Oito perguntas que as queers palestinas estão cansadas de ouvir

Mais um texto malepuercamente traduzido pelas macacas idosas do Instituto Geriátrico Puerco Suíno, já postado há alguns anos em um blogue extinto.

Oito perguntas que as queers palestinas estão cansadas de ouvir

Ghaith Hilal, no The Electronic Intifada de 27 de novembro de 2013

Talvez você pense que o objetivo principal de um grupo de ativistas queer na Palestina, como nós da Al-Qaws, deva ser a aparentemente interminável tarefa de desmontar a hierarquia sexual e de gênero em nossa própria sociedade.

E é isso mesmo. Mas pode ser que você pense o contrário, a julgar pelas perguntas repetitivas que nos fazem durante nossos eventos e palestras, ou pelas perguntas que nos fazem os meios de comunicação e outras organizações internacionais.

Queremos acabar com isso de uma vez por todas. Educar as pessoas sobre seu próprio privilégio não é nossa função. Mas antes de anunciar formalmente nossa aposentadoria desta tarefa, aí vão as oito perguntas mais frequentes que nos fazem, e suas respostas definitivas.

1. Israel não proporciona um abrigo seguro para gente queer palestina?

Mas é claro que sim: o muro do apartheid tem portas cor-de-rosa cintilantes, prontas para receber todas as pessoas que derem uma desmunhecada incrível. Na verdade Israel construiu o muro para manter os homófobos palestinos do lado de fora e proteger gente queer palestina que busca refúgio ali.

Mas agora falando sério: “Israel” produz refugiados; não acolhe refugiados. Nunca houve o caso de uma pessoa palestina – descendente de uma das famílias que foram deslocadas à força, algumas vezes massacradas, muitas vezes jogadas na prisão sem acusação – que tenha transcendido magicamente o legado vivo desta história para ter asilo concedido em “Israel” – o Estado que cometeu todas essas atrocidades.

Se algumas pessoas conseguem atravessar o muro e acabam em Tel Aviv, são consideradas “ilegais”. Elas acabam trabalhando e vivendo em condições terríveis, tentando evitar a prisão.

2. Os palestinos não são todos homófobos?

Todas as pessoas dos Estados Unidos são homófobas? Claro que não. Infelizmente, as representações ocidentais dos palestinos, especialmente de pessoas lésbicas, gays, transexuais ou queers palestinas, tendem a ignorar a diversidade da sociedade palestina.

Dito isto, os palestinos estão vivendo sob uma ocupação militar de décadas. A ocupação intensifica as diversas formas de opressão experimentadas em todas as sociedades.

No entanto, a homofobia não é a forma como contextualizamos a nossa luta. Essa é uma noção que vem de um tipo específico de ativismo dos países do Norte.

Como podemos destacar a homofobia de todo um sistema opressor complexo (o patriarcado), que oprime mulheres e dissidentes de gênero?

3. Como vocês lidam com seu principal inimigo, o Islã?

Oh, agora nós temos um inimigo principal? Se tivéssemos que destacar um inimigo principal, este seria a ocupação israelense, não a religião – o Islã ou qualquer outra.

Formas mais fundamentalistas de religião estão experimentando atualmente um ressurgimento em todo o mundo, inclusive em muitas sociedades ocidentais.

Nós não vemos a religião como nosso grande principal desafio. Ainda assim, o aumento do sentimento religioso, independente de qual religião, quase sempre cria obstáculos para quem se interessa em promover o respeito pela diversidade sexual e de gênero.

O nacionalismo palestino tem uma longa história de respeito pelo secularismo. Isso fornece um conjunto de valores culturais úteis para a defesa de pessoas LGBT palestinas.

Além disso, a religião muitas vezes é uma parte importante da identidade de pessoas LGBTs palestinas. Respeitamos todas as identidades de nossa comunidade e abrimos espaço para a diversidade.

4. Existem pessoas palestinas “fora do armário”?

Estou contente por terem feito esta pergunta. Temos ótimos carpinteiros gays palestinos que fazem armários incríveis para queers, com todas as comodidades ocidentais que vocês podem imaginar – dos quais nós não queremos sair jamais.

Mais uma vez, a noção de “sair do armário” – ou a “política da visibilidade” – é uma estratégia que tem sido adotada por ativistas LGBT dos países do Norte, devido a circunstâncias específicas. Impor essa estratégia ao resto do mundo, sem entender o contexto, é um projeto colonial.

Em vez disso, nos perguntem quais estratégias de mudança social se aplicam ao nosso contexto, e se a noção de “sair do armário” faz sentido.

5. Por que não há israelenses na Al-Qaws?

O colonialismo não tem a ver com pessoas ruins sendo malvadas para os outros (israelenses “do mal” não roubam o dinheiro do almoço de pessoas queers palestinas). Ser super “do bem” não dissolve em um passe de mágica sistemas de opressão.

Nossa organização trabalha com a sociedade palestina, através das fronteiras impostas pela ocupação. Os desafios enfrentados pelas pessoas LGBTs israelenses não são nada parecidos com aqueles enfrentados pelas palestinas.

Estamos falando de duas sociedades diferentes, com culturas e histórias diferentes; o fato de que atualmente eles ocupem nossa terra não nos transforma em uma única sociedade.

Mais ainda: ser queer não elimina a dinâmica de poder entre colonizado e colonizador, apesar das boas intenções.

Resistimos ao sentimento da “família gay feliz, cor-de-rosa e global”. Organizações compostas apenas por pessoas palestinas são essenciais para descolonizar e melhorar a sociedade palestina.

6. Eu vi aquele filme sobre gays palestinos (Invisible Men/Bubble/Out In The Dark, etc.) e sinto que aprendi bastante sobre a luta de vocês.

Você se refere a filmes feitos por cineastas privilegiados israelenses ou judeus, que retratam israelenses brancos como salvadores e palestinos como vítimas que precisavam ser salvas?

Estes filmes tiram a voz e a ação das pessoas queer palestinas, retratando-as como vítimas que precisam ser salvas de sua própria sociedade.

Além disso, esses filmes reproduzem estereótipos racistas de homens árabes como instáveis e perigosos. Esses filmes são simplesmente propaganda pinkwashing, financiada pelo governo de Israel, com uma comovente história de amor coberta de glitter entre oprimido e opressor.

Se você quiser saber mais sobre a realidade de nossa comunidade e de nossa luta, tente ouvir o que pessoas queers palestinas têm a dizer, nos sites da Al-Qaws ou da Palestinians Queers for BDS.

7. A luta pelos direitos gays não é mais urgente que o pinkwashing?

Os grupos LGBT mainstream dos países do Norte querem nos fazer acreditar que gays vivem em um mundo à parte, que apenas se conectam a suas sociedades como vítimas da homofobia.

Mas não teremos libertação queer enquanto o apartheid, o patriarcado, o capitalismo e outras formas de opressão existirem. É importante atingir as conexões destas forças opressoras.

Além disso, o pinkwashing é uma estratégia usada pela grife Israel para angariar o apoio de queers em outras partes do mundo. É simplesmente uma maneira de tornar o projeto sionista mais atraente para as pessoas queers.

Esta é a repetição de uma fantasia colonial familiar e tóxica – que o colonizador pode proporcionar algo importante e necessário que o colonizado não pode proporcionar a si mesmo.

O Pinkwashing apaga nossas vozes, história e ação, dizendo ao mundo que Israel sabe o que é melhor para nós. Enfocando o pinkwashing estamos recuperando nossa ação, história, vozes e corpos, dizendo ao mundo o que queremos e como podem nos apoiar.

8. Por que vocês usam termos “ocidentais” como LGBT ou queer para descrever sua luta? Como vocês respondem a essa crítica?

Embora ocasionalmente já nos rotularam de tokenizadas, de coniventes com Israel, de ingênuas e ocidentalizadas (por gente instalada no Ocidente), nossas ativistas trazem décadas de experiência e análise concreta do imperialismo cultural e do orientalismo.

Isso tem fornecido a matéria-prima para muitos acadêmicos itinerantes. No entanto, o trabalho destes que estão na Torre de Marfim raramente, ou nunca, presta contas àqueles que fazem o trabalho de campo nem reconhece seu poder (derivado da mesma economia colonial) sobre os ativistas.

Nós devemos prestar contas a nossas comunidades locais e aos valores forjados ao longo de anos de organização.

A língua é uma estratégia, mas não pode eclipsar a totalidade de quem somos e do que fazemos. As palavras que se tornaram comuns mundialmente – LGBT, queer – são usadas com muita cautela em nossos movimentos de base. Só porque essas palavras surgiram a partir de um contexto e um momento político particulares não significa que elas carregam aquele mesmo conteúdo político quando implantadas em nosso contexto.

A linguagem que usamos é sempre revista e ampliada através de nosso trabalho. A língua catalisa discussões e nos impele a pensar mais criticamente, mas nenhuma palavra, seja ela em inglês ou em árabe, pode fazer o trabalho. Só um movimento pode.

 

 

Hotel Cambridge

Uma família de desenhistas: a mãe e os cinco filhos desenham. E os desenhos surgem em qualquer superfície. Lucas Gabriel de Almeida Cordeiro, o mais velho dos filhos, é autista e autor do desenho acima. [Carla Caffé, Era o Hotel Cambridge: arquitetura, cinema, educação]

★Coisas bacanas do Era o Hotel Cambridge você encontra aqui, aqui e aqui

A clorofila na pele… e no sangue (Projeto TransPlant)

Durante os Encontros Bandits-Mages de Bourges, na França, o coletivo Quimera Rosa apresentava TransPlant, um projeto de arte biohacking que propõe a injeção e a tatuagem de clorofila para devir humanx-planta. Isso através da terapia fotodinâmica DIY utilizada na cancerologia…

Ewen Chardronnet, enviada especial de Makery a Bourges

O verde é o novo vermelho”. No dia 11 de novembro, no Transpalette de Borges, no âmbito da exposição Entropia e por motivo dos encontros Bandits-Mages, o coletivo nômade formado em Barcelona Quimera Rosa apresentou o projeto TransPlant de transição a um devir-planta. Xs Quimera Rosa, Cé e Kina, sonham que uma hibridação de clorofila-sangue percorra suas veias, com tatuagens que realizem a fotossíntese.

O sonho de ficção científica biopunk não é tão novo. Pode ser encontrado desde os anos 1920 com os primeiros cientistas que se interessaram pelo estudo dos organismos marinhos (lesmas marinhas, vermes, etc) capazes de se alimentar parcial ou totalmente através da fotossíntese gerada pelos cloroplastos de algas presentes em sua pele (nos referimos a isso no ano passado na Makery). Mais próximo de nós, Lynn Margulis, a bióloga da teoria endossimbiótica e coautora com James Lovelock da Hipótese Gaia, imaginava a chegada de um “homo fotossinteticus” que se alimentaria com banhos de sol nas praias do sistema solar…

Ainda mais recentemente, o escritor de ficção científica Kim Stanley Robinson faz em Oral Argument, um romance publicado em dezembro de 2015 durante o COP21, um estudo sobre um futuro onde os biólogos de síntese teriam encontrado no registro do iGEM alguns BioBricks que podem ser combinados de maneira que se possa criar um cloroplasto sintético e células humanas capazes de realizar fotossíntese. Na história de Robinson, os biólogos modificam as agulhas de tatuar para injetar fibroblastos – cloroplastos na pele humana, como se faz com uma tatuagem comum. Eles criam uma empresa chamada Sunskin, mas rapidamente decidem tornar seu trabalho open source (código aberto), já que a fotossíntese é um processo natural. O equilíbrio planetário é então revolucionado (para mais detalhes teóricos, ler “Devenir Fotótropo”, publicado em janeiro de 2016 no jornal Planeta Laboratório).

Tatuagem clorofílica

Quimera Rosa então propôs, no âmbito de Bandits-Mages, tatuar-se uma Elysia esmeralda (Elysia chlorotica), uma lesma marinha que possui uma epiderme fotossintética. Diferentemente da biologia de síntese de Robinson, a abordagem de Quimera Rosa é (ainda) artesanal, graças à concepção de tintas de clorofila. “Fizemos o procedimento com duas clorofilas. A primeira, não-fotossintética, uma clorofila modificada para uso alimentício que compramos e misturamos com produtos habituais de tintas para tatuagem”, explica a dupla (10 g de sódio de clorofila cúprica (E141), um corante alimentício vegetal; 100 ml de água de hamamélis, uma planta usada frequentemente para fortalecer os vasos sanguíneos; 5 ml de propilenoglicol e 5 ml de glicerina médica). A segunda tinta foi sintetizada durante a performance, através de “uma extração de álcool muito simples, com os recursos disponíveis, para constituir uma tinta viva na qual se pode verificar a fotossensibilidade aos raios ultravioletas e que pode ser utilizada imediatamente para tatuar”. Essas duas tintas foram utilizadas para tatuar Kina ao vivo, realizando um primeiro desenho da elysia com a tinta não-fotossintética, e um preenchimento colorido com a fotossensível.

Somateca

Esta fase é só uma das etapas de TransPlant: green is the new red, um projeto de código aberto “transdisciplinar de bioarte e de hibridização planta/humano/animal/máquina que se desenvolverá ao longo dos próximos anos”. TransPlant põe em diálogo disciplinas como a arte, a filosofia, a biologia, a ecologia, a física, a botânica, a medicina, a enfermagem, a farmacologia e a eletrônica. Apoiando-se em diversas práticas do biohacking, Quimera Rosa quer “produzir mudanças de subjetividade e desconstruir diferentes tipos de narrativas que apresentam o corpo como uma unidade. Esses eixos são no momento: hibridização de sangue humano com clorofila com um protocolo regular de injeções intravenosas, tradução externa com tatuagens de clorofila, implantação de um chip eletrônico RFid onde estarão armazenados os dados do processo e apresentando o corpo como uma somateca, desenvolvimento e conexão ao corpo de sensores próprios às plantas (nível de acidez do entorno, frequências eletromagnéticas específicas…) e feedback com a atividade corporal, autoexperimentação médica sobre a Condylomata acuminata (verrugas genitais), constituição de uma base de dados pública open-source dos experimentos”.

Devir Ciborgue

Em agosto passado, Yan se implantou um chip RFid e decidiu mudar seu nome para Kina, uma via para este membro de Quimera Rosa afirmar sua “transição humano-planta”. O chip que Kina se implantou é uma versão livre, não detectável, da tecnologia de rasteamento. “Ter uma versão livre implantada, não detectável e com capacidade maior permite considerar esta tecnologia para usos imprevistos, não normatizados. Transformar uma tecnologia de identificação em uma tecnologia pós-identitária utilizada para hackear o que se chama de ser humano”. E com seu processo de transição Yan/Kina quer fazer reconhecer socialmente “a perda de minha condição de humano e a adoção de um novo nome”. Assim como ironizar a suposta “loucura” de sua decisão:

E não estou segura de querer ser cobaia de psiquiatras desejosos de verificar se me sinto como uma planta presa em um corpo humano e de que inventem um transtorno de disforia de reino, ou bem se minha vontade fotossintética não é uma manifestação extrema de uma anorexia reprimida, ou se minha admiração pelo silêncio vegetal é a evidência de uma tendência complotista e associal”. [Kina de Quimera Rosa]

Kina recorda também que cadelas, cães e outros animais foram implantados com chips muito antes que humanos e que sua transição é também nesse sentido um devir-ciborgue como é proposto no Manifesto Ciborgue da filósofa Donna Haraway.

O primeiro ciborgue foi um camundongo desenvolvido em um laboratório nos anos 60 no contexto da corrida espacial. O devir ciborgue é antes de tudo um devir animal, queiram ou não os trans-humanistas e seus sonhos de melhorar a espécie humana através da fusão com a tecnologia. Sou um cão. Ou melhor, uma cadela.

Basicamente não confundir o Manifesto Ciborgue de Haraway com o Manifesto Exterminador do Futuro de Hollywood. Minha vontade não é a de devir mais humana mas menos humana. Não é realmente um desejo de devir planta mas de uma hibridização com o vegetal, de devir com. De transitar juntas. Making kin, not babies”. [Kina de Quimera Rosa]

Cancerologia DIY

A explicação de Quimera Rosa sobre o processo da injeção de clorofila é que se trata mais amplamente de uma experimentação biomédica sobre os condilomas (verrugas genitais) e o vírus do papiloma humano (HPV), responsável por um grande número de infecções sexualmente transmissíveis.”Queremos levar a cabo uma experiência Do It Yourself de terapia fotodinâmica, isto é, injetando clorofila e projetando ali um laser”, nos diz Kina. “O HPV é um vírus de transmissão sexual, um dos mais comuns atualmente, mas é um vírus bastante desconhecido sobre o qual circula pouca informação”. O vírus é a principal causa de câncer no útero. “Nos demos conta que os estudos que circulam dizem respeito aos corpos que têm ovários, mas os estudos relativos aos corpos desprovidos de ovários, não estão tão desenvolvidos”, diz Cé. E ambxs acrescentam:

A terapia fotodinâmica é utilizada em oncologia de pele, é bastante inovadora, funciona bem com os cânceres localizados, mas não é nem um pouco acessível ainda. O índice de cura é bastante alto, o índice de invasão corporal é bastante baixo. Através desta autoexperimentação médica sobre os condilomas, queremos também desenvolver e difundir o conhecimento desta terapia”. [Quimera Rosa]

Até este ponto, as Quimera Rosa aprenderam os métodos de extração e de transfusão. Elxs buscam a partir de agora colaborações para um acompanhamento biomédico e o estabelecimento de protocolos para a fase de transfusão. Com a ideia de fazer isso elas mesmas igualmente, de maneira regular. Continuará…

A instalação TransPlant de Quimera Rosa pôde ser vista até o dia 08 de janeiro de 2017 no âmbito da exposição Entropia no Transpalette, Bourges.

Do Parole de Queer:

Se você quer mais informações sobre a Quimera Rosa e seu projeto TransPlant, pode visitar estes links.

Além disso, recentemente foi publicado um vídeo na TeleSur onde Cé e Kina nos contam mais alguma coisa sobre seu projeto.

O coletivo Quimera Rosa estará em uma residência no Hangar do Barcelona, de 20 de março a 2 de abril. E procuram colaboradorxs:

O coletivo Quimera Rosa estaremos em residência no Hangar para desenvolver parte do projeto TransPlant no qual estamos trabalhando há mais de um ano. Para esta residência desejamos desenvolver TransPlant: minha doença é uma criação artística: a parte de autoexperimentação médica sobre a condylomata acuminata, uma DST produzida pelo HPV (Vírus do Papiloma Humano) e com o qual convive uma das componentes de QR. Centraremos nosso trabalho no estudo da possibilidade de aplicar um processo de fotossíntese para tratar condilomas de maneira DIY/DIWO. Para isso estaremos trabalhando com cientistas e especialistas do Parque de Reserca Biomédica de Barcelona. Esse tipo de tratamento recebe o nome de PDT (Terapia fotodinâmica). Sabemos que já está sendo utilizado tanto para o HPV, cânceres localizados e dermatologia em geral, mas por se tratar de uma técnica recente ainda é de difícil acesso. Os protocolos estão bem documentados e acessíveis e há um consenso científico de que o ‘PDT can be considered a highly effective and safe treatment option for anogenital condylomata acuminata’.

Pelo que, nosso principal objetivo é de abrir a caixa-preta, como dizem xs hackers ou de abrir a pílula, como dizia xs ativistas afetadxs pela AIDS. O experimento que queremos fazer é de replicar os protocolos e as ferramentas para baratear os custos e tornar acessível a informação em uma wiki, que poderia servir para centros comunitários de saúde de países do sul onde o HPV está ainda mais alastrado. Por outra parte, queremos pelo lado artístico e mediante a dimensão performativa da autoexperimentação, formar localmente uma massa crítica de usuáries/especialistes (entendendo usuáries como especialistes).

A ideia é conseguir constituir este grupo nas duas quintas-feiras da residência, prestando especial atenção a coletivos cujo acesso à saúde pública é complicado, quando não impossível, como trabalhadoras sexuais, pessoas LGBTI+, imigrantes sem documentos, muitos dos quais estão expostos ao vírus. E que este grupo inclua também cientistas, pessoal da saúde, poderes públicos, e poder talvez influir na introdução da PDT em ambulatórios.

Assim, convidamos quem estiver interessade a somar-se ao processo. Serão bem-vindes pessoas afetadas pelo vírus, coletivos vinculados à prevenção e/ou tratamento do HPV, pessoas ou coletivos que tenham conhecimento de biologia, medicina, dermatologia e, sendo possível, que trabalhem nestas disciplinas a partir de uma perspectiva transfeminista. Assim como curiosas e portadoras de outras ferramentas que possam oferecer um outro olhar sobre o processo.

Aspiramos a constituição de um grupo plural que faça aparecer as interseccionalidades em jogo nas doenças sexualmente transmissíveis como o HPV. E que dê ferramentas para não contrapor, ou melhor, para pôr em diálogo criativo os cuidados, a prevenção, e o contágio com sexualidades abjetas, não reprodutivas e múltiplas.

Trata-se, também, de gerar conhecimentos que rompam com os tabus relacionados com o corpo doente. Um corpo sempre é um corpo doente e, ao considerar a doença como parte da própria vida, esta pode ser utilizada como ferramenta criativa para desconstruir os processos de normatização produzidos pela noção de corpo saudável.

Escreva-nos!

Sessões abertas: quinta-feira 23 e 30 de março de 2017

e-mail de contato: contact@quimerarosa.net

Fantasmas contra o golpe

Interessante declaração do usurpador, postada no DCM em 11 de março, traz mais indícios de que há uma guerra silenciosa, com armas heterodoxas, em curso:

Do JB:

Em entrevista para a revista Veja, o presidente Michel Temer revelou o que o incomodava no Palácio da Alvorada, a ponto de voltar com a família para o Jaburu depois de apenas uma semana na residência presidencial.

O Palácio da Alvorada tem um monte de quartos, uns oito, todos muito grandes. Tudo muito amplo, bonito. Mas senti uma coisa estranha lá. Eu não conseguia dormir, desde a primeira noite. A energia não era boa. A Marcela sentiu a mesma coisa. Só o Michelzinho, que ficava correndo de um lado para outro, gostou. Chegamos a pensar: será que tem fantasma? (risos).”

Temer desistiu de morar no Palácio da Alvorada no começo de março, retornando com sua família ao Palácio Jaburu, residência oficial da Vice-Presidência da República, onde mora desde 2011.

Até a revelação da entrevista, os assessores presidenciais diziam que ele não se adaptou ao palácio, de grandes proporções. Segundo eles, ele tem preferência pelo Jaburu, local mais aconchegante e com um estilo mais parecido ao de uma residência.

Apesar da mudança, ele pretende manter no Alvorada grandes encontros com parlamentares e eventos diplomáticos. O presidente mudou-se para a residência oficial da Presidência em 18 de janeiro e nesta terça-feira (28), ao retornar da viagem para a Base Naval de Aratu (BA) durante o carnaval, voltou direto para o Jaburu.

Ambos os palácios ficam às margens do Lago Paranoá, a poucos quilômetros do Palácio do Planalto.

Desde setembro, quando a ex-presidenta Dilma Rousseff desocupou o Alvorada, havia a expectativa da mudança da família para o local, mas algumas adaptações para o filho de Temer, de 7 anos, atrasaram o processo. Desde então, o presidente promoveu, no Alvorada, reuniões com líderes partidários da Câmara e do Senado para discutir a aprovação de medidas enviadas pelo governo ao Congresso.

Kẽchĩtxo

Pedro Cesarino, em Oniska:

O romeya Armando Cherõpapa amanheceu muito doente. Para mim, uma gripe forte, talvez pneumonia. Já havia estado doente há uns dias atrás e, por conta disso, desceu do Paraná para ficar em Alegria, onde há muitos kẽchĩtxo, além de mim e dos remédios de estrangeiro. Dou antibióticos, dipirona e vitaminas. Para os kẽchĩtxo, kãpo, o duplo da rã Phillomedusa bicolor, e rome vaká, o duplo do tabaco, é que estão causando doenças no velho. Na noite anterior, Cherõpapa havia cantado iniki (cantos dos espíritos) e o duplo do tabaco causou-lhe mal. Logo cedo, os velhos kẽchĩtxo Memãpa e Tekãpapa cantam shõki [soprocantos, cantos de cura] sobre Cherõpapa, enquanto rapazes batem ayahuasca sob um tapiri, depois cozinhada por Inõpa em sua casa, a fim de reabastecer as reservas da maloca. Venho com remédios para Cherõpapa, depois que acabam de cantar shõki (soprocantos, cantos de cura). Pergunto se ele comeu e diz que não, que só beberia café feito por mim. Passam alguns instantes. Cherõpapa, fraco, levanta-se para urinar. Quando retorna e deita na rede, seu corpo começa a estrebuchar. “É yove?”, pergunto a Tekãpapa, que está sentado ao meu lado nos bancos paralelos. “Não, yochĩ”, responde. O yochĩ começa a cantar, levanta o corpo do velho, que sacode a rede frenético e quase cai para trás. “É vina yochĩ” (yochĩ marimbondo), constata Tekãpapa com preocupação e, junto a seu irmão Memãpa, passa imediatamente à seção familiar (shana naki) para cantar shõki sobre o pajé. Inõpa, o filho de Tekãpapa, vai ao rádio relatar à aldeia Paraná o que está acontecendo. A velha Võsĩewa, sentada ao meu lado, explica que os yochĩ, espectros agressivos, também cantam iniki, assim como os espíritos yove. Cherõpapa está suscetível aos assédios dos yora vaká, os espectros perigosos de pessoas mortas. Os espectros de parentes mortos são “roubadores de duplos” (yochĩ vaká viaya), em especial a mãe, o tio materno, o pai e o avô materno do sujeito: são duplos/espectros que retornaram do Caminho-Morte e ficam aqui atrapalhando os viventes, dizendo “kawã, mia chinãvrãi, kawã!”, “vamos! você está pensando em nós, vamos embora!” E a pessoa adoece.

Estamos na segunda noite da doença. Chegam alguns caçadores que haviam saído para o mato. Há muitos kẽchĩtxo de outras malocas sentados no kenã (bancos paralelos localizados na entrada principal da maloca), que vieram por causa da doença de Cherõpapa. O jovem romeya Venãpa deita em sua rede amarrada no alto das pilastras da maloca. Na seção familiar (shanã naki), Cherõpapa-carcaça, deitado, canta os iniki dos agressivos yochĩ. Instantes depois, o vaká de sua mãe é quem canta: agora, não mais o da mãe-espectro que o atordoava, mas sim o aspecto melhor da outrora pessoa-mãe, que vêm para ajudar o filho doente. Depois, é Kana Ina, o duplo do falecido João Pajé, que canta nele: está (em sua maloca/corpo) cuidando dele (sua maloca/corpo), assim como instantes antes fizera sua mãe.

Antes disso, mulheres yochĩ haviam entrado no corpo/maloca de Cherõpapa, encheram sua barriga e o fizeram doente. Uma série de yovevo vieram depois para restaurar a ordem em sua casa. Entre eles, apareceu o poderoso Kana Panã, que foi chamado ontem mas, como vinha de longe, chegou apenas agora. Às nove da manhã deste dia, enquanto descansava, Cherõpapa sonhou que havia montes destas mulheres yochĩ em seu corpo/casa, todas fazendo sexo (aka) entre si. Tentavam agarrar Cherõpapa, pegavam em seu pênis, em suas nádegas, agarravam seus braços. Acordou doente. Depois veio um yove e arrumou sua maloca/corpo. Neste mesmo dia, Cherõpapa já podia sentar na rede e cantar iniki. Os yove já conversam com os presentes através dele. Um deles, no próprio Cherõpapa, vêm dar notícias sobre ele mesmo: os vei yochĩ (‘espectros-morte’) estão expulsos e não entrarão mais (na maloca/corpo de Cherõpapa).

Na noite seguinte, levei creme de leite com banana ouro madura para o jantar na maloca, para que todos comessem. Cherõpapa, que já estava curado, também comeu. De madrugada, enquanto eu dormia em minha casa, txashõ vaká (o duplo do veado) veio e roubou o vaká de Cherõpapa, como descobriria apenas na manhã seguinte. Txasho é uma categoria que inclui boi, vaca, veado e carneiro – todos animais interditos, ao menos em princípio, para o romeya. Creme de leite vale aí, portanto, como uma extensão dos bichos indesejados. Durante a noite, Cherõpapa berrava – era o vaká do veado quem berrava nele. Quem estava lá era só seu shaká (sua carcaça), seu corpo (kaya, yora) com suas sombras (os outros yochĩ e vaká alienáveis apenas na morte). O verõ yochĩ e os chinã nató foram embora, levados pela gente-veado. Cherõpapa estava praticamente morto (vopia), isto é, incompleto. Os kẽchĩtxo (Tekãpapa e aprendizes) cantaram shõki durante a noite inteira. Enviaram seus espíritos yove auxiliares para encontrar os duplos de Cherõpapa que, assim, amanheceu bem. Fiquei sabendo da doença na manhã seguinte por alguém, que conversava calmamente comigo, encostado num tapiri antes de entrar na maloca onde tomaríamos o café da manhã: “Cherõpapa quase morreu essa noite”, “Mesmo? O que aconteceu?”, “Foi o doce que você ofereceu para ele”. “Diarréia, infecção alimentar”, pensava eu, preocupado com a situação. Logo em seguida, quando eu entrava tenso e sem jeito na maloca para comer, Cherõpapa me disse, sem sobressalto algum, que estava bem, mas não tinha conseguido dormir direito porque teve muita tosse e catarro (oko ãtsaka) e estava sem a bombinha broncodilatadora que eu havia levado comigo. Noutras vezes, beberá sem problemas creme de leite misturado com frutas, sem que nada lhe aconteça.

Depois dos livros, imprimamos a carne

Paul B. Preciado* 

Não vou falar de Donald Trump. Vou falar da possibilidade de imprimir um órgão sexual com uma impressora biológica 3D. Pode ser essa uma outra maneira de responder a Trump. Até hoje a transformação anatômica de um corpo transexual implicava um duplo processo: a destruição do aparelho genital e a esterilização. Isso acontecia e ainda acontece na maioria das operações de vaginoplastia e faloplastia. Essas cirurgias são a secularização técnico-científica de um ritual de sacrifício no curso do qual o corpo trans é submetido a um suplício, mutilado e incapacitado para todo processo de reprodução sexual. O objetivo não é a intensificação vital do corpo (o que chamam saúde, prazer e bem-estar) mas a reafirmação da norma falocrática e da estética heterossexual penetrante-penetrado.

Logo teremos, não há dúvidas, a possibilidade de imprimir nossos órgãos sexuais com uma bioimpressora 3D. A biotinta será fabricada a partir de um composto de aglomerados de células-mãe provenientes do corpo ao qual o órgão será destinado: este órgão será primeiro desenhado por um computador antes de ser implantado no corpo que o reconhecerá como seu. Este processo já foi testado para imprimir órgãos como coração, rim ou fígado.

Curiosamente os laboratórios de pesquisa não falam da impressão de órgãos sexuais. Evocam limites “éticos”. Mas de que ética se trata? Por que é possível imprimir um coração, mas não um pênis, uma vagina ou um clitóris? Não seria por acaso possível imaginar uma quantidade n+1 de órgãos sexuais implantados? Devemos considerar a diferença sexual como limite ético da transformação do corpo humano? Lembremos que quando Johannes Gutemberg declarou em 1451 que era capaz de imprimir 180 cópias da bíblia (a suposta palavra de Deus) com 42 linhas de texto por página em apenas algumas semanas (naquele então eram necessários 2 anos para fazer uma cópia a mão), ele não só foi considerado imoral como também herege. Hoje sabemos conceber uma impressora biológica 3D mas não somos capazes de utilizá-la livremente. Nossas máquinas são mais livres que nós.

Em pouco tempo deixaremos de imprimir livros para imprimir carne. Entraremos em uma nova era de escrita biológica numérica. A era de Gutemberg se caracterizou pela dessacralização da bíblia, a dessacralização do saber, a proliferação das línguas vernáculas frente ao latim e a multiplicação de línguas politicamente dissidentes. Entrando na era Gutemberg biológica 3D, conheceremos a dessacralização da anatomia moderna como linguagem viva dominante.

Os regimes da hegemonia masculina e da diferença sexual (que ainda prevalecem hoje em dia apesar de estarem em crise desde 1968) equivalem, no domínio da sexualidade, ao que foi o monoteísmo religioso para a teologia. Da mesma maneira que parecia impossível (ou sacrílego) para o Ocidente medieval pôr em dúvida a palavra divina, hoje parece aberrante pôr em dúvida o binarismo sexual. No entanto trata-se apenas de categorias históricas, mapas mentais, limitações políticas à proliferação indefinida da subjetividade. As lógicas do binarismo sexual e da diferença entre homossexualidade e heterossexualidade são os efeitos da submissão da potência de um corpo a um processo de industrialização da reprodução sexual. Nossos corpos não são reconhecidos como potenciais produtores de óvulos ou espermatozoides que se submetem à cadeia família – fordista na qual estão destinados a se reproduzir.

Masculinidade e feminilidade, heterossexualidade e homossexualidade não são leis naturais, mas práticas culturais contingentes. Linguagens do corpo. Estéticas do desejo. A possibilidade de desenhar e imprimir nossos órgãos sexuais nos enfrenta com novas questões. Já não só com que sexo anatômico nascemos, mas que sexo queremos ter. Da mesma forma que os corpos trans decidimos intencionalmente introduzir variações hormonais ou morfológicas que podem ser reconhecidas exclusivamente como masculinas ou femininas segundo os códigos binários de gênero, será possível implantar uma multidão de órgãos sexuais em um corpo. Será possível ter um pênis com clitóris no plexo solar ou uma orelha erotizada consagrada ao prazer do sexo auditivo. Virá o tempo da estética contrassexual definida não pelas leis da reprodução sexual ou da regulação política, mas pelos princípios de complexidade, singularidade, intensidade e afeto.

*no Libération de 03 de fevereiro [e em castelhano no Parole de Queer]