Viajando com Foucault

Esses gringos falam muita bobagem na entrevista, mas a ideia de Foucault tomando ácido no Vale da Morte por si só é maravilhosa. [makakas idosas do IGPS dixit]

Michel Foucault no Vale da Morte: uma entrevista da Boom com Simeon Wade

Boom California em 10 de setembro de 2017

Simeon Wade

Heather Dundas

Nota do Editor: Michel Foucault (nascido Paul-Michel Foucault, em 1926) foi um dos pensadores centrais da segunda metade do século XX. Nem filósofo tradicional, nem historiador por formação, Foucault analisou a interseção de verdade e história através das dinâmicas históricas específicas de poder.

Na França, Foucault foi uma figura importante no pensamento estruturalista da década de 1960 e nos anos seguintes. No entanto, nos Estados Unidos, especialmente na cultura popular, Foucault muitas vezes é considerado um instigador do movimento da “teoria francesa” que varreu as universidades americanas nas décadas de 1970 e 80. Frequentemente controversas, as análises de Foucault sobre os usos do poder na sociedade, assim como suas preocupações com a sexualidade, os corpos e as normas foram fundamentais no desenvolvimento das teorias feminista e queer.

Um dos primeiros seguidores do pensamento de Foucault foi Simeon Wade, professor-assistente de História na Claremont Graduate School. Nativo do Texas, Wade mudou-se para a Califórna em 1972, depois de obter seu doutorado em história intelectual da civilização ocidental em Harvard, no ano de 1970. Em 1975, Foucault foi convidado para ir à Califórnia ensinar em um seminário da Universidade da Califórnia em Berkeley. Após uma palestra, Wade e seu parceiro, o músico Michael Stoneman, convidaram Foucault a acompanhá-los em uma viagem ao Vale da Morte. Depois de alguma persuasão, Foucault concordou. A viagem memorável ocorreu duas semanas depois. Esta entrevista foi conduzida por Heather Dundas em 27 de maio de 2017, e foi editada em seu tamanho, clareza e precisão histórica.

Boom: o que você pode nos falar sobre a foto acima?

Simeon Wade: Tirei a foto com minha câmera Leica em junho de 1975. A fotografia mostra as montanhas Panamint, as salinas do Vale da Morte e as dunas congeladas no Zabriskie Point. Em primeiro plano, duas figuras: Michel Foucault, de gola olímpica branca, sua roupa sacerdotal, e Michael Stoneman, que foi meu parceiro de vida.

Boom: Como você foi parar no Vale da Morte com Michel Foucault?

Wade: Eu estava realizando um experimento. Eu queria ver [como] uma das maiores mentes da história seria afetada por uma experiência que nunca havia tido antes: tomar uma dose apropriada de LSD clínico em um ambiente deserto de grande magnificência e, em seguida, juntar a isso vários tipos de entretenimento. Estivemos no Vale da Morte por dois dias e uma noite. Este é um dos locais que visitamos durante esta viagem.

Boom: O que você pode dizer sobre esta fotografia? Foucault e Stoneman já estavam viajando quando ela foi tirada? E não fazia um calor inacreditável, no Vale da Morte em junho?

Wade: Sim. Nós subimos para a ocasião, por assim dizer, numa área chamada Artist’s Palette. E sim, estava muito quente. Mas à noite, esfriava, e você pode ver Foucault com sua gola olímpica no ar fresco. Fomos ao Zabriskie Point para ver Vênus aparecer. Michael colocou caixas de som ao nosso redor, já que não havia mais ninguém lá, e ouvimos Elisabeth Schwartzkopf cantar as Quatro Últimas Canções, de Richard Strauss. Vi lágrimas nos olhos de Foucault. Entramos em uma das cavidades e deitamos de costas, como no vulcão de James Turrell1, e observamos Vênus aparecer e, depois, as estrelas. Ficamos no Zabriskie Point por cerca de dez horas. Michael também tocou Three Places in New England, de Charles Ives, e Kontakte, de Stockhausen, junto com alguma coisa de Chopin… Foucault tinha uma apreciação profunda da música; um de seus amigos de faculdade foi Pierre Boulez2.

Boom: essa é uma verdadeira playlist. Mas por que LSD?

Wade: A revelação de São João na Ilha de Patmos, dizem alguns, foi inspirada pela Amanita muscaria. O LSD é um equivalente químico da potência alucinógena desses cogumelos. Muitas das grandes invenções que tornaram possível a civilização ocorreram em sociedades que usavam cogumelos mágicos em seus rituais religiosos3. Então, pensei, se isso for verdade, se o composto químico tiver tal poder, então o que isso vai fazer com a grande mente de Foucault?

Boom: Mas por que ir tão longe para ter essa experiência? Por que dirigir cinco horas de Claremont ao Vale da Morte?

Wade: A principal razão foi que Michael e eu tínhamos tido muitas viagens maravilhosas no deserto. No Vale da Morte, muitas vezes, e também no Mojave, em Joshua Tree. Se você toma LSD clínico e está em um lugar como o Vale da Morte, você pode ouvir progressões harmônicas, como em Chopin; é a música mais gloriosa que você jamais ouviu, e ela te ensina que há mais.

Boom: Até recentemente, a própria ideia da década de 1970 de, como você colocou em seu manuscrito4, um “elixir mágico” para expandir a consciência, era tão fora de moda quanto ridícula. Mas a pesquisa atual colocou essa intensa rejeição da experiência psicodélica em questão5.

Wade: E já não era sem tempo! [Durante essas viagens] eu vi o firmamento como realmente é, em todas as suas cores e formas gloriosas, e também ouvi os ecos do bigbang, que soa como um coro de anjos, que é o que os antigos pensavam que era.

Boom: Então você quis dar LSD para Foucault para que ele pudesse ter acesso a essa “música gloriosa”?

Wade: Não só isso. Era 1975, claro, e As Palavras e as Coisas havia sido publicado há quase uma década (publicado em 1966, em francês). As Palavras e as Coisas trata da finitude do homem, de sua morte inevitável, bem como da morte da humanidade, argumentando que todo o humanismo do Renascimento já não é viável. A ponto de dizer que o rosto do homem foi apagado.

Boom: Há a famosa passagem no final de As Palavras e as Coisas, postulando um mundo sem as estruturas de poder do Iluminismo: “Se essas disposições viessem a desaparecer… então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia”6.

Wade: Eu pensei, se eu der LSD clínico para Foucault, tenho certeza que ele perceberia que é prematuro em destruir nossa humanidade e a mente tal como as conhecemos agora, porque ele verá que existem formas de conhecimento além da ciência, e por causa do tema da morte em seu pensamento até aquele ponto. A tremenda ênfase na finitude, finitude, finitude reduz nossa esperança.

Boom: Então você levou Foucault ao Vale da Morte para uma espécie de renascimento, em certo sentido?

Waden: Exatamente. Foi uma experiência transcendental para Foucault. Ele nos escreveu alguns meses depois que foi a maior experiência de sua vida e que mudou profundamente sua vida e seu trabalho.

Boom: No momento desta viagem, Foucault acabava de publicar o primeiro dos seis volumes planejados para sua obra História da Sexualidade. Ele também publicou um esboço do resto da obra e, aparentemente, já havia terminado de escrever diversos volumes dela. Então, quando essa mudança pós-Vale da Morte se tornou evidente em seu trabalho?

Waden: Imediatamente. Ele nos escreveu que havia jogado os volumes dois e três de sua História da Sexualidade no fogo e que tinha que começar a escrever tudo de novo. Se isso foi só uma maneira de falar, eu não sei, mas ele destruiu pelo menos alguma versão deles e então os reescreveu antes de sua morte prematura em 1984. Os títulos desses dois últimos livros são emblemáticos do impacto que essa experiência teve sobre ele: O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si, sem qualquer menção à finitude. Tudo depois dessa experiência de 1975 é o novo Foucault, neo-Foucault. De repente, ele estava fazendo declarações que chocaram a intelligentsia francesa7.

Boom: Tais como…

Wade: Declarações mais confiantes em público, como a de que ele finalmente havia percebido quem era o verdadeiro Colombo da política: Jeremy Bentham. Jeremy Bentham tinha sido, por aquela época, uma figura muito respeitada, e Foucault começou a ver nele um vilão intelectual. E Foucault nega Marx e Engels, e diz que devemos ver Marx apenas como um excelente jornalista, não como teórico. E todas as coisas em que Foucault estava avançando foram reforçadas após a viagem ao Vale da Morte. O Foucault de 1975 a 1984 foi um novo ser8.

Boom: Você mencionou que algumas pessoas discordaram de sua experiência e acharam que você estava sendo negligente com o bem-estar de Foucault.

Wade: Muitos acadêmicos foram bem negativos neste ponto, dizendo que aquilo era interferir na mente de uma grande pessoa. Que eu não deveria mexer com sua mente. Mas Foucault estava bem ciente daquilo em que estava se envolvendo, e estávamos com ele o tempo todo.

Boom: Você pensou na repercussão que essa experiência teria em sua carreira?

Wade: Em retrospectiva, eu deveria ter pensado9.

Boom: Essa foi uma experiência única? Você viu Foucault novamente?

Wade: Sim, Foucault nos visitou novamente. Pouco depois, em sua segunda visita, que foi duas semanas depois dessa, nós ficamos nas montanhas – foi uma experiência de montanha.

Boom: Também com música e LSD?

Waden: Sem LSD, mas com todo o resto. Depois que ele foi embora na segunda vez, sentei e escrevi um relado da experiência chamado Death Valley Trip. Nunca foi publicado. Foucault o leu. Tivemos uma correspondência robusta. E então passamos um tempo fantástico com ele novamente em 1981, quando ele estava em uma conferência na Universidade do Sul da Califórnia.

Boom: Você guardou as cartas de Foucault?

Waden: Sim, cerca de vinte delas. A última foi escrita em 1984. Ele perguntava se poderia morar conosco em Silverlake, pois estava sofrendo de uma doença terminal. Eu acho que ele queria morrer como Huxley10. Eu disse que sim, claro. Infelizmente, antes que ele estivesse pronto para viajar, o alçapão da história o surpreendeu11.

Heather Dundas é candidata ao doutorado em Literatura e Escrita Criativa na Universidade do Sul da Califórnia. www.heatherdundas.com.

_________________________________ Notas

O editor deseja agradecer a Stuart Elden, professor de Teoria Política e Geografia, Política e Estudos Internacionais da Universidade de Warwick, e autor de Foucault’s Last Decade (“A Última Década de Foucault”) e Foucault: The Birth of Power (“Foucault: O Nascimento do Poder”) (Polity Press) por esclarecer uma série de questões factuais nesta entrevista. Obrigado também a Jonathan Simon.

1James Turrell, Cratera Roden, http://rodencrater.com/

2Nota do editor: Segundo Stuart Elden, “Foucault era muito mais próximo de Jean Barraqué, com quem ele tinha amizade e, por algum tempo, um relacionamento. Barraqué foi um outro compositor modernista significativo e pode ser a ele que se referem [aqui]” (correspondência por e-mail, 29 de agosto de 2017).

3“… como os sumérios, que inventaram tudo, incluindo a escrita, e os essênios, que inventaram o cristianismo”. O pensamento de Wade se alinha com as teorias de John Allegro, apresentadas em The Sacred Mushroom and the Cross (Londres: Hodder & Stoughton, Ltd., 1070). A maioria dos acadêmicos rejeitou o livro de Allegro imediatamente. No entanto, o livro foi reeditado em 2008 com um apêndice do professor Carl Ruck, da Universidade de Boston, descrevendo a longa controvérsia dos cogumelos.

4Simeon Wade, Michel Foucault in Death Valley, manuscrito inédito.

5A recente explosão de pesquisas sobre o LSD e seus efeitos é muito vasta para este documento, mas algumas publicações notáveis incluem Robin L. Carhart-Harris et al., “Neural correlates of the LSD experience revealed by multimodal neuroimaging,” PNAS 113 (2016): 4853-4858; Stephen Ross et al., “Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: a randomized controlled trial,” Journal of Psychopharmacology 30 (2016): 1165–1180; Felix Mueller et al., “Acute effects of lysergic acid diethylamide (LSD) on amygdala activity during processing of fearful stimuli in healthy subjects,” Translational Psychiatry (April 2017).

6Michel foucault, As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas (São Paulo, Livraria Martins Fontes, Ltda., 2000), 536.

7Nota do editor: os volumes 2 e 3 publicados foram escritos num roteiro completamente diferente do original, vários anos depois e com um conteúdo completamente diferente. Portanto, a afirmação de que ele os destruiu e depois reescreveu é contestável. Além disso, o roteiro original do volume 2 era uma discussão sobre o cristianismo, que foi reescrito e, ainda, foi também reformatado mais tarde para publicação no que será o volume 4 do projeto. De acordo com Stuart Elden, a publicação deste volume em francês está programada para 2018 pela Gallimard.

8Foucault discute as mudanças em seu pensamento e sua escrita em entrevistas realizadas em 1984, já no final de sua vida. Ver “A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade”, “Uma Estética da Existência”, “O Cuidado com a Verdade” e “O Retorno da Moral”. Nota do editor: Surveiller et punir: Naissance de la prison (Vigiar e Punir: Nascimento das Prisões) foi publicado em francês em fevereiro de 1975 e, portanto, sendo a viagem ao Vale da Morte em junho de 1975, é impossível que esse evento posterior tenha influenciado a leitura que Foucault fez de Bentham, etc, uma vez que as críticas são apresentadas em Surveiller et Punir, cuja tradução em inglês, sob o título Discipline and Punish: The Birth of the Prison não foi publicada até 1977. O editor deseja agradecer a Stuart Elden pelo esclarecimento sobre este ponto.

9Simeon Wade deixou a Claremont Graduate School em 1977. Após ser professor adjunto de História e História da Arte em várias universidades, obteve uma licença de enfermagem e passou o resto de sua vida profissional como enfermeiro psiquiátrico no Hospital Psiquiátrico do Condado de Los Angeles e como enfermeiro psiquiátrico supervisor no Hospital Psiquiátrico do Condado de Ventura.

10O romancista Aldous Huxley pediu a sua esposa que lhe injetasse LSD quando estava morrendo em 22 de dezembro de 1963. . http://www.lettersofnote.com/2010/03/most-beautiful-death.html

11Michel Foucault morreu em Paris, no dia 25 de junho de 1984, aos 57 anos. Simeon Wade e Michael Stoneman ficaram juntos até a morte de Stoneman em 1998. Wade agora é aposentado e vive em Oxnard, Califórnia, onde escreve e toca piano.

Grupos de Afinidade

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GRUPO DE AFINIDADE = UMA GANGUE DE RUA COM ANÁLISE DE CONJUNTURA

As ideias podem criar situações de vida ou morte, mas alguém só pode realmente lutar e morrer por si mesmo e pelas vidas de seus amigos” Chefe Joseph

Na presente luta as formas de organização a se criar devem ser aquelas apropriadas para as novas condições que são o verdadeiro conteúdo de nossos tempos. Estas devem ser formas tenazes o suficiente para resistir à repressão; formas que podem crescer secretamente, aprendendo a se manifestar de uma grande variedade de maneiras, impedindo que seu modo de atuação seja cooptado pela oposição ou simplesmente esmagado. O grupo de afinidade é a semente/gérmen/essência da organização. Ele é a junção de mútua Necessidade ou Desejo: grupos coesos históricos se uniram por necessidade comum de sobrevivência, enquanto sonhavam com a possibilidade de amor. No período pré-revolucionário os grupos de afinidade devem se juntar para criar um projeto de consciência revolucionária e desenvolver formas de lutas particulares. No período revolucionário propriamente dito eles emergirão como quadros armados nos centros de conflito, e no período pós-revolucionário vão sugerir novas formas de vida cotidiana.

Manifestações de massas têm êxito de duas maneiras: elas trazem níveis predominantes de consciência às ruas e tornam visível a quantidade de alienação ativa em nossa sociedade… e às vezes elas transcendem o tema “manifestações” para se tornarem ações de massas. Como manifestações de massas elas não conseguem fazer avançar a natureza e as formas de nossa luta – como ações de massas (contra a polícia ou contra a propriedade) elas começam a definir a direção e a realidade daquilo que nossa luta deve se tornar.

Motins” ou rebeliões são as formas mais elevadas de ação de massas que já vimos até agora. Estas rebeliões projetam a consciência de uma comunidade uma vez que (1) libera bens e áreas geográficas, e (2) envolve as forças de ocupação (GAMBÉS) na briga. Esta forma, também, tem vantagens e limitações, e é em resposta a ambas que as pessoas estão descobrindo as possibilidades teóricas/táticas de trabalhar juntas em pequenos grupos íntimos. As perspectivas para o futuro são claras em, pelo menos, um aspecto: o Homem e sua Polícia estão aprendendo “controle de multidões” e estão intensificando sua resposta à massa de gente que toma a decisão de agir transgredindo “a lei e a ordem” desta sociedade. Nossos preparativos para fazer avançar a luta devem sempre levar em conta as habilidades e tendências do inimigo. Manifestações de massas e rebeliões em comunidades continuarão a servir para necessidades específicas em muitas situações… mas no sentido geral da luta em curso é necessário que comecemos a agir da maneira que seja mais favorável para nossos meios e nossos objetivos – PEQUENOS GRUPOS EXECUTANDO “PEQUENAS” AÇÕES EM CONJUNTO COM OUTROS PEQUENOS GRUPOS/“PEQUENAS” AÇÕES VÃO CRIAR UM CLIMA GENERALIZADO DE LUTA NO QUAL TODAS AS FORMAS DE REBELIÃO PODEM SE UNIR E FORÇAR A FORMA FINAL: REVOLUÇÃO…

Já vimos a resposta dos pequenos grupos – as Comunas de Columbia, as Gangues Revolucionárias de Berkeley, os Comitês de Ação da França, e outros que até agora só são conhecidos por suas ações (Cleveland). Nos próximos meses esses e muitos outros grupos que vão se formar encontrarão dois tipos de necessidade absoluta em sua busca por criar a possibilidade de uma comunidade real:

(1) Desenvolvimento interno e segurança. Cada grupo vai continuar a criar o seu próprio senso de identidade através da síntese consciente de teoria/prática, e cada grupo vai aplicar essa identidade à realidade existente da forma mais eficaz.

(2) Relações externas com grupos semelhantes. Temos de começar a configurar essas formas de comunicação e de conhecimento mútuo que podem permitir uma maior mobilidade e maior resposta a crises mais que locais. Isso significa que teremos de começar a criar uma rede de grupos de afinidade (tanto dentro das comunidades existentes como entre essas comunidades).

Esta rede ou “Federação” deve se caracterizar por uma flexibilidade estrutural que garanta a identidade e autodeterminação de cada grupo de afinidade, bem como uma realidade organizativa que permita o máximo de ações conjuntas dirigidas à revolução total.

O conceito de grupo de afinidade de modo algum nega a validade das ações de massas, ao contrário, esta ideia aumenta as possibilidades revolucionárias dessas ações. A minoria ativa é capaz, porque é teoricamente mais consciente e taticamente melhor preparada para acender o primeiro pavio e fazer os primeiros avanços. Mas isso é tudo. Os outros podem seguir ou não… A minoria ativa desempenha o papel de um agente de fermentação permanente, estimulando a ação sem a pretensão de ocupar um lugar de liderança no movimento social. É a espontaneidade que permite o impulso para a frente, e não as palavras de ordem e diretivas de líderes. O grupo de afinidade é fonte tanto de espontaneidade quanto de novas formas de luta.

up against the wall/MOTHERFUCKERS, no longínquo século XX.

lucha

Lincoln Detox Center 3: Gangues em Nova Iorque

Descobrimos o Lincoln Detox Center através deste texto do Felix Guattari, publicado no Brasil no início da década 1980, num livro chamado Revolução Molecular. Aqui Guattari destaca o protagonismo das gangues de rua do South Bronx no programa de desintoxicação do Lincoln Hospital, coisa que não pudemos confirmar em outras fontes. Pelo contrário, como se vê nos relatos reproduzidos em outras postagens aqui no CH, os grupos que Guattari chama de “movimentos revolucionários nacionais” [Young Lords, BPP, Republic of New Afrika] aparecem sempre como os grandes articuladores do Lincoln Detox. Porém, todos coincidem com FG num ponto que nos interessa bastante: a dissolução do poder médico [da “iatrocracia”, como diriam os valentes do SPK/PF] no Centro. Desde o início, os médicos foram afastados do comando do  Programa, assumindo sempre um papel coadjuvante – recordemos a surpreendente narrativa de Vicente “Panamá” Alba de como o programa começou a utilizar a acupuntura.

As fotos parece que foram feitas por Hélio Oiticica em seu desterro novaiorquino, mais precisamente no dia 19 de novembro de 1974, numa das sessões de gravação de vídeo de Martine Barrat com as gangues do South Bronx. A respeito, Barrat diz em seu site:

Meu querido amigo Hélio Oiticica costumava nos visitar, as gangues e eu, no South Bronx. Os membros das gangues  o amavam […]

A Gerência p/ Macacas Idosas do IGPS

★★★

GANGUES EM NOVA IORQUE

Felix Guattari [tradução de Suely Rolnik]

A marginalidade é o lugar onde se podem ler os pontos de ruptura nas estruturas sociais e os esboços de problemática nova no campo da economia desejante coletiva. Trata-se de analisar a marginalidade, não como uma manifestação psicopatológica, mas como a parte mais viva, a mais móvel das coletividades humanas nas suas tentativas de encontrar respostas às mudanças nas estruturas sociais e materiais.

Mas a própria noção de marginalidade permanece extremamente ambígua. De fato, ela implica sempre a ideia de uma dependência secreta da sociedade pretensamente normal. A marginalidade chama o recentramento, a recuperação. Gostaríamos de lhe opor a ideia da minoria. Uma minoria pode se querer definitivamente minoritária. Por exemplo, os homossexuais militantes nos Estados Unidos são minoritários que recusam ser marginalizados. Nesse mesmo sentido pode-se considerar que as gangues negras e porto-riquenhas nos Estados Unidos não são mais marginais do que o são os negros e os porto-riquenhos nos bairros das grandes cidades que eles controlam, às vezes, quase que inteiramente. Trata-se de um fenômeno novo que indica direções novas. Uma simplificação corrente consiste em dizer que este tipo de gangue não põe em ação senão mecanismos de autodefesa e que sua existência é apenas a consequência do fato de que o poder politico, os partidos e os sindicatos ainda não encontraram resposta a esse problema. (Foi na esperança de achar uma tal resposta que Reagan, quando governador da Califórnia, tentou estabelecer um colossal centro de pesquisas para estudar os meios de reabsorver a violência. Seus trabalhos deveriam orientar-se na direção, apenas caricaturada, do filme Laranja Mecânica).

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É fato que, no quadro dos fenômenos de decomposição que certas grandes cidades dos Estados Unidos conhecem, a urbanização e a “urbanidade”, por mais que tenha sido feito, deixam de funcionar lado a lado. O papel de melting pot da cidade deixa lugar, nesses casos de câncer do tecido urbano, a uma aceleração das formas de segregação racial, a um reforçamento dos particularismos que vai ate à impossibilidade de circular de um bairro a outro. (A polícia, hoje em dia, só penetra excepcionalmente em certos bairros de Nova Iorque.)

Ao invés de considerar tais fenômenos como respostas coletivas improvisadas a uma carência (a carência de moradia, por exemplo), dever-se-ia estudá-los como uma experimentação social na marra, em grande escala. De forma mais ao menos consequente, as minorias sociais exploram os problemas da economia do desejo no campo urbano. Essa exploração não propõe formas ou modelos, ela não traz remédio a algo que seria patológico: ela indica, isto sim, a direção de novas modalidades de organização da subjetividade coletiva.

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Detenhamo-nos num exemplo típico: o do South Bronx em Nova Iorque. Gangues de jovens, que reúnem às vezes vários milhares de indivíduos, esquadrinham toda essa parte da cidade. Eles se deram uma organização muito rígida, muito hierarquizada e mesmo tradicionalista. As mulheres estão organizadas em gangues paralelas, mas permanecem completamente sujeitas as gangues masculinas. Tais gangues participam, por um lado, de uma economia desejante fascista, e, por outro, daquilo que certos de seus dirigentes chamam eles mesmos de um socialismo primitivo (grass-root). Destaquemos entretanto os sinais de uma evolução interessante. Em certas gangues porto-riquenhas de Nova Iorque, onde as meninas eram tradicionalmente sujeitas aos chefes masculinos, aparecem agora estruturas de organização femininas mais autônomas, e que não reproduzem os mesmos tipos de hierarquia; as meninas dizem que, diferentemente dos rapazes, não experimentaram a necessidade de uma tal estruturação. Para elas, se trata de buscar um outro tipo de organização que se diferencie da mitologia ligada a uma espécie de culto fálico do chefe.

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Toda uma série de questões pode ser colocada a partir daí:

como é que se chegou a isso, principalmente no plano da segregação racial?

por que os movimentos de emancipação foram forçados a se fazer implicitamente agentes desta segregação?

por que os movimentos revolucionários nacionais (Black Panthers, Black Muslims, Young Lords, etc…) permaneceram sem possibilidade de controle sobre esses milhares de gangues que esquadrinham, quarteirão por quarteirão, uma parte considerável das grandes cidades americanas?

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Uma certa cultura, específica das massas mais deserdadas, um certo modelo de vida, um certo sentido da dignidade humana existem nessas gangues, e poderíamos igualmente creditar-lhes certas intervenções sociais que trazem respostas a problemas que nenhum tipo de poder de Estado pode abordar. Foi assim que no South Bronx bastou que uma equipe de médicos trabalhasse junto com as gangues para que se pudesse desenvolver um sistema muito original de organização da higiene mental.

Assinalemos, em particular, a propósito do problema da droga, uma experiência das mais originais, sempre no South Bronx. Há dois anos, durante as lutas raciais, o Lincoln Hospital foi ocupado por militantes revolucionários, depois evacuado ao cabo de algumas semanas. Mas todo um andar do hospital continuou a ser ocupado e não cessou de o ser, desde este período, por ex-drogados que assumiram por si mesmos a organização de um serviço de desintoxicação. Esta instauração da autogestão num serviço hospitalar mereceria ser explorada em todos os seus detalhes. Destaquemos simplesmente alguns fatos:

o essencial da equipe é composto por ex-drogados;

os médicos jamais têm acesso direto aos doentes e aos serviços;

o centro faz sua própria polícia e um status quo pode instituir-se com a polícia do Estado de Nova Iorque;

o Estado de Nova Iorque, após haver lutado muito tempo contra o Centro, foi levado finalmente a subvencioná-lo;

fez-se uma utilização muito particular da metadona, que é empregada aqui apenas como tratamento intensivo durante alguns dias, enquanto que nos serviços clássicos sua administração dura anos e constitui uma espécie de droga artificial sujeitando definitivamente o ex-drogado ao “poder médico”.

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Mas o que e talvez o mais interessante é a conjunção da ação das gangues com esse serviço de autogestão. Ela acabou não somente por aperfeiçoar um sistema de tratamento eficaz (veem-se drogados chegar por si mesmos, titubeando, ao Centro), mas por trazer soluções a um problema mais geral, o do tráfico da droga. Com efeito, as gangues tomaram o controle da situação, na verdade meio rudemente, eliminando pela persuasão, ou mesmo algumas vezes fisicamente, os pushers (traficantes).

Certas gangues e certos movimentos negros tomaram consciência da manipulação de que eram objetos, através da droga, pelo poder de Estado. (A coisa se tomou manifesta para eles quando se descobriu que os estoques de droga, apreendidos pela polícia nova-iorquina, tinham sido substituídos por farinha e revendidos pela polícia, e isso numa escala colossal.)

Mas o exemplos de tais ações relativamente pacificas continuam sendo exceção. A violência e o medo, frequentemente alimentados pela polícia, reinam no seio das gangues. Não se pode dizer que uma tal “experiência” nos propõe um modelo de “qualidade de vida”.

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Certos esboços de organização mais sistemática são combatidos pelas autoridades, em particular as relações que começavam a se instituir entre as diferentes gangues e mesmo entre as diferentes raças (negros, porto-riquenhos, chicanos, etc…) e as relações entre as gangues locais e os movimentos implantados nacionalmente.

O fenômeno das gangues, em sua amplitude e em seu estilo atual, data de bem poucos anos. Antigamente o conjunto dos movimentos negros tinha sido submerso por uma onda de droga branca que havia chegado até os altos escalões. Mas não é ao nível dos movimentos nacionais que um início de resposta ao problema da droga foi encontrada, e sim ao nível das gangues, que aliás consideravam tais movimentos muito elitistas, comparados a elas que permanecem em contato estreito com as massas e com os pés na terra.

Alguns professores e trabalhadores sociais começaram a trabalhar com estas gangues. Um professor e uma cineasta francesa1 realizaram com eles alguns filmes em video. As autoridades toleraram mal tais ‘iniciativas, tentaram recuperá-las com fins policiais. É possível entretanto que a Rede Alternativa à Psiquiatria2 consiga refazer estas tentativas.

Notas —————–

1N. da Trad.: Guattari se refere a Martine Barrat, fotógrafa e cineasta francesa, radicada em Nova Iorque, que vem acompanhando, desde 1971 as gangues de adolescentes negros e porto-riquenhos em South Bronx. Trabalha com video-teipe, muitas vezes manipulado pelas próprias gangues, sendo um registro que rompe com o silêncio forçado deste setor da vida social norte-americana. A circulação intensa do trabalho de Martine Harrat – inúmeras exposições, artigos de jornal e revista; programas de televisão – tem levado a voz das gangues pelo mundo. Martine Harrat esteve no Brasil, em 1979, durante alguns meses, vivendo em Mangueira.

2N. da Trad.: Cf. o cap. “A Trama da Rede” do livro Revolução Molecular.

Lincoln Detox Center 2: Nehanda Abiodun relembra

Nehanda Abiodun é uma harlemita exilada em Cuba desde o final da década de 70. É considerada a Madrinha do Hip Hop na ilha. Atualmente sua segurança está ameaçada pela normalização das relações entre Cuba e os EUA, onde o FBI segue pedindo sua cabeça, assim como a de Assata Shakur. Num relato autobiográfico, Nehanda conta sua passagem pelo Lincoln Detox Center:

Quando saí da Universidade de Columbia, comecei a trabalhar em uma clínica de metadona no East Harlem. Como muitas outras pessoas naquela época, eu achava que a metadona era uma solução clínica viável para a dependência de heroína. No final, fui demitida da clínica por me recusar a aumentar a dosagem em um dos pacientes que havia conseguido parar de usar drogas ilícitas e reduzido a administração de metadona de 120 mg para 20 mg em um espaço de tempo muito curto. A opinião dos donos da clínica era que eu havia reduzido a dosagem de metadona rápido demais. Minha defesa era que o paciente não estava mais usando drogas ilícitas, não se queixava de nenhum desconforto físico e estava lidando bem com suas responsabilidades externas. O ultimato dos donos da clínica foi que eu devia aumentar a dosagem de metadona ou seria demitida. Optei por ser demitida em vez de forçar um paciente a tomar mais drogas que o necessário.

Depois que fui demitida comecei a pesquisar alternativas à desintoxicação com drogas. Foi essa pesquisa que me levou à clínica de desintoxicação com acupuntura do Lincoln Hospital. Fundada por ativistas e ex-ativistas do Black Panther Party, da Republic of New Afrika, dos Young Lords e da Students for a Democratic Society, a clínica havia tratado com sucesso de milhares de dependentes de álcool e drogas usando a acupuntura. Muito de seu sucesso se devia a um plano de tratamento holístico abrangente aliado a aulas de educação política e trabalho comunitário dos quais os pacientes tinham que participar.

As aulas de educação política possibilitavam que o paciente compreendesse sua dependência em um contexto mais político, como a dependência contribuía não só para sua deterioração individual, mas também da família e da comunidade. Era nessas aulas que aprendiam sobre o envolvimento da CIA com o tráfico de heroína, usando os sacos que traziam os corpos dos soldados mortos no Vietnã para transportar a droga. Também aprendiam como a dependência de drogas tinha sido usada como meio de enfraquecimento de movimentos progressistas nacionais e estrangeiros.

O trabalho comunitário do qual eram convidados a participar incluía tarefas como ajudar um inquilino despejado a encontrar moradia; trabalho com direitos sociais; ajudar no transporte de uma família para visitar algum parente preso; ou estar presente em um julgamento para mostrar apoio a um dos muitos presos políticos que estavam sendo jogados nas prisões por seu trabalho político.

As aulas e o trabalho comunitário eram elementos importantes para o processo de cura porque possibilitavam aos pacientes entender sua opressão de uma maneira mais global e deixarem de ser parasitas para então contribuir com o bem-estar de sua comunidade.

O Lincoln Detox deixou de existir como um centro de saúde controlado pela comunidade quando cerca de 200 membros do departamento de polícia de Nova Iorque e suas equipes da SWAT empregaram a força para fechá-lo. A justificativa oficial foi o mau uso dos recursos mas o motivo real foi revelado quando o prefeito Koch disse que “o Lincoln Detox era um terreno fértil para células revolucionárias”.

Lincoln Detox Center

Entrevista com Vicente “Panamá” Alba feita por Molly Porzing para o The Abolitionist – tradução puerca do Instituto Geriátrico Puerco Suíno.
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↑ O South Bronx no início da década de 1970: edifícios demolidos pela especulação imobiliária. Ao fundo, a bandeira de Porto Rico

O que foi o Lincoln Detox Center [Centro de Desintoxicação Lincoln]? Como e por que ele começou?

No final dos anos 60 e começo dos 70, em Nova York, vivíamos uma epidemia de drogas. Em novembro de 1970 eu tinha 19 anos e havia sido dependente de heroína por cinco anos. Comecei a usar heroína quando tinha 14 anos, o que era bastante comum entre jovens de minha geração. Cerca de 15% da população era dependente (nas comunidades no South Bronx, Harlem, Lower East Side, Bushwick no Brooklyn, incluindo todo mundo, de um bebê recém-nascido até uma pessoa idosa)1. A maior concentração de dependentes estava entre adolescentes e pessoas entre os 20 e 30 anos. A dependência naquela época era principalmente de heroína.

Nos anos 60 o governo dos EUA estava empenhado em uma guerra no sudeste asiático, popularmente conhecida como a Guerra do Vietnã, mas os Estados Unidos se envolveram em todo o sudeste asiático. Havia uma linha aérea que era uma operação da CIA para o transporte de heroína do sudeste asiático para os EUA. Hoje nós vemos nos filmes de Hollywood “gangsters” importando heroína, mas o grosso da heroína importada para os Estados Unidos era parte de uma operação do governo dos Estados Unidos, que tinha como alvo as comunidades não-brancas2, comunidades negras e latinas.

Em Nova York, a heroína devastou a maior parte do Harlem e do South Bronx. Jovens usavam heroína abertamente, cheiravam heroína nos salões de baile ou nos banheiros das escolas, e acabavam se injetando por via intravenosa. Era uma epidemia que fez o pantera negra Michael Cetewayo Tabor, um dos 21 de Nova York, escrever um panfleto chamado “Capitalism Plus Dope Equals Genocide(“Capitalismo Mais Droga Igual Genocídio), que nós usamos bastante. Em 1969 o Black Panther Party na cidade de Nova York foi dizimado pelo indiciamento de 21 panteras negras e precisava se concentrar no julgamento, deixando de atuar em outras áreas naquele momento. Devido a relação que o Black Panther Party e os Young Lords tinham, juntos começamos a ver a epidemia de heroína, a saúde geral de nossas comunidades e as posições das instituições de saúde pública contra nossas comunidades.

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↑ Lincoln Hospital: Açougue – charge do Palante, jornal dos Young Lords

O Lincoln Hospital foi construído em 1839 para receber ex-escravos que migravam do sul. Por volta de 1970, ele era a única instalação médica no South Bronx. Era uma estrutura de tijolos em ruínas, do século anterior, que nunca havia sido reformada. Era conhecido como o “açougue do South Bronx”. No antigo Lincoln Hospital (e ainda hoje), você andava pelo corredor e via sangue em todo lugar – sangue nas paredes, nos lençóis, nas macas, nos seus sapatos. Os médicos eram designados para lá para fazer estágio e aprender em negros, porto-riquenhos e na pequena comunidade branca do South Bronx.

No começo de 1970, uma mulher de nome Carmen Rodríguez3 foi trucidada no hospital e sangrou até morrer em uma maca. Depois de sua morte, os Young Lords, com a participação de alguns Panteras Negras, ocuparam o Lincoln Hospital pela primeira vez e exigiram uma assistência médica melhor para as pessoas naquela comunidade.

No começo de 1970, uma mulher de nome Carmen Rodríguez3 foi trucidada no hospital e sangrou até morrer em uma maca. Depois de sua morte, os Young Lords, com a participação de alguns Panteras Negras, ocuparam o Lincoln Hospital pela primeira vez e exigiram uma assistência médica melhor para as pessoas naquela comunidade.

Durante a ocupação, Young Lords, Panteras, apoiadores e tradutores, colocaram mesas onde as pessoas vieram relatar suas experiências de tratamento médico. A ocupação se dedicou em grande parte a mostrar que não havia tradutores no Lincoln Hospital. O South Bronx é uma comunidade predominantemente porto-riquenha, principalmente de recém-chegados que falavam espanhol ou de segunda geração que não falava quase nada de inglês. As pessoas iam para o Lincoln Hospital buscando tratamento médico e lá não havia ninguém para entender sua doença ou problema. A administração do hospital também foi confrontada com a falta de serviços para dependência, principalmente dependência em heroína. A comunidade disse ao hospital que um dos problemas era que você vinha ao hospital e não recebia tratamento algum. O hospital não deu importância a isso.

Meses depois, em 10 de novembro de 1970, um grupo de Young Lords, membros de uma coalizão antidrogas do South Bronx e do Health Revolutionary Unity Movement (uma organização de massas dos trabalhadores da saúde), com o apoio do Think Lincoln Collective, ocupou o prédio de Residência dos Enfermeiros do Lincoln Hospital e estabeleceu um programa de tratamento de drogas chamado The People’s Drug Program (Programa Popular de Drogas), que ficou conhecido como Lincoln Detox Center (Centro de Desintoxicação Lincoln).

A polícia nos cercou e nós dissemos que não sairíamos. Por volta do segundo dia, a notícia da ocupação havia se espalhado de boca em boca e tínhamos centenas de pessoas fazendo fila querendo receber tratamento para dependência. Mais ou menos um mês depois, a administração teve que reconhecer o fato de que nós não sairíamos. Eles não se decidiam em relação à proposta de usar uma verba destinada para tratamento que não havia sido usada. O dinheiro foi trazido e uma equipe foi contratada entre os próprios voluntários do programa de desintoxicação do Lincoln que começamos. É claro que os poderes constituídos não nos queriam lá, mas não sabiam como lidar com as pessoas dizendo que não devíamos ir embora. Nós ficamos e servimos ao nosso povo. Fomos muito eficientes e mantivemos nosso programa funcionando até 1979.

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↑ Panfleto do Think Lincoln Committee, organização de base fundamental para a criação do Lincoln Detox

Qual foi a sua participação?

Eu me uni à criação do Lincoln Detox desde o primeiro dia. Antes disso, meu principal objetivo era conseguir drogas, até que uma vez a Cleo Silvers4 e eu estávamos sentados em uma varanda e ela me mostrou algo muito importante. Ela me disse para olhar para um carro patrulha da Polícia da Cidade de Nova York onde dois policiais estavam vendendo heroína. Ela disse, “Olhe aqueles tiras. Olhe para quem você está dando o seu dinheiro!”. O clima em nossas comunidades naquela época era muito importante. De um lado tínhamos a epidemia de drogas, mas havia algo de revolução no ar – a mudança era algo que você podia respirar, que você podia sentir o gosto, que você podia sentir, porque o movimento era muito vibrante. Alguns dias antes, no 30 de outubro, houve uma manifestação de massas convocada pelos Young Lords5 e eu participei da manifestação, mesmo ainda sendo um dependente.

Por causa da maneira como me senti naquele dia, eu disse a mim mesmo que não podia continuar sendo um usuário de droga. Eu não podia ser um dependente de heroína e um revolucionário, e eu queria ser um revolucionário. Tomei a decisão de largar o hábito das drogas. Por coincidência, naquele dia eu liguei para a Cleo, que me falou desse lugar e dessas pessoas. Eu encontrei um casal de jovens irmãos da União de Estudantes Porto-riquenhos, que me levaram até a Cleo no Lincoln Hospital. Ele tinha acabado de ser ocupado cerca de meia hora antes. Como eu já estava saindo de minha dependência, eu não me desintoxiquei no Lincoln Detox, mas me desintoxiquei sozinho, de uma vez [cold turkey], num desafio que coloquei a mim mesmo.

Saindo desta experiência eu fui recrutado pelo Young Lords Party, talvez um mês depois do primeiro dia do programa. A presença do movimento latino no movimento revolucionário nos Estados Unidos ainda não tinha ocorrido em Nova York. Isso havia acontecido no sudoeste com os Brown Berets, mas a comunidade latina em Nova York era predominantemente porto-riquenha. Quando me juntei aos Young Lords, fui designado para o Lincoln Detox onde trabalhei como conselheiro.

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↑ “O Lincoln Hospital pertence ao povo”. A partir da esquerda: Dorothea Tillie, Cleo Silvers (sentada), Pablo Guzman (sentado), Juan Gonzalez (de pé), Andrew Jackson (sentado, rosto parcialmente oculto); outras pessoas não identificadas. Uma das poucas fotos – se não a única – do Lincoln Hospital ocupado disponíveis na rede.

O que o Lincoln Detox Center fazia? Qual era a abordagem utilizada?

Nós oferecíamos desintoxicação. Tínhamos o apoio de médicos que nos forneciam metadona, que nós então fornecíamos às pessoas em doses crescentes ao longo de dez dias para que as pessoas saíssem [da heroína], substituindo a heroína por metadona e então reduzindo os miligramas a cada dia. Depois do décimo dia você estava fisicamente limpo.

Isso também foi bem na época em que Richard Nixon abriu as relações com a China. Muita coisa foi divulgada sobre o modo de vida chinês e como os serviços de saúde eram fornecidos ao povo da China. Ouvimos falar da acupuntura. Nós lemos um artigo de revista sobre a situação na Tailândia, onde um acupunturista usou a acupuntura para tratar alguém com problemas respiratórios e dependência de ópio. Nós lemos que a estimulação do ponto do pulmão na orelha foi a chave do tratamento. Fomos até a Chinatown, conseguimos agulhas de acupuntura e começamos a experimentar uns nos outros. Nós então desenvolvemos o coletivo de acupuntura no Lincoln Detox6.

Nós também entendemos que a dependência de um indivíduo não era apenas um problema físico, mas um problema psicológico. Este era um problema generalizado em nossa comunidade, não porque nós como comunidade fôssemos psicologicamente deficientes, mas porque a opressão e as condições de vida brutais nos levavam a isso. Havia um livro chamado The Radical Therapist (“O Terapeuta Radical”) que alguns de nós lemos.

Nós desenvolvemos uma terapia que integrava educação política às discussões terapêuticas. Realizamos sessões em grupo com participantes majoritariamente negros e porto-riquenhos, dedicadas a discussões sobre o que era se sentir negro ou porto-riquenho, o que significava para alguém que era chamado de “spic”7 não entender o que porto-riquenho era. O povo porto-riquenho é súdito colonial dos Estados Unidos. Você pergunta a um porto-riquenho em geral, um porto-riquenho sem consciência e ele vai dizer: “Sou um cidadão dos Estados Unidos”. Bom, você é um cidadão indesejado dos Estados Unidos, então qual é a sensação e o sentido disso? Os efeitos do colonialismo e o tratamento que os porto-riquenhos recebem do Estado não são compreendidos porque são internalizados. Você tem que começar com o significado disso. Como você se sente com a impossibilidade da sua família te prover? Por que os tiras te odeiam? Por que a escola te odeia? Eu fui à escola pública, não sabia inglês na 5ª série e fui colocado em uma classe para “deficientes mentais”. Quais são os impactos desse tipo de tratamento por parte das instituições da sociedade? O que acontece com uma pessoa que vive nessas condições, que é espancada pela polícia e chamada de “spic sujo” ou a quem é negada a amizade, porque a pessoa é branca e você é de cor? Há um impacto cumulativo desse tipo de existência e queríamos discutir isso.

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↑ Sede dos Young Lords no Bronx

Como o Lincoln Detox incorporou atividades de organização de base no decorrer de seu trabalho?

Quando você está ocupado em correr atrás de droga, correndo atrás de dinheiro para conseguir drogas, ficando louco, ou estando em um ambiente com outras pessoas que ficam loucas com você, isso se torna um modo de vida. Quando as pessoas querem alternativas, você tem que fornecê-las. Nós não tínhamos os meios para dizer: Ok, você tem 17 anos, pode se beneficiar concluindo a escola. Aqui está uma escola com professores que se importam, com conselheiros que se importam e assim por diante, para dar às pessoas a educação desejada ou encaminhá-las a um emprego, em especial as pessoas que estivessem fora da força de trabalho.

Dado o poder natural da abordagem terapêutica, era muito importante que tudo fosse voluntário, que as pessoas tivessem vontade de fazer aquilo. Se elas aprendiam alguma coisa em nosso programa educacional e nas sessões terapêuticas, queriam fazer algo a respeito desses problemas. Queríamos encaminhá-las para que se envolvessem, se engajassem em campanhas que estavam acontecendo na comunidade.

Tínhamos gente defendendo pessoas em centros sociais, capacitando pessoas sobre os direitos dos beneficiários da previdência social, e tradutores que defendiam as pessoas que falavam espanhol. Participamos da fundação de uma coalizão para trabalhadores de minorias da construção, porque o trabalho na construção era um emprego bem pago e a indústria excluía as minorias. Essas foram algumas das coisas que fizemos, além de campanhas políticas. Algumas pessoas que vieram através de nossos programas se juntaram aos Young Lords, ao Black Panther Party ou à Republic of New Afrika. Algumas se tornaram muçulmanas e se envolveram profundamente. Outras se envolveram na campanha pela libertação de presos políticos ou começaram a criar coletivos.

Nós lutamos todos os dias – lutamos pelo direito de comer, pelo direito de ser pagos, pelo direito de ser respeitados, pelo direito de não ser fodidos pela polícia. Nós nunca pedimos nada em troca.

Quais foram alguns dos pontos fortes, sucessos, desafios e debilidades?

Houve pontos fortes e sucessos ao longo do tempo, mas nem tudo foi glória. Houve um monte de desafios e debilidades. Desde o primeiro dia, 10 de novembro de 1970, tivemos um fluxo constante de pessoas todos os dias buscando ajuda. Centenas e centenas de pessoas vieram – não estou falando de uma ou duas dúzias de pessoas – assim que a notícia sobre o Lincoln Detox se espalhou, a oportunidade para as pessoas entrarem e receberem ajuda efetiva de gente comum (não de profissionais brancos mas de seu próprio povo) que tinha um coração amoroso, desenvolvendo uma compreensão das coisas que eles precisavam articular. As pessoas vinham de toda Nova York, Long Island, Nova Jersey também. O programa Lincoln Detox tornou-se tão bem sucedido e eficaz que uma delegação das Nações Unidas nos visitou e reconheceu isso.

Naquele momento a acupuntura se tornou polêmica porque se tratava de pessoal “não-médico” prestando cuidados médicos. Então leis foram aprovadas a respeito de quem poderia praticar a acupuntura, fazendo com que só pudesse ser feita sob a supervisão de um médico que talvez nem tivesse a mínima ideia do que era a acupuntura. As lutas políticas – para manter o financiamento do programa, para manter o programa funcionando, contra a polícia local assim como a polícia do hospital que continuamente tentavam entrar no programa (o Lincoln Detox era um refúgio onde dependentes podiam ir sem medo da polícia) – foram grandes desafios. Em seguida lutamos para que o hospital cobrisse as despesas com as refeições para o programa. As pessoas vinham das ruas, não tinham nada para comer e precisavam de tratamento. Nós lutamos e, finalmente, conseguimos.

Nós também lutamos para desenvolver nossa habilidade no tratamento, acupuntura e desintoxicação. No momento em que iniciamos o programa, houve um grande pressão para a manutenção da metadona como uma forma de tratamento. A metadona é uma droga assustadora desenvolvida originalmente por cientistas nazistas com o fim de lhes fornecer opiáceos É altamente viciante e seu abandono é diferente daquele da heroína. As pessoas lentamente desenvolveram um protocolo para a desintoxicação da metadona. Podíamos desintoxicar uma pessoa da heroína em dez dias e ela ficava bem fisicamente. A metadona era muito dolorosa por muitos meses – três ou quatro, às vezes.

A existência do programa foi uma pedra no sapato do governo. Éramos revolucionários e radicais trabalhando, recrutando pessoas para fazer um trabalho que o governo não queria que acontecesse.

Uma manhã em 1979 nós chegamos para trabalhar e o Lincoln Hospital estava cercado pela polícia verificando a identificação de todo mundo que entrava. Eles tinham uma lista de nomes e os membros dos Young Lords, do Black Panther Party e Republic of New Afrika eram impedidos de entrar nas instalações e presos se tentassem entrar. Eles desmantelaram o Lincoln Detox. Um componente no qual eles estavam muito interessados era a acupuntura, porque era uma fábrica de dinheiro. Algumas pessoas hoje dizem que o Lincoln Detox ainda existe, mas isso não é verdade. Há uma clínica de acupuntura no Lincoln Hospital, mas o programa foi desmantelado.

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↑ Panfleto do HRUM, organização de trabalhadoras e trabalhadores da saúde, integrante do Think Lincoln Committee.

A colaboração entre diferentes grupos como os Young Lords, o Black Panther Party, a Republic of New Afrika e comunidades muçulmanas foi espontânea, automática, ou um esforço mais intencional para desenvolver o programa?

Esta é uma questão profunda. Há o princípio básico de unidade e respeito e há a realidade de que todos éramos obras em andamento. Não é como se você fosse uma noite dormir como um drogado e acordasse na manhã seguinte um revolucionário. Há um processo de crescimento e mudança. Como produtos da sociedade atual, não somos exemplos da sociedade que estamos construindo para o amanhã.

Colaboração e solidariedade eram muito importantes para o Lincoln Detox e ocorreram muitas lutas. Considerávamos o Black Panther Party a vanguarda do movimento revolucionário daquela época. E havia a realidade de que o Black Panther Party estava se desintegrando. Havia algumas pessoas no Black Panther Party e nos Young Lords que eram extremamente arrogantes. Tínhamos que lutar contra e combater essas tendências. Voltávamos sempre ao princípio de ver qual é o melhor interesse do povo. O resultado era muito positivo e aprendemos muito uns com os outros. Em 1973, quando o American Indian Movement entrou em confronto com o FBI em Wounded Knee, na Reserva Pine Ridge em Dakota do Sul, não tivemos dúvidas. Era nossa responsabilidade apoiar e nos engajar naquilo. Desenvolvemos uma filosofia, uma prática que nos tornava possível fazer aquelas coisas.

Que lições foram aprendidas que podem fortalecer o trabalho hoje?

Eu acho que muito do trabalho de organização que acontece hoje em dia é financiado. Você não ouve a respeito de muitas iniciativas que são esforços independentes. Uma das coisas das quais o Lincoln Detox foi parte importante foi o apoio aos irmãos da Attica durante a ocupação da Penitenciária de Attica em setembro de 1971. Fizemos umas vinte e poucas manifestações em 15 dias por toda Nova York. Nós não tínhamos a internet ou telefones celulares ou máquinas copiadoras financiadas por instituições nem nada disso. Nós nos apressávamos para datilografar panfletos, recortávamos e colávamos fotos, queimávamos estênceis.

Nós construímos um movimento e buscamos maneiras de fazer o movimento sobreviver sem financiamento do governo. Ninguém podia nos dizer o que iríamos fazer. Hoje se depende muito de verbas de fundações, e as pessoas se concentram no dinheiro e não em se engajar em campanhas. Apesar de termos forçado o governo a respaldar durante anos o nosso trabalho, no final eram eles que tinham o poder e nos botaram para fora. Nós não tínhamos o poder para continuar aquela instituição. Se nós não estivéssemos em suas instalações, ele poderiam nos calar? Eu não sei, mas a coisa poderia ter sido diferente.

Precisamos reconhecer que não podemos ter instituições dentro das instituições. Quero dizer que nós finalmente acabaríamos, de uma forma ou outra, do jeito que o Lincoln Detox acabou. Temos que pensar em termos de esforços de curto e de longo alcance. Como se livrar das prisões sob o imperialismo? Você tem que se livrar do imperialismo. Nesse meio tempo você pode levar lutas que podem levar a algumas reformas e que precisam ser estudadas e discutidas.

Podemos olhar para isso de um ponto de vista humanitário e ver que salvamos e mudamos muitas vidas, pessoas que teriam sido mortas com a heroína. Eu sou uma delas, uma de um monte de pessoas. Um monte de pessoas passaram a contribuir para o progresso, mas ao mudar o mundo os obstáculos também mudam. Depois da heroína veio o crack. Nós não paramos o flagelo das drogas em nossa comunidade.

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↑ Manifestação em apoio ao Lincoln Detox, final da década de 70

Quais são alguns dos legados ou impactos de longo prazo do Lincoln Detox Center?

Modestamente, eu não acho que haveria um novo Lincoln Hospital sem o nosso trabalho. Se não fossem as lutas que levamos, o novo Lincoln Hospital nunca teria sido construído, porque os interesses políticos não tinham nada a ver com os interesses das pessoas da comunidade. Tivemos que lutar para colocar os interesses da comunidade na linha de frente e exigir que aquele hospital fosse construído. Quando eles fecharam o velho hospital e se mudaram para o novo Lincoln Hospital, fizeram um espaço para cada departamento, exceto para o Lincoln Detox. O legado vai além disso, também. Se você entrar em qualquer hospital público de Nova York, vai ver o Código de Direitos do Paciente na parede. Isso surgiu na primeira ocupação do Lincoln Hospital. Tornamos isso realidade no Lincoln Detox.

Vicente “Panama” Alba foi membro do Young Lords Party e conselheiro do Lincoln Detox Center no South Bronx, Nova York, na década de 1970. Hoje vive em Porto Rico.

Molly Porzing é membro da Critical Resistence, de Oakland, e editora de The Abolitionist.

Notas —————–

1Em 1978 o American Friends Service Committee informou que as condições de vida no South Bronx eram similares às dos países subdesenvolvidos: 30% da força de trabalho disponível está desempregada. A taxa de mortalidade infantil é maior que a de Hong Kong. A expectativa média de vida é mais baixa que a do Panamá. A renda média per capita em 1974, de acordo com o HUD, era de 2.340 dólares, ou 40% da média nacional dos Estados Unidos (informe citado aqui)

2No original, “communities of color”. A expressão “people of color” (POC) designa toda pessoa que não incluída na categoria “caucasian”, branco. Foi incorporada pelos movimentos de libertação, e não corresponde ao eufemismo racista “pessoa de cor”, amplamente utilizado por aqui em tempos passados.

3Carmen Rodríguez, porto-riquenha de 31 anos, foi a primeira mulher a morrer no Estado de Nova York em consequência de um aborto legal, no dia 1 de junho de 1970, dezoito dias após a lei estadual que legalizava o aborto ter entrado em vigor. Este acontecimento trágico contribuiu para que as mulheres do Young Lords Party consolidassem um discurso original a favor dos chamados direitos reprodutivos, que enfatizava a necessidade das pessoas não-brancas pobres controlarem as instituições de saúde locais e das mulheres controlarem seu próprio corpo. A luta das mulheres no interior do Young Lords Party fez com que a organização, ao contrário de grupos como o Black Panther Party ou a Nação do Islã, assumisse posições a favor do aborto e de métodos contraceptivos. A inclusão de posições explicitamente feministas como pontos centrais do programa do Young Lords Party foi uma conquista das mulheres dessa organização que, em sua fase inicial, chegou a advogar um suposto “machismo revolucionário” (mais sobre o tema aqui).

4Cleo Silvers: ativista negra histórica, chegou ao Bronx em 1967 como parte do VISTA, programa governamental de combate à pobreza. No bairro, Cleo imergiu totalmente na cultura local, aprendeu a falar o espanhol e participou dos programas sociais dos Young Lords e dos Panteras Negras. Em 1970 era funcionária do setor de saúde mental do Lincoln Hospital e ativa no Think Lincoln Collective e no Health Revolutionary Unity Movement. Mais tarde trabalharia com os trabalhadores da indústria automobilística em Detroit, como membro da League of Revolutionary Black Workers e do Black Workers Congress.

5No dia 30 de outubro de 1970 o Young Lords Party organizou uma manifestação com aproximadamente 10 mil pessoas na sede da ONU, exigindo a independência de Porto Rico.

6Por sua vez, Mutulu Shakur, membro-fundador da Republic of New Afrika que participou ativamente do Lincoln Detox e hoje é um dos muitos presos políticos dos Estados Unidos, relaciona a introdução da acupuntura no programa ao contato que tinham com a I Wor Kuen, o equivalente chinês dos Panteras Negras ou dos Young Lords, surgido na Chinatown de Nova York em 1969.

7Termo pejorativo para pessoas de origem hispânica, que teria surgido da frase “No spic english”, usada pelos imigrantes recém-chegados.

William Burroughs na Homocore

O zine Homocore circulou entre 1988 e 1991. Era feito por Tom Jennings e Deke Nihilson em San Francisco, e se tornou uma referência para desertoras do heterossexualismo que não se sentiam representadas pela imprensa/política LGBT liberal assimilacionista da época. Homocore foi também um dos principais cronistas da nascente cena Queercore. Esta entrevista com William Burroughs apareceu no derradeiro número do zine. 

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W.S.Burroughs foi capa do primeiro número da Homocore, mas uma entrevista com ele só apareceria no zine três anos depois.

Esta entrevista foi feita no dia de Halloween de 1990. Graças a Deusa, porque foi o único jeito de me sentir melhor por ter perdido os cuzões do Larry Lea no Civic Center. Seguindo algumas pistas excitantes, no sábado anterior eu e meu amigo David fomos até Lawrence, no Kansas, e achamos o Sr. Burroughs. Dei a ele um calhamaço de zines queers, todos os que eu tinha à mão (Chainsaw, Sister Nobody, Pavement of Surface, Faggot, JD’s e, mais oui, alguns Homocores). Ele topou ser entrevistado para a Homocore, então ao longo dos dias seguintes eu trabalhei nos preparativos com seu secretário particular, James Grauerholtz, um homem muito doce que se lembrava de mim da River City Reunion em 1987.

Seja como for, armamos tudo por telefone (eu em Kansas City, eles em Larrytown) e meus amigos pagaram a conta (aham) de todas aquelas ligações de logística, então aqui vai um obrigado adicional para a turma Sorrels/Zastoupil.

PS: Eu também falei com o Sr. Grauerholtz por uns 20 minutos ou mais, mas por uma questão de espaço mantive só a transcrição de minha (Deke) conversa com Tio Bill (WSB). O Sr. Grauerholtz foi muito lúcido e espirituoso a respeito da situação da libertação queer e da cultura “punk”/jovem. Ele foi um facilitador maravilhoso e eu faço um agradecimento especial a ele.

PPS: Burroughs e Grauerholtz amam a Homocore, mas provavelmente não tanto quanto nós os amamos! Segue a entrevista…

Deke: Tom Jennings, o editor da Homocore, e eu nos interessamos bastante por sua discussão sobre as tongs como um modelo de grupo de proteção e apoio mútuo. No entanto, este modelo parece mais adequado para profissionais com dinheiro. Você acha que as tongs poderiam funcionar sem um montão de dinheiro e no nível da rua?

WSB: Sim, eu acho que sim. Lembre-se que [aquelas às quais me referi] tinham como modelo as tongs chinesas e boa parte dos chineses era muito pobre. A ideia era que quem tinha mais dinheiro ajudaria quem não tinha.

Deke: Bom, pelo menos nos EUA, e pelo que já vi por aí, as organizações da comunidade gay costumam ser de gente tipo empresários da classe alta. Nós [Homopunks] estamos atuando muito mais na realidade das ruas. Estamos nos perguntando como as tongs podem se adaptar melhor a nossas próprias necessidades específicas.

WSB: Bom, acho que vocês podem, com certeza, se tiverem o apoio de profissionais com as mesmas ideias. Além disso, penso que algum tipo de grupos de comandos para agir contra agressores de gays é uma ideia muito boa. Isso não precisa de dinheiro, só de dedicação, como os Guardian Angels.

Deke: Tem havido alguma discussão, como na OutWeek, sobre se homossexuais devem ou não se armar…

WSB: Eu acho que devem. Há várias armas, claro [longa pausa]. Gás lacrimogênio sempre é bom. É uma boa arma e não deixa, necessariamente, cadáveres caídos. Capsdun é o melhor gás lacrimogênio.

Deke: Capsdun?

WSB: Sim, é C-A-P-S-D-U-N. Muitos lugares, ou todos, que vendem gás lacrimogênio agora vendem Capsdun. Detém o ataque de um doberman na hora.

Deke: Pra não dizer o próximo intolerante que vier correndo atrás de você na rua! Você diria que a identidade gay em si é um meio de libertação?

WSB: Bom, de certa forma, sim. Quero dizer, eu me lembro quando era mais jovem, lá pela década de 1920, tudo era varrido para debaixo do tapete. Ninguém saía do armário. Mas isso vai nas duas direções. Uma das coisas que causam a ação antigay é o fato de que eles se atrevem a fazer barulho a respeito disso. Um monte de hétero diz: “bom, tudo bem, nós já sabemos disso, mas simplesmente não queremos que seja empurrado para cima de nós, só isso”.

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Deke: Em sua experiência pessoal, qual foi o instrumento mais eficaz que você encontrou para combater a homofobia?

WSB: na verdade eu não tive muita dificuldade com isso, pessoalmente. Bom, eu sempre costumava carregar uma arma na cidade de Nova Iorque, geralmente gás lacrimogênio ou um porrete, não tanto pelos agressores de gays, mas pela violência em geral.

Deke: Você acha que pode haver uma solução política para a intolerância?

WSB: Uh, não. Eu não penso assim. Você não pode legislar um comportamento decente.

Deke: Certo. Parece que muitos intolerantes são legisladores.

WSB: Bom, é isso mesmo, esse é o problema, claro.

Deke: Você acha que isso pode ser resolvido em seus próprios termos?

WSB: Certamente isso sempre cabe aos bons, os legisladores mais liberais que podem ser eleitos. Legisladores gays também, claro.

Deke: Como já está acontecendo, em certa medida.

WSB: Isso sempre ajuda, é um passo na direção certa.

Deke: Você vê a AIDS como uma trama biológica governamental?

WSB: Bom, seu eu tivesse que apostar meu dinheiro – estou dizendo se TIVESSE que apostar meu dinheiro – eu diria que, provavelmente, isso foi deliberado. Agora o dr. Seale de Londres, um especialista em AIDS, a atribuiu aos russos. Bom, não sei o que eles teriam a ganhar eliminando homossexuais e usuários de drogas intravenosas. E, também, é um trabalho muito simples de engenharia biológica, manipulação genética, com o vírus visna, que é encontrado em ovelhas e é sempre fatal. Existe uma coisa chamada Comitê Contra a Guerra e o Fascismo, que veio a público dizer que a AIDS é uma guerra biológica do governo dos EUA contra o povo, contra os gays e os negros.

Deke: Você acha que as populações mais atingidas pela AIDS foram alvos específicos?

WSB: Bom, é o que parece. Se você pensa na origem disso como tendo sido produzida pelo homem, induzida deliberadamente, então seguramente é muito especificamente orientada. Poderia ter sido introduzida através do negócio de agulhas. A população dependente forma um duto condutor pronto para a introdução de qualquer arma biológica ou química. Ela poderia ter sido introduzida através das agulhas. Você não pode colocar vírus em algo como a heroína, porque eles vivem por um tempo muito curto fora do corpo, mas eles podem colocá-los nas agulhas. A maioria das pessoas compra suas agulhas onde compra sua heroína. É um bem estranho que ela tivesse que aparecer pela primeira vez em usuários de drogas intravenosas, que são reconhecidamente inativos sexualmente. Você dificilmente espera que uma DST comece com um segmento da população que tem uma vida sexual bastante inativa.

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W.S.Burroughs + e-meter

Deke: Você ainda escreve?

WSB: Ah, sim, sim. Tenho um livro saindo, acho que na primavera. É a versão resumida de um livro chamado Ghost Of Chance, que é sobre Madagascar e lêmures.

Deke: Oh, era isso – havia uma história na Omni.

WSB: Sim, é isso mesmo. Aquilo era um trecho. Não tenho certeza de quando a edição completa vai sair. Essa está sendo lançada pelo Whitney Museum. George Condo, um jovem artista faz as ilustrações para o meu texto. É um texto condensado do romance. Mas espero que a edição comercial seja lançada no próximo outono.

Deke: Uma coisa que eu sempre particularmente gostei em seus livros é o que pode ser descrito como o conteúdo “pornográfico”, as cenas sexuais fora do tempo e do espaço. Você pretende escrever mais daquilo?

WSB: Talvez [pausa]. Há muito pouco sexo neste livro que acabei de terminar, The Ghost of Chance. Quando você fica velho, começa a se perguntar quanto sexo tem a ver com sexo.

Deke: O que você quer dizer?

WSB: Bom, é uma questão complicada. Os verdadeiros botões que nos provocam estímulos em muitos casos não são sexuais. [Longa pausa].

Deke: Gostaria de terminar perguntando se há algo em especial que você gostaria de dizer aos garotos, garotas, garotes queer lá fora…

WSB: Sou muito militantemente a favor e com toda certeza sinto que eles devem se defender.

Deke: Você acha que ataques preventivos podem ser justificados?

WSB: Ah, sim, com certeza; o ataque é a melhor defesa em todas as ações militares. Não espere até que ataquem, já que vão atacar.

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Entrevista: Silvia Federici e a Caça às Bruxas

por Maite Garrido Courel [via Lobo Suelto!]

Há alguns séculos ela teria sido queimada na fogueira. Feminista incansável, a historiadora e autora de um dos livros mais baixados da rede, “Caliban e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva”, fala com Números Rojos e expõe de forma rigorosa as razões políticas e econômicas que se ocultaram por trás da caça às bruxas. Seu último livro, “Revolução em ponto zero”, é uma recopilação de artigos imprescindível para conhecer sua trajetória intelectual.

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Com olhar inquiridor, a italiana Silvia Federici está há mais de 30 anos estudando os acontecimentos históricos que deram lugar à exploração social e econômica das mulheres. Em seu livro “Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva” (Tinta Limón ediciones, 2010), fixa sua mira na violenta transição do feudalismo ao capitalismo, onde se forjou a fogo a divisão sexual do trabalho e onde as cinzas das fogueiras cobriram de ignorância e falsidades um capítulo essencial da História. Federici fala com Números Rojos de seu escritório no departamento de História da Hofstra University de Nova Iorque sobre bruxas, sexualidade e capitalismo e propõe “reviver entre as jovens gerações a memória de uma longa história de resistência que hoje corre o risco de ser apagada”.

Como é possível que a matança sistemática de mulheres não tenha sido abordada mais que como um capítulo curioso nos livros de História? Nem sequer me recordo que tenha sido dado na escola

Este é um bom exemplo de como a História é escrita pelos vencedores. Em meados do século XVIII, quando o poder da classe capitalista se consolidou e a resistência em grande parte foi derrotada, os historiadores começaram a estudar a caça às bruxas como um simples exemplo de superstições rurais e religiosas. Como resultado disso, até não muito tempo atrás, poucos foram os que pesquisaram seriamente os motivos que se escondem por trás da perseguição às “bruxas” e sua correlação com a instauração de um novo modelo econômico. Como exponho em “Calibã e a bruxa”, dois séculos de execuções e torturas que condenaram milhares de mulheres a uma morte atroz foram liquidados pela História como produto da ignorância ou de algo pertencente ao folclore. Uma indiferença que ronda a cumplicidade, já que a eliminação das bruxas das páginas da história contribuiu para trivializar sua eliminação física na fogueira. Foi o Movimento de Libertação das Mulheres dos anos 70 que reavivou o interesse pela caça às bruxas. As feministas se deram conta de que se tratava de um fenômeno muito importante, que havia dado forma à posição das mulheres nos séculos seguintes, e se identificaram com o destino das “bruxas” como mulheres que foram perseguidas por resistir ao poder da Igreja e do Estado. Esperemos que, sim, ensinem às novas gerações de estudantes a importância desta perseguição.

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Há algo, também, que inquieta profundamente, e é o fato de que, salvo o caso dos pescadores bascos de Lapurdi, os familiares das supostas bruxas não se levantaram em armas em sua defesa, depois de haver lutado juntos nos levantes camponeses.

Desafortunadamente, a maioria dos documentos que temos sobre a caça às bruxas foram escritos por aqueles que ostentavam o poder: os inquisidores, os magistrados, os demonólogos. Isto significa que pode haver exemplos de solidariedade que não tenham sido registrados. Mas devemos ter em conta que era muito perigoso para os familiares das mulheres acusadas de bruxaria que fossem associados a elas e mais ainda se levantar em sua defesa. De fato, a maioria dos homens que foram acusados e condenados por bruxaria eram parentes das mulheres suspeitas. Isto, é claro, não minimiza as consequências do medo e da misoginia que a própria caça às bruxas produziu, já que propagou uma imagem horrível das mulheres, as convertendo em assassinas de crianças, servas do demônio, destruidoras de homens, que os seduziam e os tornavam impotentes ao mesmo tempo.

Você expõe duas consequências claras no que se refere à caça às bruxas: que é um elemento funcional do capitalismo e que supõe o nascimento da mulher submissa e domesticada.

A caça às bruxas, assim como o tráfico de escravos e a conquista da América, foi um elemento imprescindível para instaurar o sistema capitalista moderno, já que mudou de uma maneira decisiva as relações sociais e os fundamentos da reprodução social, começando pelas relações entre mulheres e homens e mulheres e Estado. Em primeiro lugar, a caça às bruxas debilitou a resistência da população às transformações que acompanharam o surgimento do capitalismo na Europa: a destruição da posse comunal da terra; o empobrecimento massivo e a inanição e a criação na população do proletariado sem terra, começando pelas mulheres mais velhas que, ao não possuir uma terra para cultivar, dependiam de uma ajuda estatal para subsistir. Também se ampliou o controle do Estado sobre o corpo das mulheres, ao criminalizar o controle que estas exerciam sobre sua capacidade reprodutiva e sua sexualidade (as parteiras e as anciãs foram as primeiras suspeitas). O resultado da caça às bruxas na Europa foi um novo modelo de feminilidade e uma nova concepção da posição social das mulheres, que desvalorizou seu trabalho como atividade econômica independente (processo que já havia começado gradualmente) e as colocou em uma posição subordinada aos homens. Este é o principal requisito para a reorganização do trabalho reprodutivo que exige o sistema capitalista.

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Você fala do controle dos corpos: se na Idade Média as mulheres exerciam um controle indiscutível sobre o parto, na transição ao capitalismo “os úteros se transformaram em território político controlados pelos homens e o Estado”.

Não há dúvida que com o advento do capitalismo começamos a ver um controle muito mais estrito por parte do Estado sobre o corpo das mulheres, levado a cabo não só através da caça às bruxas, mas também através da introdução de novas formas de vigilância da gravidez e da maternidade, e a instituição da pena capital contra o infanticídio (quando o bebê nascia morto ou morria durante o parto, se culpava e se executava a mãe). Em meu trabalho sustento que estas novas políticas, e em geral a destruição do controle que as mulheres na Idade Média haviam exercido sobre a reprodução, se associam com a nova concepção que o capitalismo promoveu do trabalho. Quando o trabalho se converte na principal fonte de riqueza, o controle sobre os corpos das mulheres adquire um novo significado; estes mesmos corpos são então vistos como máquinas para a produção de força de trabalho. Creio que este tipo de política é ainda muito importante hoje em dia porque o trabalho, a força de trabalho, segue sendo crucial para a acumulação do capital. Isto não quer dizer que em todo o mundo os patrões queiram ter mais trabalhadores mas, sem dúvida, querem controlar a produção da força de trabalho: querem decidir quantos trabalhadores estão produzindo e em que condições.

Na Espanha o Ministro da Justiça quer reformar a lei do aborto, excluindo os casos de malformação do feto, justo quando a assistência social do governo desapareceu.

Nos Estados Unidos também estão tentando introduzir leis que penalizem gravemente as mulheres e limitem sua capacidade de escolher se desejam ou não ter filhos. Por exemplo, vários estados estão introduzindo leis que fazem que a mulher seja responsável pelo que acontece ao feto durante a gravidez. Houve um caso polêmico de uma mulher a quem acusaram de assassinato porque seu filho nasceu morto e depois se descobriu que havia usado algumas drogas. Os médicos excluíram o consumo de cocaína como causa da morte do feto, mas foi em vão, a acusação seguiu seu curso. O controle da capacidade reprodutiva das mulheres é também um meio de controlar a sexualidade das mulheres e seu comportamento em geral.

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Você mesma coloca: por que Marx não se questionou sobre a procriação como uma atividade social determinada por interesses políticos?

Esta não é uma pergunta fácil de responder, já que hoje nos parece evidente que a procriação e a criação dos filhos são momentos cruciais na produção de força de trabalho e não por casualidade foram objeto de uma regulação muito dura por parte do Estado. Creio, no entanto, que Marx não podia se dar o luxo de ver a procriação como um momento da produção capitalista porque se identificava com a industrialização, com as máquinas e a indústria em grande escala, e a procriação, como o trabalho doméstico, parecia ser o oposto da atividade industrial. Que o corpo da mulher se mecanizasse e se convertesse em uma máquina para a produção da força de trabalho é algo que Marx não podia reconhecer. Hoje em dia, nos Estados Unidos pelo menos, o parto também se mecanizou. Em alguns hospitais, obviamente não os dos ricos, as mulheres dão à luz em uma linha de montagem, com certo tempo determinado para cada parto, se excedem esse tempo, é feita uma cesariana.

A sexualidade é outro tema que você aborda a partir de um ponto de vista ideológico, sendo a igreja quem promoveu com grande virulência um férreo controle e criminalização. Era tão forte o poder que conferia às mulheres que continua essa tentativa de controle?

Creio que a Igreja se opôs à sexualidade (ainda que sempre a praticaram à escondidas) porque tem medo do poder que exerce na vida das pessoas. É importante recordar que ao longo da Idade Média a Igreja também esteve envolvida na luta para erradicar o casamento dos sacerdotes, que via como uma ameaça para a conservação de seu patrimônio. Em todo caso, o ataque da Igreja sobre a sexualidade sempre foi um ataque às mulheres. A Igreja teme as mulheres e tratou de nos humilhar de todas as maneiras possíveis, nos retratando como o pecado original e a causa da perversão nos homens, nos obrigam a esconder nossos corpos como se estivessem contaminados. Enquanto isso, tratou-se de usurpar o poder das mulheres, apresentando o clero como doadores de vida e inclusive adotando a saia como vestimenta.

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Em uma entrevista você afirma que continua tendo lugar uma caça às bruxas. Quem são os hereges agora?

Tem havido caça às bruxas desde há vários anos em diferentes países africanos, assim como na Índia, Nepal, Papua Nova Guiné. Milhares de mulheres foram assassinadas desta maneira, acusadas de bruxaria. E está claro que, como nos séculos XVI e XVII, esta nova caça às bruxas se conecta com a extensão das relações capitalistas em todo o mundo. É muito conveniente ter camponeses lutando uns contra os outros enquanto que em muitas partes do mundo estamos vivendo um novo processo de cercamento, com a privatização da terra e um grande saque aos meios básicos de subsistência. Também há provas de que parte da responsabilidade dessa nova caça às bruxas, que por sua vez é dirigida especialmente às mulheres mais velhas, deve ser atribuída ao trabalho das seitas cristãs fundamentalistas, como o movimento pentecostal, que trouxeram de novo ao discurso religioso o tema do diabo, aumentando o clima de suspeitas e o medo já existente gerado pela dramática deterioração das condições econômicas.

Omnia sunt communia!, tudo é comum, foi o grito dos anabatistas cuja luta e derrota, como você conta no livro, foi varrida pela História. Esse grito continua sendo subversivo?

Certamente é, já que estamos vivendo numa época onde “sunt omnia privata”. Se as tendências atuais continuam, logo não haverá calçadas, nem praias, nem mares, nem águas costeiras, nem terra, nem florestas, nos quais possamos entrar sem ter que pagar algum dinheiro. Na Itália alguns municípios estão tentando aprovar leis que proíbem as pessoas de colocar suas toalhas nas poucas praias livres que restam e isto é só um pequeno exemplo. Na África, estamos sendo testemunhas das maiores apropriações de terras da história do continente por parte de empresas mineradoras, agroindustriais, agrocombustíveis A terra africana está sendo privatizada e as pessoas estão sendo expropriadas a um ritmo que coincide com o da época colonial. O conhecimento e a educação estão se convertendo em mercadorias disponíveis só para aqueles que podem pagar e inclusive nossos próprios corpos estão sendo patenteados. Assim que “omnia sunt communia” continua sendo uma ideia radical, ainda que se deva ter o cuidado de não aceitar a forma distorcida como está sendo usado esse ideal, por exemplo, por organizações como o Banco Mundial, que em nome da preservação da “comunidade global” privatiza as terras e as florestas e expulsa a população que ganhava seu sustento nelas.

Como se poderia abordar a questão dos comuns atualmente?

O tema dos comuns é como criar um mundo sem exploração, igualitário, onde milhões de pessoas não morram de fome no meio do consumo obsceno de uns poucos e onde o meio ambiente não seja destruído, onde a máquina não aumente a exploração em vez de reduzi-la. Este eu creio que é nosso problema comum e nosso projeto comum: criar um mundo novo.