“Biologia de escola não explica nada”

De uma hóspede vitalícia do hotel:

A vizinha foi operada. Tinha hérnia, aproveitou e fez tudo. O marido disse que ela não gosta de falar que é bariátrica. Já vi muita gente que fez e está engordando loucamente. Mas os médicos adoram falar que é coisa simples, enchem a cabeça das pessoas pra elas fazerem. E, meu, o cara que fez medicina, não você, aí você acha que se ele tá falando deve ser verdade. Sabe o que é absurdo? A gente tem aula de biologia, mas não sabe onde fica nada. Se tem dor, não faz ideia do que tem ali dentro. Estou até hoje tentando entender a cirurgia que fizeram em mim, em que o cara mexeu, onde eu sinto e por quê. Ainda que esse ortopedista e a fisioterapeuta explicam tudo o que eu pergunto, como funciona. Ainda têm toda paciência, o que não é normal. Mas ainda estou tentando entender um joelho. Biologia de escola não explica nada… Agora que eu tô aprendendo direito onde fica todo aparelho digestivo, fígado, baço, intestinos… a gente vê desenhinhos lindos, mas não aprende que rim fica na lombar… essas coisas…

Silimarina Composta

Entrevista Transdisciplinar Queer Cripple Aleijada Def: Games of Crohn – Diario de una Internación

Leo Silvestri dixit:

A pedido de Sandra, que conheci na turnê “Games of Crohn – Diario de una internación”, na apresentação realizada em Barcelona no espaço das companheiras trabalhadoras sexuais da Aprosex, convidamos muitas companheiras defs e trabalhadoras sexuais para participar desta reunião de reflexões.

Sandra Estragués:

A partir de sua experiência no hospital onde esteve internada por causa da condição de Crohn, quais são os fatores que você diria que afetam de forma especial e diferenciada as mulheres – as biopoliticamente designadas “mulheres” – e que não afetam os homens cis heterossexuais? São os entornos hospitalares, como você diz em seu livro, “espaços de feminização forçada”?

Realmente não sei o que não afeta os homens, porque por sorte não sou um deles; mas comprovou-se que qualquer dor, especialmente na região corporal estratificada como reprodutivo-digestiva, expressada por uma corporalidade “mulher”, cis ou trans, costuma ser desconsiderada porque o mito da “histérica” freudiana que mente continua operando, de forma consciente ou não, no pessoal médico. Com isso o acesso à analgesia é sempre mais restrito quando se porta um útero ou uma feminilidade que costuma ser associada a um útero. Creio que o mundo é um espaço de feminização forçada, não só o hospital. Mas a infantilização da mulher no dispositivo hospitalar se faz notar com força: sempre nos tratam como menininhas com capacidade reduzida de compreensão, a quem se fala no diminutivo porque não entendemos bem sobre o que estão nos falando e nem terminam de explicar “para que não fique impressionada”. Como narro no livro, o peso e o que consideram um peso “normal” também tem relação com os padrões de beleza hegemônicos.

Em um trecho de seu livro você diz “A doença normaliza. Ela torna mulher, humana, se você se entrega, no pior sentido que essa palavra pode ter. Ela faz de você uma pessoa pouco autônoma, vítima […]”. Podemos deduzir, a partir de suas palavras, que o aparato médico é um reprodutor de violência sobre nós, um potente agente “normalizador”?

É um dos dispositivos de normalização e correção mais coercitivos com que contamos nos últimos anos. Afinal de contas, muitas vezes chamam “curar” o que pura e simplesmente é uma operação, em geral a ponta de bisturi, para ajustar até fazer encaixar uma corporalidade que ultrapassa os estreitos limites das identidades prescritas. O dispositivo hospitalar subjetiva até seus médicos, não só suas pacientes. Não está lá nem para companhar nem para dar assistência, nem também para curar, porque muitas vezes os quadros clínicos não são curáveis, porque não são doenças. Apenas são. A medicina se beneficiaria muito se tivesse um papel de acompanhamento e empoderamento, que atualmente não tem, especialmente para nós que necessitamos de suportes técnicos específicos. E podemos dizer o mesmo dos feminismos. Já não têm mais. Mas pelo lado da práxis médica, o mundo está dividido entre saudáveis e doentes e isso gera muitas vantagens, em especial para aqueles que detêm o protocolo que define quem fica de um lado e quem fica do outro. Para mim o aparato médico é o braço armado da biopolítica. Se você se descuida, podem ser pessoas realmente perigosas, dotadas, por um lado, do saber/poder do qual ninguém desconfia ou questiona e, por outro, das armas/ferramentas. Não tenho uma relação harmoniosa com a instituição corporativa médica. Tento ir pouco e me relacionar o menos possível só com pessoas específicas com quem, sim, podemos trabalhar. Em geral me parecem pessoas embrutecidas por sua maneira de adquirir conhecimentos e por sua disciplina com pouca capacidade de empatia, e uma soberba inédita, apesar de seu embrutecimento.

Em seu livro você também afirma “As feministas continuam pensando que são melhores que as trabalhadoras sexuais e as defs”. Você acredita que o feminismo abolicionista reproduz os argumentos do capacitismo, quando essas feministas se consideram “melhores” que as trabalhadoras sexuais, partindo da ideia do corpo como algo sagrado?

O feminismo hegemônico foi historicamente capacitista como quase tudo até a atualidade – em seu essencialismo, utilizando argumentos do dispositivo médico corretivo-normalizador para ditar quem éramos as mulheres e quem não era (primeiro foram as lésbicas, depois foi a vez das trans e amanhã, quem sabe, talvez as deformadas). Nos dias de hoje encontramos frases feministas tais como “a transexualidade é parte da dominação masculina”. Sem dúvida as trabalhadoras sexuais, assim como o “coletivo de diversidade funcional”, isto é, nós as defs/aleijadas, somos um exemplo contundente de que a dissidência não é necessariamente sexual, e que muitas vezes, como acontece com o véu na Europa, o que aparentemente é o epítome do tradicionalismo conservador (assim como essa imagem da suposta beleza hegemônica da trabalhadora sexual, que é sempre bastante mítica e quando se desce à realidade a coisa não é bem assim) na realidade tem potências contestatárias em confronto contra a ordem estabelecida (como o véu dentro da disputa conta a hegemonia ocidental). Atos de confronto e desobediência, inclusive sem o saber, o que me parece ainda mais fascinante. Devir Antígona.

Bárbara G. F. Muriel:

Qual é, para você, a potência política da dor? E das nossas cicatrizes?

Uma pensadora brasileira, Suely Rolnik, fala de “corpos vibráteis”. Acredito que somos isso: corpas que se agitam, vibram, estremecem, fendem-se, gritam, fazem ranger o maquinário do normal. Não concebo, desde antes de meu diagnóstico, uma vida sem dor. Não consigo pensar em nada pior que a não-dor. Recordemos que a dor não é o sofrimento e que a dor, como foi longamente estudado desde Sade, Genet ou Foucault até o grupo Samois, pode nos lançar em abismos insondáveis de extremo prazer ou autoconhecimento. Se você me permite ser poética, eu diria, citando o verso do poeta irlandês Arthur O’Shaughenessy, que somos quem movemos e agitamos o mundo. A revolução é das frágeis sencientes cuja “saúde” tão vulnerável tem a potência de fomentar uma melhor escuta do existente e da vida. Caso contrário, será simplesmente publicidade para conseguir uma melhor posição social ou pornô inspiracional. Fazer da dor física, do vazio existencial, uma experiência política é o desafio. Creio que é disso que fala Games of Crohn tanto quanto outras produções ou criações de corpos vibráteis, como as suas na área das artes visuais, por exemplo. Doente e anormal são, para mim, denominações feitas em referência a um limite que me circunscreve no entorno ou contra a normalidade. É claro que uso esses conceitos quando é necessário incomodar. Mas dentro de mim não acredito nisso. Convivo com uma gata que é quase cega e surda como uma parede. Não tem diagnóstico, portanto, apesar de ser muito particular aos meus olhos, ela simplesmente existe uma vida prazerosa sem perceber que não vê ou não ouve. Sua vida é assim. E me parece que por isso mesmo (e não apesar disso mesmo) vive não só muito alegremente, como desdobrou uma grande quantidade de potências: por exemplo, não teme o barulho da metrópole onde vive, não se assusta. Sua suposta incapacidade se vê como uma adaptação. Creio que muitas de nós poderíamos ser como a Elliot, a gata surda-cega. É o modelo social que nos impede. Como já disse por aí, sinto que uma boa parte de mim não participa deste banquete sem piedade chamado humanidade, ama e soberana de tudo o que existe, que aplaina e asfalta a rodovia do progresso, e celebro isso, celebrarei sempre, não importa o quanto doa, porque qualquer coisa que me faça menos humana (entendendo-se por humano esse ideal regulatório de perfeição e normalidade que ninguém resiste e por humanismo essas soberanias submetidas contra as quais nos advertia Foucault em Microfísica do Poder) me cai bem e me da alegria, isto é, incrementa minhas potências de agir ainda que às vezes tenha que estar quieta, ainda que no ínterim tenha que fazer terríveis concessões.

Miriam Vega:

Nem toda def carrega implícita uma dor física em sua corpa, e nem toda corpa que dói é considerada def pelo sistema imperante. Como você acha que este vazio afeta o interior da subjetividade que se reconhece como def? Como o sistema representa o corpo def?

O capacitismo cria seu próprio modelo estigmatizador em ambos os sentidos da deficiência. Só são defs as pessoas com as chamadas deficiências múltiplas e as consideradas com suas capacidades intelectivas devastadas, como tive que escutar de uma professora especializada em deficiência para referir-se a alguém surdo e cego. Portanto, se você pode se movimentar, se não está em cadeira de rodas, e não finge uma certa imbecilidade, você não é def, invisibilizando toda uma série de fatores com suas necessidades específicas que não são visíveis a primeira vista. Estamos realizando com Mai Stansauger, com quem fizemos o documentário do Crohn, uma série de vídeos que se chama Mutantes y Orgullosas sobre condições invisíveis: endometriose, ostomia, esclerose múltipla, HIV, diferentes diagnósticos psiquiátricos e Crohn. Toda essa gama de pessoas que em muitos casos são defs sem documentos, cidadãs de segunda de uma cidadania de saúde já subalterna. Este fenômeno de produzir, através da opressão, um estigma que por sua vez nega importância e existência àquelas pessoas não estigmatizadas também se observa frequentemente em outros fenômenos como o estupro ou o aborto: enquanto seguirmos pensando que o estupro só existe quando ocorre no meio da noite, onde um desconhecido te dá uma paulada na cabeça e te arrasta para um descampado, negaremos a existência de quadros muito mais sutis, infrafamiliares, com gente de confiança, todo tipo de abusos que muitas vezes dificilmente são detectáveis até para a pessoa que os sofre, que só os verifica em seu mal-estar. E assim também com o aborto, que é considerado um descuido ou má sorte e não um risco ou um efeito colateral intrínseco a toda relação penetrativa-coital onde estão envolvidos líquidos seminais.

Não acredito nas olimpíadas da opressão, por isso não vale a pena competir para ver quem sofre mais a opressão capacitista e sim detectar melhor quem se beneficia com o regime e como desmantelá-lo. Do mesmo modo não acho que vivo melhor porque me desloco sobre minhas duas pernas e não sobre umas próteses de carbono ou uma cadeira de rodas. Também não creio que existam quadros ou condições mais sofridos que outros. Segundo quem tal ou qual vida é pior que a outra? Não me consta que ter maior capacidade de movimentos torne uma vida mais rica só porque há um mundo feito para pessoas com certas características e não outras. Creio que é necessário nos juntar, nos encontrar no que temos em comum nesta forma realmente divergente de habitar o mundo e visibilizar os pontos de encontro: como se explica no famoso vídeo de Sunaura Taylor com Judith Butler, os crimes de ódio que ainda ocorrem contra as populações cujas expressões de gênero e desejo excedem os ditames da heterossexualidade se baseiam em como as pessoas são vistas, ou se movem ou se deslocam, tal como acontece com nossa comunidade aleijada ou com o coletivo de trabalhadoras sexuais.

Neste livro você formula um diário que lhe sustenta durante a internação e a recuperação de seu corpo, inclusive poderíamos falar que a palavra é formulada como uma prótese que te mantém para não te ver cair. Mas por outro lado poderíamos dizer que seu princípio ativo funciona com sua leitura, com a responsabilidade que o corpo leitor adquire para entender que este livro não tem o propósito de contar para equilibrar o excesso, mas de eriçar consciências e de fazer máquina que modifique e esbofeteie o corpo capacitista. Com tudo isso me surgem várias perguntas: como fazer o corpo capacitista entender que o que impera não é a terapia, mas sua maneira de proceder?

Adoro as suas perguntas. Antes de tudo, obrigada. Eu não quero fazer ninguém entender nada. Quem puder sentir conosco, que sinta, o resto, sinto muito, rezarei a Baphomet para que fiquem bem. Ou como dizia nosso velho e querido comediante Fernando Peña, “desejo a todos que adoeçam de uma doença terminal, mas não morram”… ou algo assim. Ultimamente ando desejando muito que as pessoas adoeçam. Vai depender de sua maneira de sentir ou entender “a doença” se me dirão obrigado ou me mandarão cagar. Mas não creio que possa haver diálogo com quem se beneficia de nossa opressão. Assim como as afrodescendentes e outras corpas feitas sob os efeitos da opressão branca não se sentam para pensar como fazer branquinhas antirracistas como nós entenderem, mas sim como desbaratar o regime.

A partir de seu posicionamento de professora, de querer compartilhar conhecimento, de ensinar paradigmas úteis, você acredita que se deve com o foco no discurso fazer entender o outro corpo ou, pelo contrário, é melhor investir forças em outras questões que elevem nossas potências?

Meu trabalho docente é um trabalho vivível. Simplesmente isso. Se eu soubesse, seria eletricista. Não há nada mais por trás disso. Lamento não ter pensado em ser puta antes, queria ter sido trabalhadora sexual bem jovem por muito dinheiro, quando ser magra e estar hiperdepilada não me custava tanto esforço.

Recomendo que sempre o esforço e o afã estejam orientados para o incremento da própria potência. Como a potência só se incrementa compondo com outros corpos (não necessariamente humanos), então nunca se está inteiramente só ou isolada e graciosamente se dá a volta no individualismo. Devemos repelir com suma força a tentação de ajudar os outros e fazer o bem, de fazer alguém entender algo. É um lugar não só infrutífero como também problemático, como de púlpito: atrás dessa função pseudopedagógica bondosa, que nada tem a ver com a capacidade ético-afetiva, se encontra Hitler jogando bridge com a madre Teresa de Calcutá. Quem queira sentir, que sinta. Os chamados estão destinados a quem pode sentir, e o devir é sempre minoritário.

Qual a sua opinião sobre a arteterapia e a prática do arteterapeuta? Até quando vamos continuar infantilizadas?

Nem sei o que é, e pelo jeito que soa, parece que não me interessa. Em princípio desconfio da arte, exceto que seja ofensiva e quando é muito ofensiva, pois aí já não é considerada arte em nosso mundo atual. Na realidade desconfio de tudo o que não ofenda. Na verdade, não sei te dizer até quando. Só sei o que dizia Beauvoir: o opressor não seria tão forte sem a cumplicidade do oprimido. Se bem que pode haver usos estratégicos desse infantilismo, creio que é bom não acreditar no jogo que se joga para ganhar um lugar. Quando você consegue que sua interpelação capacitista lhe dê uma única existência, cagou. O devir “menina” não tem nada a ver com ser uma eterna menininha por ser def. Como o coletivo def se encarregou de desenvolver ad nauseam nos últimos tempos todas as corpas que assim desejem devem ter acesso ao mundo dos prazeres corporais, um dos quais fundamentalmente é o exercício da sexualidade. Não tenho soluções nem respostas, mas me dou conta que as pessoas Down, fala dizer alguém, merecem trepar quando assim desejarem, como qualquer outra pessoa. Especialmente as neurodivergentes que ficaram para trás por ser sempre consideradas eternas querubinas assexuadas. Não tenho ideia de como, mas sei que é necessário. Talvez tivéssemos que perguntar a elas para ver o que têm a nos dizer. Mas cada vez que alguém tenta abordar esses temas, assim como a sexualidade infantil, aparece o anjo protetor da infância, essa invenção do capitalismo industrial ao lado da família nuclear, para nos calar com seu futurismo reprodutivo e já não se pode dialogar.

Volto a reler algumas páginas de Games of Crohn para debruçar-me sobre o termo “paciente”. Tenho arrepios quando este termo é explorado a tal ponto, que parece que o comportamento que se espera do corpo que experimenta algum tipo de enfermidade é algo que poderíamos definir como a máxima submissão antes de ser agredido fisicamente. Qual sua opinião sobre toda essa violência intrínseca invisibilizada e que aos olhos do não def pode parecer um delírio? Você poderia nos falar desta expropriação do corpo?

O dispositivo médico produz o corpo paciente, o objetifica, até a posição para examinar é ideal para a prática de auscultar e apalpar, mas não para o corpo que é tratado como paciente, do grego pathos, sofrer, que por sua vez deriva de patheuomai, ser penetrado analmente, ser infantilizado. Devemos fazer nossas entradas hospitalares com técnicas para repelir essas investidas que nos produzem como pacientes, isto é, acatadoras acríticas do poder médico. E se não podemos sós, coisa que perfeitamente pode acontecer, devemos preparar outras para que nos apoiem e acompanhem quando nós mesmas não podemos fazer. Se vamos nos empenhar para fazer alguém entender algo, que seja às amigas que nos levam até a plantonista, para que obriguem – como for – o pessoal médico a nos dar a morfina antes que caiamos desvanecidas no delírio da dor. Para as que estamos obrigadas a passar tempos internadas, temos que recordar que não estamos à disposição de quem pratica. Como a prisão, o hospital também é um espaço de luta, não um paraíso neutro.

Tendo chegado a este ponto de estigmatização do corpo “doente”, talvez tivéssemos que começar a nos preocupar por todos esses corpos que saíram prejudicados do sistema médico, econômico, político e social. Ocorre-me a fantasia, porque vejo isso como uma necessidade, de criar espaços que ajudem esses corpos “doentes”, não para saber gerir sua doença mas para restabelecer sua psique depois do dano e do grau de violência que passaram depois de se relacionar com o corpo saudável. Em seu caso, como você experimentou estas situações de violência? Neste processo de Crohn, o que mais lhe prejudicou: a doença ou a relação com o ser humano e como se relaciona com a doença?

Aonde você quer restabelecê-la? Tenho vontade de lhe dizer que nasci prejudicada. Mas, outra vez, supor o dano é supor que há algo perfeito e a verdade é que não há condições em estado selvagem. Somos operações de diagnóstico. As máquinas só funcionam se quebrando. Para mim o Crohn não é uma doença. Não sinto que me prejudique, ainda que, bom, indubitavelmente tenha alguns efeitos, mas isso significa que meu corpo vive dessa maneira, é a maneira de funcionar que ele tem. Abraço amorosamente meu destino, amor fati. E finalmente, o pior mal é viver no mundo, mas não meu corpo e o que está nele. O sutil equilíbrio entre não me deixar subjetivar vítima e confessar que me foi causado um dano. Não tenho solução mas sei me dar conta que a culpa não é do Crohn, e de fato ele me deu tanto que hoje eu já não poderia renunciar a ele. Ele me deu que estou sendo agora. E isso eu não mudaria.

Uma das singularidades deste livro foi o grau de verdade com que ele funciona, a omissão de filtros para não cair na diplomacia, apostar em um texto cru ainda que ofenda e doa. Parece que somos capazes de absorver índices desproporcionais de violência, imagens onde se derrama carne e sangue, praticar o desafeto com cada gesto opressivo. Mas por outro lado estamos nos tornando intolerantes com a palavra, com a mensagem de whatsapp que não levam emoticon de sorriso porque senão parece que está dando bronca… parece que não se pode dizer nada.

Como li Paco Vidarte, devolver ao mundo merda e peidos, cagar no pau, se vou viver com cólicas porque o mundo está como está, então todas vamos ter gastroenterocolite à noite. Eu me dedico a isso. Sinceramente, não há nada mais restaurador para mim que um bom e querido deboche. E a resposta da oprimida não é o mesmo que o deboche insider, que a violência ou o bullying do opressor. Jamais entregar uma imagem reconciliada ao público leitor. Se a literatura é um espelho onde se contemplar bonita, não faço literatura. Escrevo para incomodar quem está cômodo e para dar conforto a quem se incomoda com essa comodidade.

Se eu tivesse que tirar uma contraleitura de Games of Crohn, me atreveria a dizer a importância e a decepção que carrega a palavra e o significante amizade como fio condutor que move parte desta obra, a deserção como lugar para se cuidar e o saber dar até onde é possível sem que te diminuam. Por tudo isso, eu gostaria de lhe perguntar em que momento vital você se encontra em relação à amizade? Você considera que o Crohn é uma aliada para lhe ajudar nesta ação de fechar e abrir a alma para outros corpos?

No pior momento possível! E celebro isso, fiel a meu estilo, dançando a noite toda com aquilo que veio a mim. Sinceramente, já não me conto historinhas idealizadoras sobre isso. E me encontro mais forte que nunca na solidão, mais à vontade que nunca comigo mesma. Encontro-me aberta às surpresas, mas com cautela, administrando doses baixas mas intensas de sociabilidade, tudo o que pode ser retirado da comunidade terrível e envenenada. A vida passa em um peido, e não fizemos o que gostamos de fazer. Só nos juntamos para socializar. E isso para mim não é vida.

Bárbara G. F. Muriel:

Você acha possível tecer aliança a partir dos feminismos?

É possível e é fundamental voltar a construir um feminismo (ou como o queiramos chamar, que para mim dá na mesma como o chamemos) que saia dos esquemas capacitistas e humanos de se manifestar (muitas de nós não poderemos ir amanhã à passeata porque se tomamos chuva o sistema imunológico nos manda a conta, por exemplo). Continuo acreditando na figura incômoda, incorrigível, híbrida de ciborgue, transpassando com o corpo dimensões estanques e exercendo as políticas do devir. Quanto dos feminismos originais essas incômodas alianças ilegítimas terão, eu ignoro. Pelo momento onde vivo, o feminismo ainda não se deu conta que continuar demandando ao Estado Nazional uma lei de aborto legal no hospital com justificativas do tipo “gravíssimas malformações do feto” é um erro capacitista e uma reafirmação muito perigosa da biopolítica que patologiza processos como parir ou abortar, que nada têm a ver sequer com um quadro clínico: nem o hospital é especialmente melhor para nada que não seja uma doença, como abortar ou parir (de fato é um lugar perigoso, de judicialização e de violência para as mulheres) nem é necessário colocar justificativas eugenistas para reafirmar a autonomia corporal de interromper um processo biológico não desejado. Aqui – e provavelmente em lugar nenhum – o feminismo não se deu conta, nem quer se dar, que a ciência surge a partir do maior massacre feminicida da história deste planeta, que se chamou caça às bruxas, em cujas fogueiras se queimaram as revoltas camponesas e indígenas tanto da Idade Média europeia quanto nas regiões autóctones da chamada América Latina (nem nome próprio temos) e seus conhecimentos ancestrais. Ou que a obstetrícia, especificamente, tem uma genealogia de tortura até o inenarrável de mulheres africanas escravizadas por senhores cientistas brancos sádicos. Estes feminismos vivem sob o jugo do paradigma moderno da ilustração e a única oposição a isso é um bando de autogestionárias da ignorância que ou te responsabilizam por sua condição por você ter vivido de tal ou qual maneira ou querem reduzir o dano produzido por uma ELA com um chá de sei lá o quê. Por isso se canta “aborto legal no hospital”.

Mas voltando ao aborto, o simples desejo deveria bastar para que fosse feito como e onde se quisesse, sem perigo de ir presa. O feminismo deveria lutar para fazer a vida de todas, incluídas as malformações tipo o polegar opositor da macaca Lucy, vivíveis e não construir a ideia de que sob certas pautas, ou certas razões, abortar está bem. Em todo caso, deveríamos nascer só as que vamos ser consideradas “malformadas”, para ver se o capitalismo pode subsistir quando sejamos só nós, as que não podemos trabalhar dentro dele. Só proponho uma distopia tão ridícula como isso de que tem que haver uma justificativa para abortar ou que ter uma cria “malformada” (insisto com a palavra porque ficou na redação do projeto de lei apresentado pelo feminismo na Argentina sem que ninguém dissesse nada nas plenárias) é pior que outra coisa. Tal como vejo, ter prole é sempre uma fatalidade à qual deveríamos todas nos opor. Mas sou muito clássica. Este feminismo caiu em desuso.

Shukare Otero:

Games of Crohn é tanto o nome do seu livro como do documentário que você filmou junto com Mai Stansauger. Que aspectos narrativos, filosóficos, poéticos, etc., o formato audiovisual permitiu desenvolver e quais o formato escrito permitiu? Que relação houve entre ambos?

Não muita, para lhe ser honesta. Exceto que a capa do livro e o documentário estiveram a cargo de minha amiga Mai Stansauger. Mas não foi muito pensado. Não sei se há relação além estar unidos pela narrativa sobre uma condição e por suas fazedoras. O documentário, apesar de dialogar como viver com Crohn depois de estar internada, saiu antes. Ao contrário, o livro, que ia sendo escrito em tempo real, saiu depois.

A escrita é uma ferramenta para o processo de ressignificação e empoderamento, para extrair potências daquilo que poderia nos entristecer?

Para mim é, não sei se pode ser universalizável nem para todo mundo. Para mim, escrever é uma maneira de sobreviver, sempre foi. Escrever o gênero que for. Por isso é paradoxal, porque se minha potência de agir tivesse ficado completamente obturada não teria poderia tê-lo feito. Cada corpa deve encontrar sua máquina de guerra contra as paixões tristes.

O texto vai indo e vindo de uma linguagem mais íntima, mais informal, a mais poética, a mais filosófica. O que te leva a se mover entre estas linguagens a cada momento?

Suponho que sou assim… Em minha vida em geral também. Por um lado, adoro a linguagem coloquial que utilizo em minha cotidianidade, inclusive para falar de filosofia, mas, ao mesmo tempo, me interessa abordá-la a partir de seu jargão específico sem me perder da palavra poética que no final creio que é a que desautomatiza a percepção. Por isso os três registros, mas não é uma questão que busco, mas que me sai assim.

O que supõe fazer filosofia a partir dos acontecimentos íntimos, da própria experiência?

Parece-me que não há outra maneira de fazê-la, pelo menos para mim não interessa. Existe essa velha frase de Nietzsche que tanto amo, “de tudo o que se escreve, só me interessa aquilo que se escreve com o próprio sangue. Escreva com sangue e saberá que o sangue é espírito”. Por outro lado, me calhou ser uma pessoa que eu gosto de ser, me acho interessante e acho interessante o que me acontece. Portanto, não poderia ter escrito de outra forma. Nem consigo entender bem a diferença, certamente muito universitária e fora de moda, entre a experiência, o corpo, a filosofia e a ficção literária, como se uma coisa não estivesse imersa ou entrelaçada (ou grudada) com a outra.

Boa parte de sua terminologia vem de textos filosóficos. Você acredita a sua leitura é difícil para quem não costuma ler filosofia? É necessário ler Platão para entender por que você o acusa de todos os males, por exemplo?

Nunca é necessário ler Platão. Espinosa, Nietzsche, Foucault, Wittig ou Buttler, sim. Se são difíceis, e não me consta que sejam mais que outras coisas, então vai demorar mais tempo e terão que ser lidos mais vezes. Deve-se labutar, perseverar. Eventualmente se entendem, ainda que demore. As coisas levam um tempo. Ler e entender filosofia, vivê-la, torná-la carne, poder transmiti-la depois ou dialogar na filosofia sobre a filosofia também. Se é difícil ler-me, não é por causa da terminologia, mas porque me esforço para afetar inclusive virulentamente quem me lê, e muita gente não quer isso porque não entrego uma imagem reconciliadora sobre a vida. Creio que uma filosofia como Espinosa pode estar ao alcance de quem seja. É a alta cultura, à qual é dever se opor até que seja destruída, quem dita que coisas certas pessoas podem, sim, entender, e que coisas não. É uma mentira. Se leva tempo, pois demorará mais, como tantas outras coisas…

No livro você fala de políticas antirressentimento diante das pessoas que não podem se afetar como o corpo doente, que não sabem cuidar… É mais difícil gerir o ressentimento contra quem não cuida de nós quando necessitamos mais desses cuidados?

O ressentimento é sempre difícil de gerir. Como não viver para a vingança – o que me parece uma perda absoluta de vida – sem reterritorializar um cristãozão que oferece a outra face? Não faço ideia. Creio que quem não sabe cuidar, que não sabe se afetar com um corpo assim chamado doente o que requer cuidados se perde de muita coisa, e não sabe se reconhecer nessa mesma situação, que mais cedo ou mais tarde chegará. Sei que as pessoas que estiveram próximas quando estive internada saíram mais que enriquecidas da experiência. O dilema, já não filosófico mas feminista, é por que no interior do lar da família nuclear essa tarefa recai sobre as pessoas designadas à feminilidade e por amor. Mas esse não é um problema da condição, mas do sistema capitalista que criou a família nuclear, da heterossexualidade como regime político e do capitalismo, e que submeteu as mulheres na Baixa Idade Média a ser as provedoras de alimento para as infâncias expropriadas de suas potências, incapazes ambas de produzir sua própria economia, ambas as partes recluídas no interior do lar, sem laços com a comunidade.

No livro você fala da exigência social de ser jovem até bem entrados os 40. Neste contexto, é a deficiência, o não poder ser como se supõe que deve ser a jovem, uma oportunidade para explorar ritmos de vida mais pausados, uma via para fugir das lógicas do urgente?

É um devir anciã que eu gosto muito. Essa é uma de suas potências, e a velhice, apesar do que acreditam as pessoas subjetivadas nas bondades da inovação, do novo e do jovem, tem potências maravilhosas a se invocar. Uma delas é poder dizer o que dá vontade, sem vergonha nem medo; a outra é que te deixam em paz, literalmente, já que não te solicitam socialmente. E isso dá tempo para criar e viver. Permite não responder a demanda constante da ansiedade neurótica do habitante médio da metrópole imperial.

Até que ponto existe o perigo de contribuir para a romantização das corporalidades deficientes por serem não-normativas, como ocorre com certas identidades, sem que isso suponha uma afetação real para quem observa de fora (tanto o pornô inspiracional quanto mascotes dos movimentos “progressistas”)?

Vamos ter que correr esse risco, que está sempre presente e é feroz. Cansam-me essas atividades para defs sem defs ou onde as vozes de comando são vozes que vivem de, mas não são. Fazer falar o subalterno, ser uma amplificação, quando puder. Há muito proxenetismo encoberto, isto é, gente que vive do corpo de outra def. Talvez seja uma romantização, não sei, mas creio no potencial crítico daquelas corpas definidas como anormais mas que usaram esse limite restritivo para um fenômeno singular de borda, de desterritorialização. Deficiência não é uma identidade, é o nome de uma invocação afetativa, é uma forma de vida com outras de maneira crítica contra o regime da normalidade.

Em um mundo imerso em políticas de visibilidade, de ocupação da rua ou ocupação das instituições, que formas de visibilização ou que políticas que não dependam das lógicas de visibilização desenvolvem os corpos para os quais mover-se, falar, sair à rua, é problemático e frequentemente impossível?

Creio que ninguém tenha desenvolvido isso melhor que Johanna Hedva em sua Teoria da Mulher Doente, não só como formas do político para quem, por diferentes motivos, não podemos habitar o espaço público da política (por medo, deficiência, tempo). Também creio que em uma sociedade do espetáculo como a nossa, boa parte das vezes a manifestação, especialmente a pacífica, supõe um entretenimento. Não tenho nada contra se divertir, mas saibamos disso: nossa participação política dentro das formas da política clássica foi se reduzindo à seleção de bens de consumo ou a formas do ócio recreativo mais trivial. Creio que nossos corpos são em si mesmos uma forma de protesto contra o regime de normalidade que se nega a ficar mais complexo ou a se arriscar.

Ultimamente, por ser uma questão que está me tocando muito de perto, ando me perguntando se não nos prejudicam mais as pessoas que acreditam se afetar e na realidade fazem/exibem caridade com nossos corpos que aquelas que diretamente desaparecem ou tentam não se envolver. Essa Boa Consciência que se autoafirma sobre nós sem nós e nos subjetiva “pacientes” sempre agradecidas por suas migalhas. Às vezes que nos causa mais danos são as pessoas que creem estar ajudando, e sinto que aquilo que você escrevia em seu blogue sobre a “pedagogia do opressor” é também muito adequado para as pessoas que ao acreditar que toda atenção sua deve ser agradecida, esperam que o corpo paciente seja sempre dócil, suave e educado na hora de lhes dizer o que fazem mal. Como você lida com isso? A ideia de autonomia que a maioria – ou uma grande parte – do movimento feminista utiliza é concebida como não necessitar nem depender de outras pessoas, o que vem a reforçar uma visão muito capacitista do empoderamento. É possível ressignificar o conceito de autonomia como, por exemplo, a possibilidade de determinar ou escolher o que mais convém ao próprio corpo?

Eu não lido com isso, para ser honesta. Sou muito pouco hábil com o que chamamos de “relações”. Vivo muito retirada. Também não frequento muito esse grupo doutrinário que chamamos “movimento feminista”, porque seja isso o que for, se dedica majoritariamente à política como espaço público, mas não ao político que é o espaço do tecido de redes, quando não se dedica pura e simplesmente a policiar e a competir. Prefiro optar por estar fora, dizer que não e não participar mais que de canto. O que escolhi fazer com a vida, se faz melhor sem tanto tumulto. O Crohn me fez devir anciã precocemente e me parece que está muito bem. Retiro-me do mundo, vou um pouquinho à morte onde posso pensar sem tanto barulho e sociabilidade envenenada. Por outro lado, estou completamente de acordo com a sua leitura de autonomia. De fato, não só não sou autônoma como não creio que seja desejável o ser. Sinto-me interconectada a muitas existentes, não só pessoas, que dotam minha existência de sentido e me dão vida e me parece formidável existir em rede. Efetivamente, creio que você tem uma grande definição de autonomia como aquilo com que meu corpo combina e incrementa minhas potências. Uma ideia espinosiana da potência como experiência compartilhada.

Finalmente, eu tinha a curiosidade sobre a recepção que o livro teve desde que foi publicado. Games of Crohn começou como um diário-terapia para sobreviver à clínica e ao aparato médico e agora é um livro que circula internacionalmente. Que encontros ele gerou, que respostas teve, o que se produziu ao redor da divulgação deste livro?

O livro continua sendo uma maneira de viver para mim. Mas, sobretudo, uma maneira de tocar os ovários de mais de uma feminista convencional e ortodoxa e suas boas maneiras, seja dentro do queer ou do essencialismo. Mutantes y Orgullosas, nome de nossa nova produção audiovisual. A revolução, como já disse, é das frágeis – isto é, das poderosas – ou não é.

Eva Vica:

No capítulo intitulado “Feministas enemigas de putas y enanos” (“Feministas inimigas de putas e anões”) você faz referência às feministas que se escandalizam por haver pessoas que fazem sexo com aleijades em troca de dinheiro. Qual sua opinião sobre a existência de formas de trabalho sexual especializadas nesta área como, por exemplo, xs assistentes sexuais?

Acho que a assistência sexual é uma especialização dentro do trabalho sexual, como as dominadoras, ou as “passivonas”, ou as “girlfriend experience”. Estou total e completamente a favor do trabalho sexual, em qualquer de suas variantes. Se bem que eu gostaria de viver em um mundo onde ninguém tivesse que pagar por nada, me parece que as mulheres – lato sensu – termos que continuar oferecendo certas tarefas de cuidado, atenção, limpeza, procriação, suporte afetivo e sentimental e amizade por nada mais que “amor” é um dos maiores erros políticos do feminismo da igualdade, junto da luta para que as mulheres consigamos nos equiparar à masculinidade hegemônica que produz militares e policiais. Cada vez que uma de nós se torna parte das forças repressivas de segurança, o feminismo morre um pouco. Só uma pessoa delirante, demente e desequilibrada pelo capitalismo pode achar que a igualdade é ser militar e não puta. Oxalá o abolicionismo pusesse toda a força que coloca em tentar proibir que as trabalhadoras sexuais façam/façamos o que queremos com nossas corpas em subtrair as subjetividades das solidariedades microfascistas. Por outro lado, supor que não deveria existir o sexo pago para clientes defs é um dos conceitos mais capacitistas jamais criados: como se trepar com defs por dinheiro fosse ainda pior que trepar com supostos não-defs por dinheiro ou gratis, como se a questão da deficiência, mais que um kink ou uma especialização, fosse uma tragédia que ninguém, a menos que seja muito, muito pobre, faria. Lamentavelmente, quando se fala da função social dos serviços sexuais e se usa o exemplo dos benefícios prestados ao coletivo def sempre surge o capacitismo que crê que não há dinheiro que pague a asquerosidade de trepar com uma pessoa def. Se soubessem. Se soubessem as vantagens, talvez se voltassem à especialização def para prestar serviços para o coletivo de deficiência ou arrumariam amantes defs. Esta postura me faz lembrar das pró-saco gestacional antiaborto, que falam de bebê para se referir a embriões, mas depois pedem mão dura, pena de morte e redução da maioridade penal uma vez que o “bebê” não foi abortado. Eu prefiro pensar nisso como uma aliança política e um agenciamento empoderante onde vários mundos geram um mecanismo para sobreviver e se apoiar mutuamente. Valorizo isso infinitamente.

Por que você acha que o trabalho sexual exercido de forma livre e autônoma é algo que, em geral, incomoda tanto?

Por motivos similares aos que torna incômoda uma pessoa que convive com uma condição incurável, permanente, degenerativa, dolorosa, dolorosa e, no entanto, vive bem: somos a demonstração empírica de que a vida normal não está tão boa e não é desejável; somos aquelas que em boa medida o sistema não pôde cooptar com seus discursos de vitimismo, patetismo, autopiedade, miséria e tristeza que sustenta o setor que acredita em sua normalidade como o reino deste mundo. Pois não, ser normal e sã não é a grande coisa. Não só dizemos isso, como também demonstramos empiricamente.

Shukare:

Com as perguntas sobre a especialização em diversidade funcional dentro do trabalho sexual me vinha à cabeça a ideia de que há corpas defs não só consumindo como fornecendo serviços sexuais. Há possibilidade das pessoas com deficiência trabalharem na indústria do sexo?

Claro que há! Muitas pessoas cujas corporalidades são lidas dentro do paradigma da deficiência são atores e atrizes pornôs e também são fornecedoras de serviços. Há muito kink dentro do pornô, seja industrial ou não, e do trabalho sexual. Acho muito acertado que você tenha trazido isso à discussão. Games of Crohn – Diario de una Internación está dedicado às pessoas coprófagas, por exemplo, porque com elas as diarreicas e ostomizadas compartilhamos o paraíso perverso e escatológico.