar e o Lincoln Hospital estava cercado pela polícia verificando a identificação de todo mundo que entrava. Eles tinham uma lista de nomes e os membros dos Young Lords, do Black Panther Party e Republic of New Afrika eram impedidos de entrar nas instalações e presos se tentassem entrar. Eles desmantelaram o Lincoln Detox. Um componente no qual eles estavam muito interessados era a acupuntura, porque era uma fábrica de dinheiro. Algumas pessoas hoje dizem que o Lincoln Detox ainda existe, mas isso não é verdade. Há uma clínica de acupuntura no Lincoln Hospital, mas o programa foi desmantelado.

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↑ Panfleto do HRUM, organização de trabalhadoras e trabalhadores da saúde, integrante do Think Lincoln Committee.

A colaboração entre diferentes grupos como os Young Lords, o Black Panther Party, a Republic of New Afrika e comunidades muçulmanas foi espontânea, automática, ou um esforço mais intencional para desenvolver o programa?

Esta é uma questão profunda. Há o princípio básico de unidade e respeito e há a realidade de que todos éramos obras em andamento. Não é como se você fosse uma noite dormir como um drogado e acordasse na manhã seguinte um revolucionário. Há um processo de crescimento e mudança. Como produtos da sociedade atual, não somos exemplos da sociedade que estamos construindo para o amanhã.

Colaboração e solidariedade eram muito importantes para o Lincoln Detox e ocorreram muitas lutas. Considerávamos o Black Panther Party a vanguarda do movimento revolucionário daquela época. E havia a realidade de que o Black Panther Party estava se desintegrando. Havia algumas pessoas no Black Panther Party e nos Young Lords que eram extremamente arrogantes. Tínhamos que lutar contra e combater essas tendências. Voltávamos sempre ao princípio de ver qual é o melhor interesse do povo. O resultado era muito positivo e aprendemos muito uns com os outros. Em 1973, quando o American Indian Movement entrou em confronto com o FBI em Wounded Knee, na Reserva Pine Ridge em Dakota do Sul, não tivemos dúvidas. Era nossa responsabilidade apoiar e nos engajar naquilo. Desenvolvemos uma filosofia, uma prática que nos tornava possível fazer aquelas coisas.

Que lições foram aprendidas que podem fortalecer o trabalho hoje?

Eu acho que muito do trabalho de organização que acontece hoje em dia é financiado. Você não ouve a respeito de muitas iniciativas que são esforços independentes. Uma das coisas das quais o Lincoln Detox foi parte importante foi o apoio aos irmãos da Attica durante a ocupação da Penitenciária de Attica em setembro de 1971. Fizemos umas vinte e poucas manifestações em 15 dias por toda Nova York. Nós não tínhamos a internet ou telefones celulares ou máquinas copiadoras financiadas por instituições nem nada disso. Nós nos apressávamos para datilografar panfletos, recortávamos e colávamos fotos, queimávamos estênceis.

Nós construímos um movimento e buscamos maneiras de fazer o movimento sobreviver sem financiamento do governo. Ninguém podia nos dizer o que iríamos fazer. Hoje se depende muito de verbas de fundações, e as pessoas se concentram no dinheiro e não em se engajar em campanhas. Apesar de termos forçado o governo a respaldar durante anos o nosso trabalho, no final eram eles que tinham o poder e nos botaram para fora. Nós não tínhamos o poder para continuar aquela instituição. Se nós não estivéssemos em suas instalações, ele poderiam nos calar? Eu não sei, mas a coisa poderia ter sido diferente.

Precisamos reconhecer que não podemos ter instituições dentro das instituições. Quero dizer que nós finalmente acabaríamos, de uma forma ou outra, do jeito que o Lincoln Detox acabou. Temos que pensar em termos de esforços de curto e de longo alcance. Como se livrar das prisões sob o imperialismo? Você tem que se livrar do imperialismo. Nesse meio tempo você pode levar lutas que podem levar a algumas reformas e que precisam ser estudadas e discutidas.

Podemos olhar para isso de um ponto de vista humanitário e ver que salvamos e mudamos muitas vidas, pessoas que teriam sido mortas com a heroína. Eu sou uma delas, uma de um monte de pessoas. Um monte de pessoas passaram a contribuir para o progresso, mas ao mudar o mundo os obstáculos também mudam. Depois da heroína veio o crack. Nós não paramos o flagelo das drogas em nossa comunidade.

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↑ Manifestação em apoio ao Lincoln Detox, final da década de 70

Quais são alguns dos legados ou impactos de longo prazo do Lincoln Detox Center?

Modestamente, eu não acho que haveria um novo Lincoln Hospital sem o nosso trabalho. Se não fossem as lutas que levamos, o novo Lincoln Hospital nunca teria sido construído, porque os interesses políticos não tinham nada a ver com os interesses das pessoas da comunidade. Tivemos que lutar para colocar os interesses da comunidade na linha de frente e exigir que aquele hospital fosse construído. Quando eles fecharam o velho hospital e se mudaram para o novo Lincoln Hospital, fizeram um espaço para cada departamento, exceto para o Lincoln Detox. O legado vai além disso, também. Se você entrar em qualquer hospital público de Nova York, vai ver o Código de Direitos do Paciente na parede. Isso surgiu na primeira ocupação do Lincoln Hospital. Tornamos isso realidade no Lincoln Detox.

Vicente “Panama” Alba foi membro do Young Lords Party e conselheiro do Lincoln Detox Center no South Bronx, Nova York, na década de 1970. Hoje vive em Porto Rico.

Molly Porzing é membro da Critical Resistence, de Oakland, e editora de The Abolitionist.

Notas —————–

1Em 1978 o American Friends Service Committee informou que as condições de vida no South Bronx eram similares às dos países subdesenvolvidos: 30% da força de trabalho disponível está desempregada. A taxa de mortalidade infantil é maior que a de Hong Kong. A expectativa média de vida é mais baixa que a do Panamá. A renda média per capita em 1974, de acordo com o HUD, era de 2.340 dólares, ou 40% da média nacional dos Estados Unidos (informe citado aqui)

2No original, “communities of color”. A expressão “people of color” (POC) designa toda pessoa que não incluída na categoria “caucasian”, branco. Foi incorporada pelos movimentos de libertação, e não corresponde ao eufemismo racista “pessoa de cor”, amplamente utilizado por aqui em tempos passados.

3Carmen Rodríguez, porto-riquenha de 31 anos, foi a primeira mulher a morrer no Estado de Nova York em consequência de um aborto legal, no dia 1 de junho de 1970, dezoito dias após a lei estadual que legalizava o aborto ter entrado em vigor. Este acontecimento trágico contribuiu para que as mulheres do Young Lords Party consolidassem um discurso original a favor dos chamados direitos reprodutivos, que enfatizava a necessidade das pessoas não-brancas pobres controlarem as instituições de saúde locais e das mulheres controlarem seu próprio corpo. A luta das mulheres no interior do Young Lords Party fez com que a organização, ao contrário de grupos como o Black Panther Party ou a Nação do Islã, assumisse posições a favor do aborto e de métodos contraceptivos. A inclusão de posições explicitamente feministas como pontos centrais do programa do Young Lords Party foi uma conquista das mulheres dessa organização que, em sua fase inicial, chegou a advogar um suposto “machismo revolucionário” (mais sobre o tema aqui).

4Cleo Silvers: ativista negra histórica, chegou ao Bronx em 1967 como parte do VISTA, programa governamental de combate à pobreza. No bairro, Cleo imergiu totalmente na cultura local, aprendeu a falar o espanhol e participou dos programas sociais dos Young Lords e dos Panteras Negras. Em 1970 era funcionária do setor de saúde mental do Lincoln Hospital e ativa no Think Lincoln Collective e no Health Revolutionary Unity Movement. Mais tarde trabalharia com os trabalhadores da indústria automobilística em Detroit, como membro da League of Revolutionary Black Workers e do Black Workers Congress.

5No dia 30 de outubro de 1970 o Young Lords Party organizou uma manifestação com aproximadamente 10 mil pessoas na sede da ONU, exigindo a independência de Porto Rico.

6Por sua vez, Mutulu Shakur, membro-fundador da Republic of New Afrika que participou ativamente do Lincoln Detox e hoje é um dos muitos presos políticos dos Estados Unidos, relaciona a introdução da acupuntura no programa ao contato que tinham com a I Wor Kuen, o equivalente chinês dos Panteras Negras ou dos Young Lords, surgido na Chinatown de Nova York em 1969.

7Termo pejorativo para pessoas de origem hispânica, que teria surgido da frase “No spic english”, usada pelos imigrantes recém-chegados.

Viviana Díaz: a voz do Línea Aborto Libre

texto de Sentidos Comunes/ fotos de Josefina Astorga/11 de junho de 2014

Ela é médica, feminista e lésbica, e uma das fundadoras da Línea Aborto Libre (“Linha Aborto Livre”), uma página na internet para orientar mulheres com intenção de interromper suas gravidezes com comprimidos. Hoje elas já têm três processos arquivados, movidos por movimentos religiosos, e sabem que seus telefones estão grampeados, mas seguem adiante porque dizem que “o aborto é a ponta do iceberg de todas as violências do sistema”. Aqui, a visão de uma mulher que ajuda outras mulheres.

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O que é a Línea Aborto Libre?

Somos um coletivo de lésbicas e feministas. Nossa aspiração é que haja uma rede de colaboradores que façam um trabalho em torno do aborto. O que fazemos é atender um telefone onde damos informação sobre o procedimento do aborto, já que no Chile não há lugares onde obter informação de como usar os comprimidos nem em que dose. Essa é a informação que damos. Não dizemos onde conseguir o medicamento. Somente atendemos as mulheres e conversamos sobre o porquê de estarem nesta situação e tentamos fazer que sejam nossas aliadas. Também incentivamos as mulheres a fazer uso de seus direitos na hora de se dirigir a um serviço de urgência.

É sobretudo uma provocação, e que funcionou, já que até agora temos três processos de grupos ultraconservadores, principalmente evangélicos, que tentaram criminalizar nosso trabalho com a figura de “associação ilícita” e, agora por último, de exercício ilegal da profissão. Nenhum chegou até o final mas incomoda um pouco. Também fazemos oficinas, principalmente em organizações de base, em universidades, em comunidades, centros de mulheres e onde nos chamarem.

Quantas são?

Umas sete em Santiago, com mais três colaboradoras que nos dão apoio em serviços de telefonistas e outras coisas, e em Iquique são ao redor de cinco. Nos revezamos para responder as ligações, quatro horas durante a semana, das 7 às 11 da noite, de segunda a sexta. Estamos implementando para este ano (2014) um serviço de resposta telefônica automatizada 24 horas como alternativa. De qualquer forma, queremos continuar respondendo as ligações, porque nos interessa esse contato com a mulher.

Como é a mulher que liga?

É uma mulher que já decidiu abortar, não pede conselhos. Tende a primeiro justificar sua ligação, mas não busca informação sobre o que fazer e geralmente quer informação de como conseguir o medicamento ou de como usá-lo, ou já o usaram e têm dúvidas se funcionou ou não. São de todas as idades e muitas já têm filhos. Não creditamos que as mulheres que ligam sejam do estrato social mais baixo. O número é difundido através das redes que podemos gerar. Geramos um manual de como fazer um aborto com comprimidos que é um texto impresso que vendemos para nos autogerir, mas que também distribuímos em bibliotecas comunitárias e incentivamos que seja reproduzido, também pode ser baixado em PDF a partir de nossa página da internet e também há um áudio para ser baixado.

O que vocês dizem a ela?

Durante a ligação temos tudo super dentro das normas porque temos o telefone grampeado e esses processos em cima. O protocolo da resposta telefônica foi revisado por algumas advogadas que nos assessoram, então é bem impessoal. Nós repetimos o procedimento, como se faz, quais são as contraindicações, etc.

Qual é o procedimento?

Para uma gravidez de até 12 semanas é com 12 comprimidos de Misoprostol que são usados debaixo da língua. Começa com quatro debaixo da língua, depois de três horas outros quatro e depois de três horas mais outros quatro. Esse é o procedimento recomendado pela OMS. Também há outros casos nos quais não se pode usar este medicamento, como gravidezes múltiplas, mas para a norma geral em uma gravidez intrauterina de até 12 semanas esse é o procedimento. É debaixo da língua, e não intravaginal como se costuma pensar, porque debaixo da língua a dose alcança uma maior concentração do medicamento em cerca de 30 minutos. A absorção é mais rápida e é mais segura, e na hora de ir a um serviço de urgência não há como detectar e isso é importante porque as mulheres somos interrogadas e abusadas.

Se não se dissolvem depois de meia hora podem ser engolidos, mas com 30 minutos já se absorveu o suficiente. O sangramento pode começar imediatamente depois da primeira dose ou até depois da última. Se teve início rápido, recomendamos que se complete o processo porque o aborto pode ser incompleto e isso implica ter que ir ao pronto-socorro e esse tipo de coisas. O sangramento é similar a uma menstruação mas mais intenso, com a mesma cor, dor, cheiro e características. O procedimento completo dura entre 8 e 10 horas, e passado esse tempo a mulher não deve mais ter dor nem sangramento constante, mas pode haver sangramento por gotejamento por três semanas. A mulher pode ficar grávida imediatamente depois e deveria continuar com seus anticoncepcionais. Nós recomendamos o sexo não heterossexual, que é o melhor método anticoncepcional e convidamos as mulheres a questionar a heterossexualidade e suas práticas.

Por que para vocês o feminismo lésbico está tão ligado ao aborto?

Nós somos lésbicas feministas e se trabalhamos com o tema do aborto é porque neste momento no Chile o aborto é a ponta do iceberg de todas as violências do sistema. Aí se concentra o classismo, porque só têm acesso ao aborto as mulheres ricas, o racismo, porque o acesso tem a ver com o tema raça, a misoginia, por toda a violência que não há por quê enumerar aqui. E também a proibição do aborto é uma herança direta da ditadura, o último trabalho da ditadura e isso tinha sobretudo um sentido moral, segundo o qual o corpo das mulheres tem dono.

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Quem é o dono do corpo da mulher?

Qualquer um, menos nós mesmas. A Igreja e o Estado dividem o poder. A proibição do aborto não se justifica de nenhuma outra maneira que não seja pela moral e há toneladas de evidências de que a proibição do aborto como medida de saúde pública não serve para nada. O Chile tem uma enorme taxa de gravidez adolescente que nunca se conseguiu diminuir. A proibição do aborto não afetou isso. A mortalidade materna é superbaixa, similar à dos países europeus, mas dessas mulheres que morrem, que são muito poucas, há uma porcentagem que morre por abortos mal feitos e ainda que morra apenas uma por esta razão, é inaceitável.

Como as mulheres estão abortando hoje no Chile?

Depende de quanto dinheiro elas têm. A dose completa de Misoprostol no mercado ilegal custa por volta de 120 ou 150 mil pesos1. Há mulheres que não conseguem da primeira vez, então devem contar com dinheiro. As mulheres que podem viajar podem ter acesso a abortos em clínicas. Sabemos que existe o aborto em algumas clínicas privadas do Chile mas não há informação oficial sobre isso e não é nosso público-alvo. Uma mulher que quer abortar no Chile o faz como pode e aí está o risco. Há pouco uma garota estava a ponto de morrer no Hospital Cordillera e eu não sei o que ela pode ter feito. Uma vez ligou uma garota que estava sangrando e o senhor que lhe vendeu os comprimidos lhe disse que ia sangrar durante 3 dias e, se não tivesse me ligado, sabe-se lá como terminaria. As mulheres abortam clandestinamente, sozinhas ou acompanhadas pelas amigas, mas com um peso social muito grande em cima. Abortam de maneira muito violenta porque há a sensação de fazer algo proibido.

Vocês defendem o aborto somente até a 12ª semana?

Nós defendemos o aborto livre. Damos informação de aborto até as 12 semanas considerando a pressão social que temos em cima. Alguns centros dão informação de aborto até a 19ª semana, mas o problema tem a ver com a possibilidade de uma hemorragia, à medida que o feto é maior, é maior a possibilidade de ter uma hemorragia grave e essa é a restrição.

O que você acha do projeto de lei que está em discussão neste momento?

Acho conservador. Nos preocupa que haja esta despenalização com condicionantes muito pontuais porque isso implica que o aborto siga sendo um delito. A decisão autônoma de que a mulher decida sobre seu próprio corpo segue sendo penalizada. Isso nos preocupa pelo que implica simbolicamente. Isso é violência de gênero. Há coisas pontuais a respeito da lei, como isso de jogar sempre a decisão para outro. Por exemplo, se te estupram, o sistema para denunciar um estupro é terrível e se uma mulher é estuprada pelo namorado ou pelo marido, essa mulher não vai ter acesso ao aborto segundo essas cláusulas. Quando existia o aborto terapêutico no Chile também não eram todas as mulheres que tinham acesso porque dependia da opinião de dois médicos. Eu não tenho muita esperança se o reitor da PUC sair dizendo que eles não vão fazer isso. Se está nas mãos deles, muito poucas mulheres vão abortar e as que o fizerem vão passar por processos muito violentos.

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Qual a sua opinião sobre a objeção de consciência2?

Pontualmente, neste caso me parece que é somente uma mostra de misoginia. Quando fiz minha residência de ginecologia vi muitas coisas nojentas, sem contar que é um ambiente muito masculino onde você entra como uma mulher, um ser disponível, e isso desde que você é estudante. A maneira como eles interpretam a dor das mulheres é muito subjetiva e muito violenta.

O que teria que acontecer para que as mulheres possam decidir no futuro?

Que ocorresse uma despatriarcalização. Desmontar o patriarcado, mas isso implica muito mais que a despenalização do aborto. Por isso nós defendemos o aborto livre e um aborto feminista, porque sabemos que se hoje não houver uma mudança cultural e de mentalidade e um questionamento das estruturas que permitem que haja ginecologistas que se dão ao luxo de dizer que têm objeção de consciência, vai ficar no papel e nada mais. Como na Espanha, onde há um avanço e depois muda o governo por um de direita e se retrocede. As mulheres devemos sentir que é um direito, e não somente das mulheres, porque no fim é uma coisa todos.

No Uruguai, por exemplo, as entidades de classe e os partidos dos trabalhadores se fizeram parte da luta pela despenalização do aborto porque também era parte de suas demandas que as mulheres pudessem decidir. Há pouco eu soube de um caso de uma garota que teve um aborto espontâneo e trabalha em uma clínica de caráter religioso, e eles sabiam que estava grávida e agora a estão assediando moral e profissionalmente porque há a dúvida de se ela provocou o aborto.

Notas —————————————————

1Entre 210 e 240 dólares (março/2015)

2Referem-se aqui ao suposto direito que teriam os médicos, em uma situação em que o aborto estivesse despenalizado, de se recusarem a realizar o procedimento alegando questões de foro íntimo.