Lincoln Detox Center 3: Gangues em Nova Iorque

Descobrimos o Lincoln Detox Center através deste texto do Felix Guattari, publicado no Brasil no início da década 1980, num livro chamado Revolução Molecular. Aqui Guattari destaca o protagonismo das gangues de rua do South Bronx no programa de desintoxicação do Lincoln Hospital, coisa que não pudemos confirmar em outras fontes. Pelo contrário, como se vê nos relatos reproduzidos em outras postagens aqui no CH, os grupos que Guattari chama de “movimentos revolucionários nacionais” [Young Lords, BPP, Republic of New Afrika] aparecem sempre como os grandes articuladores do Lincoln Detox. Porém, todos coincidem com FG num ponto que nos interessa bastante: a dissolução do poder médico [da “iatrocracia”, como diriam os valentes do SPK/PF] no Centro. Desde o início, os médicos foram afastados do comando do  Programa, assumindo sempre um papel coadjuvante – recordemos a surpreendente narrativa de Vicente “Panamá” Alba de como o programa começou a utilizar a acupuntura.

As fotos parece que foram feitas por Hélio Oiticica em seu desterro novaiorquino, mais precisamente no dia 19 de novembro de 1974, numa das sessões de gravação de vídeo de Martine Barrat com as gangues do South Bronx. A respeito, Barrat diz em seu site:

Meu querido amigo Hélio Oiticica costumava nos visitar, as gangues e eu, no South Bronx. Os membros das gangues  o amavam […]

A Gerência p/ Macacas Idosas do IGPS

★★★

GANGUES EM NOVA IORQUE

Felix Guattari [tradução de Suely Rolnik]

A marginalidade é o lugar onde se podem ler os pontos de ruptura nas estruturas sociais e os esboços de problemática nova no campo da economia desejante coletiva. Trata-se de analisar a marginalidade, não como uma manifestação psicopatológica, mas como a parte mais viva, a mais móvel das coletividades humanas nas suas tentativas de encontrar respostas às mudanças nas estruturas sociais e materiais.

Mas a própria noção de marginalidade permanece extremamente ambígua. De fato, ela implica sempre a ideia de uma dependência secreta da sociedade pretensamente normal. A marginalidade chama o recentramento, a recuperação. Gostaríamos de lhe opor a ideia da minoria. Uma minoria pode se querer definitivamente minoritária. Por exemplo, os homossexuais militantes nos Estados Unidos são minoritários que recusam ser marginalizados. Nesse mesmo sentido pode-se considerar que as gangues negras e porto-riquenhas nos Estados Unidos não são mais marginais do que o são os negros e os porto-riquenhos nos bairros das grandes cidades que eles controlam, às vezes, quase que inteiramente. Trata-se de um fenômeno novo que indica direções novas. Uma simplificação corrente consiste em dizer que este tipo de gangue não põe em ação senão mecanismos de autodefesa e que sua existência é apenas a consequência do fato de que o poder politico, os partidos e os sindicatos ainda não encontraram resposta a esse problema. (Foi na esperança de achar uma tal resposta que Reagan, quando governador da Califórnia, tentou estabelecer um colossal centro de pesquisas para estudar os meios de reabsorver a violência. Seus trabalhos deveriam orientar-se na direção, apenas caricaturada, do filme Laranja Mecânica).

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É fato que, no quadro dos fenômenos de decomposição que certas grandes cidades dos Estados Unidos conhecem, a urbanização e a “urbanidade”, por mais que tenha sido feito, deixam de funcionar lado a lado. O papel de melting pot da cidade deixa lugar, nesses casos de câncer do tecido urbano, a uma aceleração das formas de segregação racial, a um reforçamento dos particularismos que vai ate à impossibilidade de circular de um bairro a outro. (A polícia, hoje em dia, só penetra excepcionalmente em certos bairros de Nova Iorque.)

Ao invés de considerar tais fenômenos como respostas coletivas improvisadas a uma carência (a carência de moradia, por exemplo), dever-se-ia estudá-los como uma experimentação social na marra, em grande escala. De forma mais ao menos consequente, as minorias sociais exploram os problemas da economia do desejo no campo urbano. Essa exploração não propõe formas ou modelos, ela não traz remédio a algo que seria patológico: ela indica, isto sim, a direção de novas modalidades de organização da subjetividade coletiva.

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Detenhamo-nos num exemplo típico: o do South Bronx em Nova Iorque. Gangues de jovens, que reúnem às vezes vários milhares de indivíduos, esquadrinham toda essa parte da cidade. Eles se deram uma organização muito rígida, muito hierarquizada e mesmo tradicionalista. As mulheres estão organizadas em gangues paralelas, mas permanecem completamente sujeitas as gangues masculinas. Tais gangues participam, por um lado, de uma economia desejante fascista, e, por outro, daquilo que certos de seus dirigentes chamam eles mesmos de um socialismo primitivo (grass-root). Destaquemos entretanto os sinais de uma evolução interessante. Em certas gangues porto-riquenhas de Nova Iorque, onde as meninas eram tradicionalmente sujeitas aos chefes masculinos, aparecem agora estruturas de organização femininas mais autônomas, e que não reproduzem os mesmos tipos de hierarquia; as meninas dizem que, diferentemente dos rapazes, não experimentaram a necessidade de uma tal estruturação. Para elas, se trata de buscar um outro tipo de organização que se diferencie da mitologia ligada a uma espécie de culto fálico do chefe.

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Toda uma série de questões pode ser colocada a partir daí:

como é que se chegou a isso, principalmente no plano da segregação racial?

por que os movimentos de emancipação foram forçados a se fazer implicitamente agentes desta segregação?

por que os movimentos revolucionários nacionais (Black Panthers, Black Muslims, Young Lords, etc…) permaneceram sem possibilidade de controle sobre esses milhares de gangues que esquadrinham, quarteirão por quarteirão, uma parte considerável das grandes cidades americanas?

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Uma certa cultura, específica das massas mais deserdadas, um certo modelo de vida, um certo sentido da dignidade humana existem nessas gangues, e poderíamos igualmente creditar-lhes certas intervenções sociais que trazem respostas a problemas que nenhum tipo de poder de Estado pode abordar. Foi assim que no South Bronx bastou que uma equipe de médicos trabalhasse junto com as gangues para que se pudesse desenvolver um sistema muito original de organização da higiene mental.

Assinalemos, em particular, a propósito do problema da droga, uma experiência das mais originais, sempre no South Bronx. Há dois anos, durante as lutas raciais, o Lincoln Hospital foi ocupado por militantes revolucionários, depois evacuado ao cabo de algumas semanas. Mas todo um andar do hospital continuou a ser ocupado e não cessou de o ser, desde este período, por ex-drogados que assumiram por si mesmos a organização de um serviço de desintoxicação. Esta instauração da autogestão num serviço hospitalar mereceria ser explorada em todos os seus detalhes. Destaquemos simplesmente alguns fatos:

o essencial da equipe é composto por ex-drogados;

os médicos jamais têm acesso direto aos doentes e aos serviços;

o centro faz sua própria polícia e um status quo pode instituir-se com a polícia do Estado de Nova Iorque;

o Estado de Nova Iorque, após haver lutado muito tempo contra o Centro, foi levado finalmente a subvencioná-lo;

fez-se uma utilização muito particular da metadona, que é empregada aqui apenas como tratamento intensivo durante alguns dias, enquanto que nos serviços clássicos sua administração dura anos e constitui uma espécie de droga artificial sujeitando definitivamente o ex-drogado ao “poder médico”.

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Mas o que e talvez o mais interessante é a conjunção da ação das gangues com esse serviço de autogestão. Ela acabou não somente por aperfeiçoar um sistema de tratamento eficaz (veem-se drogados chegar por si mesmos, titubeando, ao Centro), mas por trazer soluções a um problema mais geral, o do tráfico da droga. Com efeito, as gangues tomaram o controle da situação, na verdade meio rudemente, eliminando pela persuasão, ou mesmo algumas vezes fisicamente, os pushers (traficantes).

Certas gangues e certos movimentos negros tomaram consciência da manipulação de que eram objetos, através da droga, pelo poder de Estado. (A coisa se tomou manifesta para eles quando se descobriu que os estoques de droga, apreendidos pela polícia nova-iorquina, tinham sido substituídos por farinha e revendidos pela polícia, e isso numa escala colossal.)

Mas o exemplos de tais ações relativamente pacificas continuam sendo exceção. A violência e o medo, frequentemente alimentados pela polícia, reinam no seio das gangues. Não se pode dizer que uma tal “experiência” nos propõe um modelo de “qualidade de vida”.

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Certos esboços de organização mais sistemática são combatidos pelas autoridades, em particular as relações que começavam a se instituir entre as diferentes gangues e mesmo entre as diferentes raças (negros, porto-riquenhos, chicanos, etc…) e as relações entre as gangues locais e os movimentos implantados nacionalmente.

O fenômeno das gangues, em sua amplitude e em seu estilo atual, data de bem poucos anos. Antigamente o conjunto dos movimentos negros tinha sido submerso por uma onda de droga branca que havia chegado até os altos escalões. Mas não é ao nível dos movimentos nacionais que um início de resposta ao problema da droga foi encontrada, e sim ao nível das gangues, que aliás consideravam tais movimentos muito elitistas, comparados a elas que permanecem em contato estreito com as massas e com os pés na terra.

Alguns professores e trabalhadores sociais começaram a trabalhar com estas gangues. Um professor e uma cineasta francesa1 realizaram com eles alguns filmes em video. As autoridades toleraram mal tais ‘iniciativas, tentaram recuperá-las com fins policiais. É possível entretanto que a Rede Alternativa à Psiquiatria2 consiga refazer estas tentativas.

Notas —————–

1N. da Trad.: Guattari se refere a Martine Barrat, fotógrafa e cineasta francesa, radicada em Nova Iorque, que vem acompanhando, desde 1971 as gangues de adolescentes negros e porto-riquenhos em South Bronx. Trabalha com video-teipe, muitas vezes manipulado pelas próprias gangues, sendo um registro que rompe com o silêncio forçado deste setor da vida social norte-americana. A circulação intensa do trabalho de Martine Harrat – inúmeras exposições, artigos de jornal e revista; programas de televisão – tem levado a voz das gangues pelo mundo. Martine Harrat esteve no Brasil, em 1979, durante alguns meses, vivendo em Mangueira.

2N. da Trad.: Cf. o cap. “A Trama da Rede” do livro Revolução Molecular.