Viviana Díaz: a voz do Línea Aborto Libre

texto de Sentidos Comunes/ fotos de Josefina Astorga/11 de junho de 2014

Ela é médica, feminista e lésbica, e uma das fundadoras da Línea Aborto Libre (“Linha Aborto Livre”), uma página na internet para orientar mulheres com intenção de interromper suas gravidezes com comprimidos. Hoje elas já têm três processos arquivados, movidos por movimentos religiosos, e sabem que seus telefones estão grampeados, mas seguem adiante porque dizem que “o aborto é a ponta do iceberg de todas as violências do sistema”. Aqui, a visão de uma mulher que ajuda outras mulheres.

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O que é a Línea Aborto Libre?

Somos um coletivo de lésbicas e feministas. Nossa aspiração é que haja uma rede de colaboradores que façam um trabalho em torno do aborto. O que fazemos é atender um telefone onde damos informação sobre o procedimento do aborto, já que no Chile não há lugares onde obter informação de como usar os comprimidos nem em que dose. Essa é a informação que damos. Não dizemos onde conseguir o medicamento. Somente atendemos as mulheres e conversamos sobre o porquê de estarem nesta situação e tentamos fazer que sejam nossas aliadas. Também incentivamos as mulheres a fazer uso de seus direitos na hora de se dirigir a um serviço de urgência.

É sobretudo uma provocação, e que funcionou, já que até agora temos três processos de grupos ultraconservadores, principalmente evangélicos, que tentaram criminalizar nosso trabalho com a figura de “associação ilícita” e, agora por último, de exercício ilegal da profissão. Nenhum chegou até o final mas incomoda um pouco. Também fazemos oficinas, principalmente em organizações de base, em universidades, em comunidades, centros de mulheres e onde nos chamarem.

Quantas são?

Umas sete em Santiago, com mais três colaboradoras que nos dão apoio em serviços de telefonistas e outras coisas, e em Iquique são ao redor de cinco. Nos revezamos para responder as ligações, quatro horas durante a semana, das 7 às 11 da noite, de segunda a sexta. Estamos implementando para este ano (2014) um serviço de resposta telefônica automatizada 24 horas como alternativa. De qualquer forma, queremos continuar respondendo as ligações, porque nos interessa esse contato com a mulher.

Como é a mulher que liga?

É uma mulher que já decidiu abortar, não pede conselhos. Tende a primeiro justificar sua ligação, mas não busca informação sobre o que fazer e geralmente quer informação de como conseguir o medicamento ou de como usá-lo, ou já o usaram e têm dúvidas se funcionou ou não. São de todas as idades e muitas já têm filhos. Não creditamos que as mulheres que ligam sejam do estrato social mais baixo. O número é difundido através das redes que podemos gerar. Geramos um manual de como fazer um aborto com comprimidos que é um texto impresso que vendemos para nos autogerir, mas que também distribuímos em bibliotecas comunitárias e incentivamos que seja reproduzido, também pode ser baixado em PDF a partir de nossa página da internet e também há um áudio para ser baixado.

O que vocês dizem a ela?

Durante a ligação temos tudo super dentro das normas porque temos o telefone grampeado e esses processos em cima. O protocolo da resposta telefônica foi revisado por algumas advogadas que nos assessoram, então é bem impessoal. Nós repetimos o procedimento, como se faz, quais são as contraindicações, etc.

Qual é o procedimento?

Para uma gravidez de até 12 semanas é com 12 comprimidos de Misoprostol que são usados debaixo da língua. Começa com quatro debaixo da língua, depois de três horas outros quatro e depois de três horas mais outros quatro. Esse é o procedimento recomendado pela OMS. Também há outros casos nos quais não se pode usar este medicamento, como gravidezes múltiplas, mas para a norma geral em uma gravidez intrauterina de até 12 semanas esse é o procedimento. É debaixo da língua, e não intravaginal como se costuma pensar, porque debaixo da língua a dose alcança uma maior concentração do medicamento em cerca de 30 minutos. A absorção é mais rápida e é mais segura, e na hora de ir a um serviço de urgência não há como detectar e isso é importante porque as mulheres somos interrogadas e abusadas.

Se não se dissolvem depois de meia hora podem ser engolidos, mas com 30 minutos já se absorveu o suficiente. O sangramento pode começar imediatamente depois da primeira dose ou até depois da última. Se teve início rápido, recomendamos que se complete o processo porque o aborto pode ser incompleto e isso implica ter que ir ao pronto-socorro e esse tipo de coisas. O sangramento é similar a uma menstruação mas mais intenso, com a mesma cor, dor, cheiro e características. O procedimento completo dura entre 8 e 10 horas, e passado esse tempo a mulher não deve mais ter dor nem sangramento constante, mas pode haver sangramento por gotejamento por três semanas. A mulher pode ficar grávida imediatamente depois e deveria continuar com seus anticoncepcionais. Nós recomendamos o sexo não heterossexual, que é o melhor método anticoncepcional e convidamos as mulheres a questionar a heterossexualidade e suas práticas.

Por que para vocês o feminismo lésbico está tão ligado ao aborto?

Nós somos lésbicas feministas e se trabalhamos com o tema do aborto é porque neste momento no Chile o aborto é a ponta do iceberg de todas as violências do sistema. Aí se concentra o classismo, porque só têm acesso ao aborto as mulheres ricas, o racismo, porque o acesso tem a ver com o tema raça, a misoginia, por toda a violência que não há por quê enumerar aqui. E também a proibição do aborto é uma herança direta da ditadura, o último trabalho da ditadura e isso tinha sobretudo um sentido moral, segundo o qual o corpo das mulheres tem dono.

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Quem é o dono do corpo da mulher?

Qualquer um, menos nós mesmas. A Igreja e o Estado dividem o poder. A proibição do aborto não se justifica de nenhuma outra maneira que não seja pela moral e há toneladas de evidências de que a proibição do aborto como medida de saúde pública não serve para nada. O Chile tem uma enorme taxa de gravidez adolescente que nunca se conseguiu diminuir. A proibição do aborto não afetou isso. A mortalidade materna é superbaixa, similar à dos países europeus, mas dessas mulheres que morrem, que são muito poucas, há uma porcentagem que morre por abortos mal feitos e ainda que morra apenas uma por esta razão, é inaceitável.

Como as mulheres estão abortando hoje no Chile?

Depende de quanto dinheiro elas têm. A dose completa de Misoprostol no mercado ilegal custa por volta de 120 ou 150 mil pesos1. Há mulheres que não conseguem da primeira vez, então devem contar com dinheiro. As mulheres que podem viajar podem ter acesso a abortos em clínicas. Sabemos que existe o aborto em algumas clínicas privadas do Chile mas não há informação oficial sobre isso e não é nosso público-alvo. Uma mulher que quer abortar no Chile o faz como pode e aí está o risco. Há pouco uma garota estava a ponto de morrer no Hospital Cordillera e eu não sei o que ela pode ter feito. Uma vez ligou uma garota que estava sangrando e o senhor que lhe vendeu os comprimidos lhe disse que ia sangrar durante 3 dias e, se não tivesse me ligado, sabe-se lá como terminaria. As mulheres abortam clandestinamente, sozinhas ou acompanhadas pelas amigas, mas com um peso social muito grande em cima. Abortam de maneira muito violenta porque há a sensação de fazer algo proibido.

Vocês defendem o aborto somente até a 12ª semana?

Nós defendemos o aborto livre. Damos informação de aborto até as 12 semanas considerando a pressão social que temos em cima. Alguns centros dão informação de aborto até a 19ª semana, mas o problema tem a ver com a possibilidade de uma hemorragia, à medida que o feto é maior, é maior a possibilidade de ter uma hemorragia grave e essa é a restrição.

O que você acha do projeto de lei que está em discussão neste momento?

Acho conservador. Nos preocupa que haja esta despenalização com condicionantes muito pontuais porque isso implica que o aborto siga sendo um delito. A decisão autônoma de que a mulher decida sobre seu próprio corpo segue sendo penalizada. Isso nos preocupa pelo que implica simbolicamente. Isso é violência de gênero. Há coisas pontuais a respeito da lei, como isso de jogar sempre a decisão para outro. Por exemplo, se te estupram, o sistema para denunciar um estupro é terrível e se uma mulher é estuprada pelo namorado ou pelo marido, essa mulher não vai ter acesso ao aborto segundo essas cláusulas. Quando existia o aborto terapêutico no Chile também não eram todas as mulheres que tinham acesso porque dependia da opinião de dois médicos. Eu não tenho muita esperança se o reitor da PUC sair dizendo que eles não vão fazer isso. Se está nas mãos deles, muito poucas mulheres vão abortar e as que o fizerem vão passar por processos muito violentos.

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Qual a sua opinião sobre a objeção de consciência2?

Pontualmente, neste caso me parece que é somente uma mostra de misoginia. Quando fiz minha residência de ginecologia vi muitas coisas nojentas, sem contar que é um ambiente muito masculino onde você entra como uma mulher, um ser disponível, e isso desde que você é estudante. A maneira como eles interpretam a dor das mulheres é muito subjetiva e muito violenta.

O que teria que acontecer para que as mulheres possam decidir no futuro?

Que ocorresse uma despatriarcalização. Desmontar o patriarcado, mas isso implica muito mais que a despenalização do aborto. Por isso nós defendemos o aborto livre e um aborto feminista, porque sabemos que se hoje não houver uma mudança cultural e de mentalidade e um questionamento das estruturas que permitem que haja ginecologistas que se dão ao luxo de dizer que têm objeção de consciência, vai ficar no papel e nada mais. Como na Espanha, onde há um avanço e depois muda o governo por um de direita e se retrocede. As mulheres devemos sentir que é um direito, e não somente das mulheres, porque no fim é uma coisa todos.

No Uruguai, por exemplo, as entidades de classe e os partidos dos trabalhadores se fizeram parte da luta pela despenalização do aborto porque também era parte de suas demandas que as mulheres pudessem decidir. Há pouco eu soube de um caso de uma garota que teve um aborto espontâneo e trabalha em uma clínica de caráter religioso, e eles sabiam que estava grávida e agora a estão assediando moral e profissionalmente porque há a dúvida de se ela provocou o aborto.

Notas —————————————————

1Entre 210 e 240 dólares (março/2015)

2Referem-se aqui ao suposto direito que teriam os médicos, em uma situação em que o aborto estivesse despenalizado, de se recusarem a realizar o procedimento alegando questões de foro íntimo.