Por que a inclusão trans nas Forças Armadas é uma luta equivocada?

Já que mais ninguém fala nada a respeito e não ouvimos nenhuma voz dissonante no coro da esquerda de boa consciência que, lá como cá, se apressou em prestar solidariedade às gentes trans da Gringolândia em seu sagrado direito de participar das guerras imperiais mundo afora, fomos obrigadas a traduzir [malepuercamente, pra variar…] mais um texto de Mattilda Berstein Sycamore sobre o tema. O primeiro está aqui. O título deste é Swords Into Marketshare – não fazemos ideia de como ficaria isso em portugay… quem souber, que se habilite. Seguiremos aqui no asilo do Puerco Suíno, sonhando com a insurreição translésbicha preta e anticapitalista que nunca veremos, mas virá. [MI do IGPS]

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Por que a inclusão trans nas Forças Armadas é uma luta equivocada?

Mattilda Bernstein Sycamore no The Baffler de 21 de setembro de 2017

Em 26 de julho de 2017, o presidente Trump anunciou (no Twitter, claro) que proibiria as pessoas trans de servir nas Forças Armadas dos Estados Unidos, um ano após Obama ter revogado a proibição. Imediatamente, imaginei comemorações espetaculares em cidades por todo o país, onde pessoas trans – e qualquer pessoa com consciência – se reuniriam para dar as boas-vindas a essa notícia com uma extravagante oposição ao militarismo em todas as suas formas. Talvez a transgressão de gênero pudesse, afinal, derrubar o Estado!

Finalmente, aqui estava o primeiro passo do plano de três pontos para dramáticas mudanças estruturais, nos sendo entregue de bandeja:

Passo 1: Proibir pessoas trans de servir nas Forças Armadas.

Passo 2: Proibir todas as pessoas de servir nas Forças Armadas.

Passo 3: Proibir as Forças Armadas.

Com apenas esses três simples passos, poderíamos liberar recursos para financiar tudo o que já sonhamos para este país: acesso universal à moradia e à saúde, garantia de renda mínima, refúgios para crianças queer e trans que escapam de lares abusivos – tudo o que você puder imaginar. Com a redistribuição das centenas de milhões de dólares destinados anualmente às Forças Armadas (quase metade de todo o orçamento federal), com certeza a palavra de ordem “Um mundo melhor é possível” pode se tornar algo mais que uma frase inspiradora.

Infelizmente, porém, as instituições dominantes que se autorrotulam como “o movimento LGBT” estão há tempos obcecadas com o acesso ao poder estatal (e hétero), em vez de desafiarem a violência estrutural. Desde o início da década de 1990, quando o fim da proibição de soldados abertamente homossexuais se tornou um objetivo central desse movimento, os chamados líderes LGBT e seus aliados se enrolaram na bandeira de listras e estrelas, enquanto os Estados Unidos destruíam o Iraque, o Afeganistão, o Paquistão, a Somália, a Síria, o Iêmen e sabe-se lá quantos países mais – tudo isso enquanto financiavam a guerra israelense contra os palestinos, apoiavam inúmeros regimes despóticos, saqueavam recursos naturais indígenas, envenenavam a terra, o ar e a água, doutrinavam jovens para uma vida de brutalidade e trauma.

Muita gente queer sabe, com certeza, o que é sobreviver ao trauma, certo? E, no entanto, o foco principal do movimento LGBT tem sido lutar pelo “direito de servir” à agenda imperial das Forças Armadas dos EUA, e não a necessidade de desafiar sua tirania no país e no exterior. Um dia após Trump anunciar a iminente proibição, eu liguei no Democracy Now, minha fonte diária de notícias, e assisti a uma entrevista com uma mulher descrita como o “primeiro membro da infantaria a se revelar transgênero”. Assisti com horror como ela exaltou as glórias das Forças Armadas dos EUA durante quinze minutos, sem que nenhuma pergunta séria fosse feita: “Eu amo meu país, só quero continuar a servir”, afirmou, naquela que é, indiscutivelmente, uma das fontes de notícias da esquerda antiguerra mais importantes e de maior audiência em todo o mundo.

Com dezoito anos de serviço militar, incluindo três idas em missão ao Afeganistão, ela acrescentou: “Nas Forças Armadas, nos concentramos no desempenho no trabalho. E é só isso que importa, o quanto você pode fazer bem o seu trabalho”. Ninguém perguntou: como alguém cujo trabalho é literalmente atirar nas pessoas, o que exatamente você quer dizer com desempenho no trabalho?

Depois dessa entrevista, um homem trans atualmente estacionado em Kandahar, no Afeganistão, declarou: “Eu gosto de estar mobilizado porque posso ser autêntico, sou só mais um cara… para mim, é como estar de férias, porque posso ser eu mesmo, em um ambiente tão austero”. Ao contrário da matéria anterior, esta não era uma entrevista ao vivo. Era um clipe pré-selecionado de um documentário do New York Times sobre soldados trans. Todas as pessoas responsáveis pela matéria já o haviam assistido antes, e disseram sim, isso realmente é algo legal para ser apresentado! Devemos acreditar que o Democracy Now vê uma missão militar no Afeganistão como umas férias da transfobia?

Durante décadas, a esquerda ignorou as vidas queer e trans, e agora que de vez em quando incorpora nossas vozes (sim, fui já convidada algumas vezes no Democracy Now), ela com frequência é das mais conservadoras. A matéria do Democracy Now foi atroz, mas o resto da esquerda, ao cobrir esta questão, muitas vezes é tão ruim quanto. Tome uma recente manchete do Mother Jones, “Cadetes Transgêneros ainda esperam sua chance de servir” – ou esta do Huffington Post: “Senador que perdeu as duas pernas no Iraque ataca a proibição aos militares transgêneros de Trump”.

Depois de transmitir vinte minutos de vozes trans enaltecendo o serviço militar, o Democracy Now pelo menos permitiu que o acadêmico trans Dean Spade articulasse críticas substantivas – mas só em uma conversa com o cineasta que achou inspirador destacar um cara trans que acha que a guerra é uma viagem de férias.

Vez ou outra, ouvimos essa mesma retórica pró-guerra sobre a inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA ao lado de coberturas detalhadas das guerras dos EUA que aterrorizam os povos ao redor do mundo. É como se a esquerda nem percebesse a contradição.

A presença incessante de gente gay, queer e trans pró-Forças Armadas na mídia antiguerra de esquerda é sintomática da homo/transfobia estrutural que rotineiramente se manifesta neste tipo de tokenismo retrógrado. Estas são as mesmas vozes que a imprensa e os políticos chamam de porta-vozes do rótulo “movimento LGBT”. Esse estratagema reformista retrógrado tem sua base de poder no grupo lobista de Washington DC denominado Human Rights Campaign, que há muito se centra no casamento e na inclusão militar, em vez de desafiar as instituições de opressão dominantes. Para essa elite acomodada no poder, os principais problemas são sempre as isenções fiscais e os direitos de herança, em vez do acesso universal à satisfação das necessidades básicas. Com o fim da proibição de soldados abertamente gays nas Forças Armadas dos EUA, em 2011, e o casamento gay tornando-se lei quatro anos depois, o movimento assimilacionista LGBT havia alcançado seus dois objetivos principais e buscava novas fontes de financiamento e uma outra “questão” que pudesse ampliar seu status dentro do status quo.

Durante anos, ativistas trans e queers exigiram que o “T” do LGBT representasse algo mais que um enfeite em bairros gays gentrificados que expulsam qualquer pessoa que não queira ou não possa se sujeitar às normas da classe média branca. Mas agora que o T se tornou mais visível, nos presenteiam com o horroroso espetáculo do serviço militar trans como o ingresso para a aceitação.

A questão da inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA não era sequer colocada até que Jennifer Pritzker, descrita como a primeira trans bilionária, doou US$1,35 milhão ao Palm Center para o estabelecimento da Transgender Military Iniciative (“Iniciativa Militar Transgênero”), em 2014. Aparentemente, US$ 1,35 milhão é o número mágico que leva sua questão ao centro do assim chamado movimento, já que de repente a inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA se tornou a bola da vez na agenda LGBT. (Se o nome Pritzker lhe parece familiar, é porque ela é membro da notória família Pritzker, cuja fortuna foi construída com especulação imobiliária e informações privilegiadas, e que teve uma outra integrante, Penny Pritzker, nomeada Secretária do Comércio de Barack Obama.).

A luta pela inclusão trans nas Forças Armadas toma emprestada a retórica de mais de duas décadas em apoio a homossexuais nas Forças Armadas, mas, em muitos aspectos, pode ser ainda pior, já que as pessoas trans não têm nem uma fração do acesso ao poder que gays tinham há vinte e cinco anos, quando o debate gays-nas-forças-armadas foi para o palco central da política nacional. As pessoas trans rotineiramente são expulsas de suas famílias de origem, assediadas na escola e no trabalho, perseguidas por líderes e políticos religiosos e atacadas nas ruas simplesmente por ousarem existir. Às pessoas trans muitas vezes é negado o acesso a serviços básicos, como saúde e moradia, elas são demitidas ou nunca contratadas, e forçadas a escapar dos lugares onde cresceram simplesmente para sobreviver. As mulheres trans, em particular as mulheres trans não-brancas, têm uma taxa de assassinatos brutais surpreendente.

Como o movimento LGBT responde a esse padrão assustador de violência e exclusão sistêmicas? Favorecendo o serviço militar como o caminho para a assimilação – que maneira melhor para provar que as pessoas trans são “saudáveis” e “aptas para o emprego” que participando da guerra pelo lucro das corporações? Dizem-nos que o serviço militar é um “direito humano”, como se os direitos humanos das pessoas nas aldeias destruídas por ataques de drones não importassem. E agora nos dizem que as Forças Armadas dos EUA são o maior empregador de pessoas trans e que as pessoas trans precisam desses empregos! Não importa que essa informação se baseie inteiramente em um estudo que analisou o levantamento demográfico de uma amostra de pessoas trans e, em seguida, extrapolou os números de pessoas trans servindo nas Forças Armadas. Isso é tudo – de repente, porque uma das questões da pesquisa perguntava à pessoa entrevistada se ela já havia estado nas Forças Armadas (mas não quando ou por quê), ouvimos as Forças Armadas sendo descritas como algum tipo de refúgio para pessoas trans em vez de uma instituição perversa que drena recursos de tudo o que realmente importa.

Em vez de chamar a atenção para as condições estruturais que tornam o serviço militar uma trágica opção para algumas pessoas tão desesperadas para escapar da opressão, que a internalizam, e por fim a expandem, o movimento LGBT eleva o serviço militar ao padrão ouro da bravura. Por que as pessoas à esquerda papagueiam a especulação absurda e não comprovada de que as Forças Armadas são o maior empregador de pessoas trans como se isso fosse um fato, reforçando o militarismo em vez de desafiá-lo?

Em qualquer caso, por que basear um estudo inteiro em adivinhar quantas pessoas trans estão nas Forças Armadas? Porque a inclusão militar era seu único objetivo. Caso contrário, haveria estimativas do número de pessoas trans em outras atividades, ou mesmo em outros setores públicos, certo? Um ponto de referência muito mais importante seria examinar o número de pessoas trans presas no sistema carcerário dos EUA e compará-lo com as Forças Armadas, uma vez que estes são bastiões gigantescos e superfinanciados do complexo prisional-industrial. Se, como indicam os registros atuais, há cerda de 1,3 milhão de pessoas no serviço ativo das Forças Armadas dos EUA, e aproximadamente 2,3 milhões de pessoas nas prisões dos EUA – e sabemos que as pessoas trans, e as mulheres trans em particular, especialmente mulheres trans não-brancas, estão sobrerrepresentadas no sistema penitenciário – então garanto que há muito mais pessoas trans nas prisões que nas Forças Armadas dos Estados Unidos. Mas quem vai querer me dar US$ 1,35 milhão para chegar a essa conclusão?

Há tanta dissonância cognitiva quando dizem que apoiam a inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA, mas não a guerra… Para quê, exatamente, eles pensam que as Forças Armadas são? A mesma linha nociva de pensamento mágico assume o controle quando dizem que as Forças Armadas ajudam as pessoas trans a escapar da pobreza – e então não conseguem explicar as inúmeras maneiras pelas quais as Forças Armadas geram pobreza e, em seguida, empurram as pessoas marginalizadas para servir. Ninguém deve ter que se tornar parte de uma instituição assassina para escapar de um lar ameaçador, para pagar a faculdade ou sair de uma cidade sem futuro. No entanto, é isso que o movimento LGBT anuncia como progresso.

E se tivéssemos um movimento LGBT que ajudasse as pessoas trans presas às Forças Armadas a sair de lá – a desaprender sua doutrinação e encontrar formas sustentáveis de autocuidado e cuidados comunitários? E se tivéssemos um movimento LGBT que estivesse centrado em tirar pessoas trans – e todas as pessoas – da prisão, em vez de fazê-las entrar nas Forças Armadas? Se a esquerda pudesse ver a diferença entre tokenismo e transformação, estaríamos muito mais perto de alcançar mudanças estruturais significativas.

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“Tropas transgênero” deve ser um oximoro

E eis que o tranqueira Donald Trump proibiu a presença de gentes trans nas gloriosas forças armadas dos gloriosos Estados Unidos da América, essas instituições tão benfazejas para os povos deste planeta. E, só pra variar, vemos o escândalo que tal notícia provocou em gente progressista do mundo todo, que agora grita e esperneia contra mais essa aberração trumpeana. Pra clarear um pouco azideia das mana, resgatamos de um blogue morto um texto de Mattilda Bernstein Sycamore, traduzido e postado no ano passado pelas macacas idosas do Instituto Geriátrico Puerco Suíno. Mantivemos também a eloquente introdução das macacas, que são velhinhas mas sabem das coisas. Siliga:

Do blogue das Macacas Idosas, no dia 30/06/2016:

No começo do mês azamiga progressistas, essas que nas manifestações sempre gritam “não acabou, tem que acabar…” quando chega a tropa de choque, compartilhavam por aí, felizes da vida, a matéria da Falha de Sumpaulo:

PM gaúcha libera, e soldado será o 1° gay a casar de farda em 178 anos

Ótimo, respondemos nosotras macacas senis, agora teremos a honra de ser esculachadas, torturadas e mortas por PMs orgulhosamente gueis e casados!

Essa agenda reacionária, parte do pacote LGBTTIQPQP imposto pelo Império, que prioriza a assimilação em instituições fundamentais para a manutenção do Heterocapitalismo – casamento, polícia, exército, igreja – é reproduzida acriticamente até por quem acha que está fazendo a revolução. E com muito orgulho, claro!

Vamos ler Mattilda Bernstein Sycamore, que é gringa e branca mas mostra com clareza o óbvio que azamiga cheias de orgulho não querem ver [o original tá aqui, num site “progressista”… tão progressista que alerta as eventuais piratas [nosotras, por exemplo] que seu material é copirraitado ui ui ui].

[Aproveitando a oportunidade, vai aqui uma homenagem do Instituto Geriátrico Puerco Suíno a duas guerreiras trans de verdade, Marsha P. Johnson & Sylvia Rivera: seremos eternamente gratas por seus coqueteis molotov, sisters!]

“TROPAS TRANSGÊNERO” DEVE SER UM OXÍMORO

Mattilda Bernstein Sycamore

No dia 01 de julho de 2016 o Pentágono anunciará uma suspensão da proibição de pessoas trans servirem abertamente nas Forças Armadas dos EUA, de acordo com um artigo do USA Today amplamente citado na mídia gay. Embora a notícia tenha sido saudada como uma vitória para os direitos trans, é difícil imaginar algo mais longe da verdade. Permitir que pessoas trans sirvam abertamente nas Forças Armadas dos EUA apenas promove a violência de uma das principais instituições de opressão global.

Não devemos nos esquecer que as Forças Armadas dos EUA atualmente estão bombardeando o Afeganistão, o Paquistão, a Síria, o Iraque, a Somália, o Iêmem e sabe-se lá quantos outros países ao redor do mundo. Não devemos nos esquecer que os EUA têm uma longa história de apoio a regimes despóticos, que atualmente vão da Arábia Saudita a Honduras, do Uzbequistão à Guiné Equatorial. Ouviu falar de um golpe militar em qualquer lugar do mundo? São altas as possibilidades de que os EUA o estejam apoiando. E não devemos nos esquecer que os EUA financiam a guerra israelense contra os palestinos, fornecendo também as armas. Não devemos nos esquecer que, depois de centenas de anos de genocídio contra os povos indígenas dentro de suas fronteiras ilegítimas, os EUA ainda tratam as terras nativas como lixões para resíduos perigosos. Não devemos nos esquecer que os trilhões de dólares que financiam as Forças Armadas dos EUA drenam recursos de literalmente tudo o que importa neste país, de educação e saúde a habitação e assistência social.

Nos EUA as pessoas trans são rotineiramente expulsas de suas famílias de origem, assediadas na escola e no trabalho, perseguidas por líderes religiosos e políticos, e atacadas nas ruas simplesmente porque se atrevem a existir. Pessoas trans muitas vezes têm negado o acesso a serviços básicos como moradia e saúde, são demitidas de seus empregos ou nunca são contratadas, e forçadas a fugir dos lugares onde cresceram, simplesmente para sobreviver. As mulheres trans, em particular as mulheres trans não-brancas, têm um índice assustador de assassinatos brutais. Nos poucos lugares públicos que mulheres trans e dissidentes de gênero criaram para sobreviver, enfrenta-se o assédio diário das forças de segurança pública e demais agressores, sendo muitas vezes presas pelo crime de lutar pela própria sobrevivência, onde a perseguição e a brutalidade frequentemente se agravam.


O que, então, o fim da proibição de pessoas trans servirem abertamente as Forças Armadas dos EUA beneficia? Mais do mesmo: guerra sem fim, pilhagem dos recursos indígenas nos EUA e no exterior, e uma orientação militarista que vê as pessoas oprimidas como bucha de canhão para o imperialismo dos Estados Unidos. Também serviria para a manutenção da violência antitrans nos EUA, onde o crescimento da legislação transfóbica agora significa que até o uso do banheiro que corresponde a sua identidade de gênero está sujeito a um sensacional debate nacional.

Não é nenhuma surpresa que tanto a Human Rights Campaign (HRC) quanto a National LGBTQ Task Force, os dois maiores grupos de lobby LGBT do país, imediatamente festejaram a notícia de que o Pentágono em breve iria acolher soldados trans. Estas duas organizações vêm liderado a guinada conservadora na política LGBT ao longo das últimas décadas, que ficou mais perceptível no início da década de 1990, quando a inclusão de gays nas Forças Armadas dos EUA se tornou a questão central para a luta do establishment gay. O status quo militarista na política LGBT tornou-se mais pronunciado à medida em que a agenda do mainstream LGBT centrou-se no acesso ao casamento como o único meio para se obter recursos básicos que deveriam estar disponíveis a todas as pessoas, como moradia, saúde e o direito de permanecer neste país (ou deixá-lo) se você assim o quiser. Mesmo quando se fala de violência antigay e antitrans, um problema que sem dúvida afeta mais gente queer e trans, os LGBT que detêm poder pedem o fortalecimento do sistema legal racista, classista, misógino e homofóbico através de leis de crimes de ódio.

Na verdade, o sucesso dos objetivos do establishment gay não é o contraponto ao aumento das leis transfóbicas, é parte de sua causa. O movimento pelo casamento gay/inclusão militar excluiu sistematicamente qualquer pessoa que não seja aceitável o suficiente para a Fox News, de modo a obter direitos apenas para quem se dispuser – e for capaz de – se adaptar às normas da classe média branca hétero. Esqueça a luta por acesso universal às necessidades básicas – vamos apenas enfocar a isenção de impostos e os direitos de herança para os ricos. Esqueça as pessoas trans, as não-brancas, as pobres, sem-teto, deficientes, gente com HIV/AIDS, jovens, idosas. Esqueça migrantes de todos os tipos – não apenas quem vem de outros países, mas também queers que fogem de cidades e vilarejos dos Estados Unidos onde ainda não podem viver suas vidas sem medo.

Organizações como a HRC e a LGBTQ Task Force não são parte da solução para a transfobia; são parte do problema. Que alguns gays (e umas poucas pessoas trans) agora se beneficiem com a participação em intituições de opressão (voluntária ou involuntariamente) não significa que essas instituições tenham mudado. Significa que essas instituições mudaram a política gay, queer e trans, despolitizando uma geração inteira, fazendo com que todas nós sofrêssemos as consequências.

Em 2011 o Pentágono autorizou formalmente que soldados gays servissem abertamente seu país, bombardeando e oprimindo gente pobre não-branca ao redor do mundo, e, em 2015, a Suprema Corte derrubou as proibições ao casamento gay. Estas decisões foram as conquistas máximas do establishment gay, e depois que se tornaram lei muitos gays da elite sugeriram que o fim do movimento LGBT havia chegado. O que mais poderia ser necessário, afinal de contas, uma vez que os gays ricos obtiveram o mesmo poder para proteger seu patrimônio que seus pares hétero?

O quão longe chegamos dos objetivos originais da libertação gay surgida nas décadas de 1960 e 1970 – o fim do estado opressor, da religião organizada e da família nuclear; a rejeição da guerra, do racismo, da supremacia branca e do imperialismo; e uma redefinição fundamental das relações para além da monogamia obrigatória e do puritanismo sexual. Enquanto “Poder Gay” foi uma das palavras de ordem originais desse movimento, poder gay hoje significa acesso a todos os meios do Estado para oprimir e marginalizar ainda mais qualquer pessoa que esteja no caminho da gentrificação, o consumismo acrítico e a assimilação aos privilégios hétero.

Embora tenha havido por muito tempo uma divisão de classes na política gay e queer, as pessoas trans foram esmagadoramente forçadas à marginalidade. Mas agora nós até vemos o surgimento de uma elite trans – na verdade, foi a veterana militar Jennifer Pritzker, descrita como a primeira trans bilionária, cuja notória fortuna familiar é feita em cima da especulação imobiliária e de informações privilegiadas, quem impulsionou a luta pela inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA. Em 2013 Pritzker deu US$ 1,35 milhões para o Palm Center, que então criou a Transgender Military Service Initiative, e de repente uma questão até então pouco comentada reivindicou as manchetes nacionais.

Por décadas o establishment gay tem sido dominado pela agenda dos ricos, que vê a identidade como um fim. “Gay” torna-se simplesmente uma outra forma de enfeitar toda instituição hipócrita hedionda, camuflando sua violência – casamento gay, gays nas forças armadas, policiais gay, padres gays, o que mais? Oh, vamos fazer as pessoas trans se misturarem – nos diz o establishment gay, depois de empurrar as pessoas trans para fora de um movimento que elas mesmas começaram (lembram-se da Rebelião de Stonewall em 1969, considerado o início do movimento LGBT dos dias atuais – quando mulheres trans não-brancas, travestis de rua, sapatonas machudas, michês e, sim, até algumas gays e lésbicas “respeitáveis”, lutaram contra a polícia pelo controle de corpos e vidas queer?).

Após o anúncio de 01 de julho de 2016, de que o Pentágono permitirá pessoas transgênero nas Forças Armadas dos EUA, cada ramo das Forças Armadas terá um ano para implementar a mudança de política. Isso com certeza dará origem a debates intermináveis na mídia sobre os corpos e as vidas trans. Enquanto políticos, especialistas, demagogos e “experts” de todo o limitado espectro político permitido nos fórums públicos debatem qual corpo é permitido onde, e qual tipo de transição de gênero será suficiente o bastante para quais fadigas de frente de batalha, estarão na realidade gerando mais transfobia em vez de afrontá-la. E, como no debate sobre o casamento gay, este espetáculo público hipócrita servirá de camuflagem para a continuação da mesma política externa militarista devastadora, a mesma agressividade perversa em casa e no exterior.

Em breve pessoas trans poderão servir abertamente seu país apertando botões em Nevada para destruir aldeias paquistanesas, ou voando em países ao redor do mundo a fim de apoiar tiranias. Transgênero, assim como gay ou LGBT, vai se tornar um outro apêndice para legitimar o terror de estado. Isso não é progresso – tornar-se parte da violência apenas gera mais violência. Precisamos voltar aos objetivos originais da libertação gay, trans e queer – o fim do controle do estado policial sobre os corpos e as vidas queer e trans; libertação sexual, social, política e de gênero, não só para queers mas para todas as pessoas, nos EUA e em todo o mundo.

Vamos pressionar pelo fim das Forças Armadas dos EUA e sua agenda imperialista e sanguinária – ou, pelo menos, por cortes drásticos nos recursos que lhes são destinados. Caso contrário, as profundas mudanças estruturais que necessitamos neste país nunca serão possíveis.