Aquivos por Autor: A Gerência
Hormônios 2
Desde que o Menino Cobaia trouxe ao hotel o tema da contaminação ambiental por xenoestrógenos nós temos pensado bastante sobre essa situação paradoxal em que toneladas de estrógenos são despejadas sorrateiramente sem qualquer controle em nosso entorno, ao mesmo tempo em que a livre experimentação consciente com hormônios em nossos próprios corpos passa por um rígido controle institucional. E é exatamente disso que trata o Open Source Estrogen/ Estrógenos de Código Aberto, um projeto de Mary Maggic, Byron Rich & outres corpes:
A BIO-LENTA E O PARADOXO DA DISRUPÇÃO
Toxidade ambiental e Biopolítica contra a soberania do corpo e de gênero
A BIO-LENTA é o exercício da violência biopolítica contra a capacidade individual de decisão.
O Paradoxo da Disrupção nos recorda como o poder hegemônico silencia a forma pela qual intoxica nossos corpos ao mesmo tempo em que patologiza as identidades dissidentes de gênero.
Partindo disso… vamos esclarecer alguns conceitos.
O que é Biopolítica?
Há diferentes maneiras de definir a biopolítica. De acordo com Foucault, a biopolítica é a maneira pela qual o governo regula a população através do biopoder, isto é, a aplicação e o impacto político do poder em todos os aspectos da vida humana.
“O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetiva somente mediante a consciência ou a ideologia, mas também no corpo e com o corpo. Para a sociedade capitalista o que importava acima de tudo era o bio-político, o biológico, o somático, o corporal”. (Foucault)
Para compreender esta forma de dominação, é importante entender dois conceitos principais: Zoé e Bios.
Zoé significa, em grego clássico, simplesmente “vida”.
Bios faz referência à vida política.
Foucault sugere que com a aparição do estado moderno, a zoé foi incluída na bios, com a intenção de controlá-la.
No entanto, Giorgio Agamben (Roma, 1942) repensa a biopolítica foucaultiana. Podemos encontrar duas importantes diferenças entre Agamben e Foucault:
1. O biopoder se apropria da zoé dxs cidadã/os para sua manipulação política desde o início da hegemonia ocidental, na polis grega.
2. O poder político cria uma coincidência conceitual entre Zoé e Bios. Este ponto é importante porque coloca que a “simples vida” foi considerada fora da lei. Mas com a absorção desse espaço, zona autônoma e fora da lei, pela Bios, o poder político estende sua ação sobre o exercício da vida dos seres vivos.
Podemos tomar estas ou outras definições de biopolítica, mas o ponto é:
O significado conceitual da biopolítica se relaciona com a capacidade do poder hegemônico para controlar os corpos, comportamentos e identidades dxs seres humanxs.
COLONIZAÇÃO MOLECULAR E TOXIDADE AMBIENTAL
A contaminação com xenoestrógenos está interferindo nos estrógenos naturais, o que provoca uma série de disfunções e doenças no sistema hormonal dos seres vivos. Os xenoestrógenos, como o DDT e o DES, foram sintetizados pelas indústrias química e farmacêutica, criados na década de 1930.
Os xenoestrógenos sintetizados quimicamente podem permanecer no meio ambiente por até 100 anos. Além disso, demonstrou-se cientificamente que são transmitidos através de recipientes de plástico (especialmente os de PVC). Essas são as principais causas da contaminação por estrógenos. Os xenoestrógenos são DISRUPTORES HORMONAIS, isto é, geram mudanças na funcionalidade do sistema endócrino.
Graças às teorias de Agamben, é possível entender a contaminação por xenoestrógenos como uma forma de controle biopolítico, porque afeta o equilíbrio hormonal dos seres vivos, incluídos os humanos. E, mais concretamente, a contaminação por estrógenos pode ser considerada uma expressão da “slow violence” ou violência lenta/paulatina.
O que é a violência paulatina [a.k.a BIO-LENTA]?
Segundo Rob Nixon, em seu livro Slow Violence and the Environmentalism of the Poor, a violência lenta é um tipo de violência que tem lugar gradualmente e fora da vista (pública). Não é um tipo de violência espetacular e instantânea, mas uma violência que muitas vezes nem se considera como tal. Em nosso caso, a contaminação por xenoestrógenos se adapta perfeitamente à ideia de violência paulatina porque a opinião pública não atua sobre ela, por falta de informação. A onipresença dos xenoestrógenos é um ato silencioso e progressivo de envenenamento.
Como pudemos ver nos ataques terroristas do 11 de setembro, o tratamento dado à violência pelos meios de comunicação se baseia no espetáculo.
Os meios de comunicação não costumam prestar atenção nas tragédias produzidas pela violência paulatina, como a contaminação por estrógenos.
Um dos objetivos principais do projeto Estrógenos de Código Aberto consiste em oferecer ao público a informação relacionada com a contaminação por estrógenos na água de Madri para envolver a sociedade civil, exigir intervenção política institucional e oferecer uma reflexão sobre a ação corporal subversiva.
Estrógenos de código aberto
“Escritorxs, cineastas e ativistas digitais poderiam desempenhar um papel mediador ajudando a se contrapor à invisibilidade estratificada resultante das ameaças insidiosas, procedentes da temporalidade prolongada, e do fato de que as pessoas afetadas são aquelas cuja qualidade de vida – e, com frequência, a própria existência – é indiferente para os grandes meios de comunicação” (Rob Nixon)
Centradas nesta proposta, abordamos uma reconsideração do projeto com a ideia da apreensão.
Primeiro, a apreensão esboça percepção, emoção e ação, por outro lado, nosso projeto inclui a detecção, extração e a síntese de estrógenos. Existe uma relação direta entre estas duas tríades de conceitos, mas existe também um diálogo multidirecional dos seis conceitos. Em segundo lugar, apreendendo algo potencialmente perigoso, como os estrógenos disseminados no ambiente madrilenho, e usando-os como arma criativa e comunicativa, criamos uma subversão artística.
Com a ajuda de tecnologias contemporâneas de baixo custo, convidamos o público a uma mudança na percepção temporal dos processos violentos alteração de Gaia (a Terra é o melhor indicador dos problemas de poluição). Para isso, coletamos amostras de água da cidade de Madri e as analisamos em nosso laboratório biológico caseiro, geolocalizando os resultados. Experimentamos com a detecção e a extração do estrógeno das amostras e liberamos o conhecimento mostrando como construir um laboratório DIY com materiais cotidianos.
O PARADOXO DISRUPTIVO
Disrupção
s.f.
(do latim disrupio, -onis, fractura, ruptura)
Ato ou efeito de romper(-se); dirupção, fratura.
Quebra de um curso normal de um processo.
Criar confusão ou desordem.
Restabelecimento abrupto de energia elétrica que provoca faíscas e enorme consumo da energia acumulada.
Em escoamento de fluidos, formação e acúmulo de turbilhões ao redor de um obstáculo; deflexão.
Enquanto o atual e voraz sistema hegemônico de consumo nos envenena lentamente através da toxidade estrogênica ambiental provocada pelas dinâmicas da alta produtividade industrial e da exploração agrícola, os corpos dissidentes, inclassificáveis nos parâmetros binômicos, são patologizados.
Enquanto a instituição médica, política, psiquiátrica e farmacêutica coloniza nossos corpos, a agroindústria alimentícia os altera com a BIO-LENTA.
Ao mesmo tempo, as pessoas transgênero são tratadas como doentes, submetidas a diagnósticos e à experimentação do poder, a livre experimentação da disrupção hormonal está encriptada.
Tanto a toxidade ambiental como as ações corporais subversivas, estão envolvidas na disrupção hormonal.
Os hormônios sexuais estão dentro de nós e pululam por nosso entorno, afetando nossos corpos.
A coisa é: por que não podemos decidir como queremos expor nossos corpos? A contaminação por xenoestrógenos é ocultada pelo poder porque a regulação e o controle de sua toxidade são controvertidos.
Por outra parte, a normatividade enclausura a possibilidade de hackear nossos corpos para romper o sistema hegemônico e os privilégios do sistema cis-sexista.
Esta situação insana se parece com algo como uma INDÚSTRIA CAPITALISTA FARMACOPORNOGRÁFICA de controle social e reprodutivo.
A contaminação por estrógenos não está controlada nem calibrada por nenhum parâmetro de sustentabilidade ecológica. No entanto, existem consequências sobre o funcionamento de nossos corpos pela exposição prolongada a estes níveis não analisados nem identificados. O silêncio consentido em favor dos interesses econômicos liberais nos afeta.
A ficção do sistema sexo/gênero acompanhado de uma concepção binarista e cis-sexista da sociedade, desnormaliza a soberania do corpo e do gênero, patologizando as identidades trans, inter, queer…
Precisamos nos reapropriar da soberania de nossos corpos, devemos ressignificar e decolonizar os termos e processos, e, finalmente, temos que hackear o controle da instituição através da DESOBEDIÊNCIA CIVIL BIOTÉCNICA.
Como? Queremos desmitificar as objeções em relação à experimentação hormonal. Se conhecemos os níveis de toxidade poderemos proteger nossa soberania. Abriremos o código de nossa experimentação para a intervenção política. Este projeto de biohacking poderia ser um fantástico caminho para a injeção cultural da resistência. [ texto retirado do Estrozine 1.1 – tradução das macacas idosas do Instituto Geriátrico Puerco Suíno]
Open Source Estrogen/Estrógenos de Código Aberto: donas de casa fazendo drogas combina ciência DIY, política de corpo e de gênero, e ética da manipulação hormonal.
O objetivo do projeto é criar um protocolo de código aberto para a biossíntese de estrógeno.
A cozinha é um espaço politicamente carregado prescrito às mulheres como seu ambiente apropriado, o que a torna o contexto exato para se fazer uma receita de síntese de estrógeno.
Com os recentes desenvolvimentos no campo da biologia sintética, a cozinha adaptada em laboratório pode ser uma realidade ubíqua num futuro próximo.
O estrógeno de código aberto poderá permitir a mulheres cis e trans o exercício de um maior controle sobre seus corpos ao prescindir de governos e instituições.
Queremos perguntar: quais são as biopolíticas que governam nossos corpos? E mais importante ainda: é ético autoadministrar-se hormônios autossintetizados?
[Os detalhes sobre a detecção, extração e geolocalização da BIO–LENTA Madrilenha, você encontra AQUI.]
Tukkkanistão, janeiro de 2017
“Biologia de escola não explica nada”
De uma hóspede vitalícia do hotel:
A vizinha foi operada. Tinha hérnia, aproveitou e fez tudo. O marido disse que ela não gosta de falar que é bariátrica. Já vi muita gente que fez e está engordando loucamente. Mas os médicos adoram falar que é coisa simples, enchem a cabeça das pessoas pra elas fazerem. E, meu, o cara que fez medicina, não você, aí você acha que se ele tá falando deve ser verdade. Sabe o que é absurdo? A gente tem aula de biologia, mas não sabe onde fica nada. Se tem dor, não faz ideia do que tem ali dentro. Estou até hoje tentando entender a cirurgia que fizeram em mim, em que o cara mexeu, onde eu sinto e por quê. Ainda que esse ortopedista e a fisioterapeuta explicam tudo o que eu pergunto, como funciona. Ainda têm toda paciência, o que não é normal. Mas ainda estou tentando entender um joelho. Biologia de escola não explica nada… Agora que eu tô aprendendo direito onde fica todo aparelho digestivo, fígado, baço, intestinos… a gente vê desenhinhos lindos, mas não aprende que rim fica na lombar… essas coisas…
Mar Arriba
Entrevista Transdisciplinar Queer Cripple Aleijada Def: Games of Crohn – Diario de una Internación
A pedido de Sandra, que conheci na turnê “Games of Crohn – Diario de una internación”, na apresentação realizada em Barcelona no espaço das companheiras trabalhadoras sexuais da Aprosex, convidamos muitas companheiras defs e trabalhadoras sexuais para participar desta reunião de reflexões.
Sandra Estragués:
A partir de sua experiência no hospital onde esteve internada por causa da condição de Crohn, quais são os fatores que você diria que afetam de forma especial e diferenciada as mulheres – as biopoliticamente designadas “mulheres” – e que não afetam os homens cis heterossexuais? São os entornos hospitalares, como você diz em seu livro, “espaços de feminização forçada”?
Realmente não sei o que não afeta os homens, porque por sorte não sou um deles; mas comprovou-se que qualquer dor, especialmente na região corporal estratificada como reprodutivo-digestiva, expressada por uma corporalidade “mulher”, cis ou trans, costuma ser desconsiderada porque o mito da “histérica” freudiana que mente continua operando, de forma consciente ou não, no pessoal médico. Com isso o acesso à analgesia é sempre mais restrito quando se porta um útero ou uma feminilidade que costuma ser associada a um útero. Creio que o mundo é um espaço de feminização forçada, não só o hospital. Mas a infantilização da mulher no dispositivo hospitalar se faz notar com força: sempre nos tratam como menininhas com capacidade reduzida de compreensão, a quem se fala no diminutivo porque não entendemos bem sobre o que estão nos falando e nem terminam de explicar “para que não fique impressionada”. Como narro no livro, o peso e o que consideram um peso “normal” também tem relação com os padrões de beleza hegemônicos.
Em um trecho de seu livro você diz “A doença normaliza. Ela torna mulher, humana, se você se entrega, no pior sentido que essa palavra pode ter. Ela faz de você uma pessoa pouco autônoma, vítima […]”. Podemos deduzir, a partir de suas palavras, que o aparato médico é um reprodutor de violência sobre nós, um potente agente “normalizador”?
É um dos dispositivos de normalização e correção mais coercitivos com que contamos nos últimos anos. Afinal de contas, muitas vezes chamam “curar” o que pura e simplesmente é uma operação, em geral a ponta de bisturi, para ajustar até fazer encaixar uma corporalidade que ultrapassa os estreitos limites das identidades prescritas. O dispositivo hospitalar subjetiva até seus médicos, não só suas pacientes. Não está lá nem para companhar nem para dar assistência, nem também para curar, porque muitas vezes os quadros clínicos não são curáveis, porque não são doenças. Apenas são. A medicina se beneficiaria muito se tivesse um papel de acompanhamento e empoderamento, que atualmente não tem, especialmente para nós que necessitamos de suportes técnicos específicos. E podemos dizer o mesmo dos feminismos. Já não têm mais. Mas pelo lado da práxis médica, o mundo está dividido entre saudáveis e doentes e isso gera muitas vantagens, em especial para aqueles que detêm o protocolo que define quem fica de um lado e quem fica do outro. Para mim o aparato médico é o braço armado da biopolítica. Se você se descuida, podem ser pessoas realmente perigosas, dotadas, por um lado, do saber/poder do qual ninguém desconfia ou questiona e, por outro, das armas/ferramentas. Não tenho uma relação harmoniosa com a instituição corporativa médica. Tento ir pouco e me relacionar o menos possível só com pessoas específicas com quem, sim, podemos trabalhar. Em geral me parecem pessoas embrutecidas por sua maneira de adquirir conhecimentos e por sua disciplina com pouca capacidade de empatia, e uma soberba inédita, apesar de seu embrutecimento.
Em seu livro você também afirma “As feministas continuam pensando que são melhores que as trabalhadoras sexuais e as defs”. Você acredita que o feminismo abolicionista reproduz os argumentos do capacitismo, quando essas feministas se consideram “melhores” que as trabalhadoras sexuais, partindo da ideia do corpo como algo sagrado?
O feminismo hegemônico foi historicamente capacitista – como quase tudo até a atualidade – em seu essencialismo, utilizando argumentos do dispositivo médico corretivo-normalizador para ditar quem éramos as mulheres e quem não era (primeiro foram as lésbicas, depois foi a vez das trans e amanhã, quem sabe, talvez as deformadas). Nos dias de hoje encontramos frases feministas tais como “a transexualidade é parte da dominação masculina”. Sem dúvida as trabalhadoras sexuais, assim como o “coletivo de diversidade funcional”, isto é, nós as defs/aleijadas, somos um exemplo contundente de que a dissidência não é necessariamente sexual, e que muitas vezes, como acontece com o véu na Europa, o que aparentemente é o epítome do tradicionalismo conservador (assim como essa imagem da suposta beleza hegemônica da trabalhadora sexual, que é sempre bastante mítica e quando se desce à realidade a coisa não é bem assim) na realidade tem potências contestatárias em confronto contra a ordem estabelecida (como o véu dentro da disputa conta a hegemonia ocidental). Atos de confronto e desobediência, inclusive sem o saber, o que me parece ainda mais fascinante. Devir Antígona.
Bárbara G. F. Muriel:
Qual é, para você, a potência política da dor? E das nossas cicatrizes?
Uma pensadora brasileira, Suely Rolnik, fala de “corpos vibráteis”. Acredito que somos isso: corpas que se agitam, vibram, estremecem, fendem-se, gritam, fazem ranger o maquinário do normal. Não concebo, desde antes de meu diagnóstico, uma vida sem dor. Não consigo pensar em nada pior que a não-dor. Recordemos que a dor não é o sofrimento e que a dor, como foi longamente estudado desde Sade, Genet ou Foucault até o grupo Samois, pode nos lançar em abismos insondáveis de extremo prazer ou autoconhecimento. Se você me permite ser poética, eu diria, citando o verso do poeta irlandês Arthur O’Shaughenessy, que somos quem movemos e agitamos o mundo. A revolução é das frágeis sencientes cuja “saúde” tão vulnerável tem a potência de fomentar uma melhor escuta do existente e da vida. Caso contrário, será simplesmente publicidade para conseguir uma melhor posição social ou pornô inspiracional. Fazer da dor física, do vazio existencial, uma experiência política é o desafio. Creio que é disso que fala Games of Crohn tanto quanto outras produções ou criações de corpos vibráteis, como as suas na área das artes visuais, por exemplo. Doente e anormal são, para mim, denominações feitas em referência a um limite que me circunscreve no entorno ou contra a normalidade. É claro que uso esses conceitos quando é necessário incomodar. Mas dentro de mim não acredito nisso. Convivo com uma gata que é quase cega e surda como uma parede. Não tem diagnóstico, portanto, apesar de ser muito particular aos meus olhos, ela simplesmente existe uma vida prazerosa sem perceber que não vê ou não ouve. Sua vida é assim. E me parece que por isso mesmo (e não apesar disso mesmo) vive não só muito alegremente, como desdobrou uma grande quantidade de potências: por exemplo, não teme o barulho da metrópole onde vive, não se assusta. Sua suposta incapacidade se vê como uma adaptação. Creio que muitas de nós poderíamos ser como a Elliot, a gata surda-cega. É o modelo social que nos impede. Como já disse por aí, sinto que uma boa parte de mim não participa deste banquete sem piedade chamado humanidade, ama e soberana de tudo o que existe, que aplaina e asfalta a rodovia do progresso, e celebro isso, celebrarei sempre, não importa o quanto doa, porque qualquer coisa que me faça menos humana (entendendo-se por humano esse ideal regulatório de perfeição e normalidade que ninguém resiste e por humanismo essas soberanias submetidas contra as quais nos advertia Foucault em Microfísica do Poder) me cai bem e me da alegria, isto é, incrementa minhas potências de agir ainda que às vezes tenha que estar quieta, ainda que no ínterim tenha que fazer terríveis concessões.
Miriam Vega:
Nem toda def carrega implícita uma dor física em sua corpa, e nem toda corpa que dói é considerada def pelo sistema imperante. Como você acha que este vazio afeta o interior da subjetividade que se reconhece como def? Como o sistema representa o corpo def?
O capacitismo cria seu próprio modelo estigmatizador em ambos os sentidos da deficiência. Só são defs as pessoas com as chamadas deficiências múltiplas e as consideradas com suas capacidades intelectivas devastadas, como tive que escutar de uma professora especializada em deficiência para referir-se a alguém surdo e cego. Portanto, se você pode se movimentar, se não está em cadeira de rodas, e não finge uma certa imbecilidade, você não é def, invisibilizando toda uma série de fatores com suas necessidades específicas que não são visíveis a primeira vista. Estamos realizando com Mai Stansauger, com quem fizemos o documentário do Crohn, uma série de vídeos que se chama Mutantes y Orgullosas sobre condições invisíveis: endometriose, ostomia, esclerose múltipla, HIV, diferentes diagnósticos psiquiátricos e Crohn. Toda essa gama de pessoas que em muitos casos são defs sem documentos, cidadãs de segunda de uma cidadania de saúde já subalterna. Este fenômeno de produzir, através da opressão, um estigma que por sua vez nega importância e existência àquelas pessoas não estigmatizadas também se observa frequentemente em outros fenômenos como o estupro ou o aborto: enquanto seguirmos pensando que o estupro só existe quando ocorre no meio da noite, onde um desconhecido te dá uma paulada na cabeça e te arrasta para um descampado, negaremos a existência de quadros muito mais sutis, infrafamiliares, com gente de confiança, todo tipo de abusos que muitas vezes dificilmente são detectáveis até para a pessoa que os sofre, que só os verifica em seu mal-estar. E assim também com o aborto, que é considerado um descuido ou má sorte e não um risco ou um efeito colateral intrínseco a toda relação penetrativa-coital onde estão envolvidos líquidos seminais.
Não acredito nas olimpíadas da opressão, por isso não vale a pena competir para ver quem sofre mais a opressão capacitista e sim detectar melhor quem se beneficia com o regime e como desmantelá-lo. Do mesmo modo não acho que vivo melhor porque me desloco sobre minhas duas pernas e não sobre umas próteses de carbono ou uma cadeira de rodas. Também não creio que existam quadros ou condições mais sofridos que outros. Segundo quem tal ou qual vida é pior que a outra? Não me consta que ter maior capacidade de movimentos torne uma vida mais rica só porque há um mundo feito para pessoas com certas características e não outras. Creio que é necessário nos juntar, nos encontrar no que temos em comum nesta forma realmente divergente de habitar o mundo e visibilizar os pontos de encontro: como se explica no famoso vídeo de Sunaura Taylor com Judith Butler, os crimes de ódio que ainda ocorrem contra as populações cujas expressões de gênero e desejo excedem os ditames da heterossexualidade se baseiam em como as pessoas são vistas, ou se movem ou se deslocam, tal como acontece com nossa comunidade aleijada ou com o coletivo de trabalhadoras sexuais.
Neste livro você formula um diário que lhe sustenta durante a internação e a recuperação de seu corpo, inclusive poderíamos falar que a palavra é formulada como uma prótese que te mantém para não te ver cair. Mas por outro lado poderíamos dizer que seu princípio ativo funciona com sua leitura, com a responsabilidade que o corpo leitor adquire para entender que este livro não tem o propósito de contar para equilibrar o excesso, mas de eriçar consciências e de fazer máquina que modifique e esbofeteie o corpo capacitista. Com tudo isso me surgem várias perguntas: como fazer o corpo capacitista entender que o que impera não é a terapia, mas sua maneira de proceder?
Adoro as suas perguntas. Antes de tudo, obrigada. Eu não quero fazer ninguém entender nada. Quem puder sentir conosco, que sinta, o resto, sinto muito, rezarei a Baphomet para que fiquem bem. Ou como dizia nosso velho e querido comediante Fernando Peña, “desejo a todos que adoeçam de uma doença terminal, mas não morram”… ou algo assim. Ultimamente ando desejando muito que as pessoas adoeçam. Vai depender de sua maneira de sentir ou entender “a doença” se me dirão obrigado ou me mandarão cagar. Mas não creio que possa haver diálogo com quem se beneficia de nossa opressão. Assim como as afrodescendentes e outras corpas feitas sob os efeitos da opressão branca não se sentam para pensar como fazer branquinhas antirracistas como nós entenderem, mas sim como desbaratar o regime.
A partir de seu posicionamento de professora, de querer compartilhar conhecimento, de ensinar paradigmas úteis, você acredita que se deve com o foco no discurso fazer entender o outro corpo ou, pelo contrário, é melhor investir forças em outras questões que elevem nossas potências?
Meu trabalho docente é um trabalho vivível. Simplesmente isso. Se eu soubesse, seria eletricista. Não há nada mais por trás disso. Lamento não ter pensado em ser puta antes, queria ter sido trabalhadora sexual bem jovem por muito dinheiro, quando ser magra e estar hiperdepilada não me custava tanto esforço.
Recomendo que sempre o esforço e o afã estejam orientados para o incremento da própria potência. Como a potência só se incrementa compondo com outros corpos (não necessariamente humanos), então nunca se está inteiramente só ou isolada e graciosamente se dá a volta no individualismo. Devemos repelir com suma força a tentação de ajudar os outros e fazer o bem, de fazer alguém entender algo. É um lugar não só infrutífero como também problemático, como de púlpito: atrás dessa função pseudopedagógica bondosa, que nada tem a ver com a capacidade ético-afetiva, se encontra Hitler jogando bridge com a madre Teresa de Calcutá. Quem queira sentir, que sinta. Os chamados estão destinados a quem pode sentir, e o devir é sempre minoritário.
Qual a sua opinião sobre a arteterapia e a prática do arteterapeuta? Até quando vamos continuar infantilizadas?
Nem sei o que é, e pelo jeito que soa, parece que não me interessa. Em princípio desconfio da arte, exceto que seja ofensiva e quando é muito ofensiva, pois aí já não é considerada arte em nosso mundo atual. Na realidade desconfio de tudo o que não ofenda. Na verdade, não sei te dizer até quando. Só sei o que dizia Beauvoir: o opressor não seria tão forte sem a cumplicidade do oprimido. Se bem que pode haver usos estratégicos desse infantilismo, creio que é bom não acreditar no jogo que se joga para ganhar um lugar. Quando você consegue que sua interpelação capacitista lhe dê uma única existência, cagou. O devir “menina” não tem nada a ver com ser uma eterna menininha por ser def. Como o coletivo def se encarregou de desenvolver ad nauseam nos últimos tempos todas as corpas que assim desejem devem ter acesso ao mundo dos prazeres corporais, um dos quais fundamentalmente é o exercício da sexualidade. Não tenho soluções nem respostas, mas me dou conta que as pessoas Down, fala dizer alguém, merecem trepar quando assim desejarem, como qualquer outra pessoa. Especialmente as neurodivergentes que ficaram para trás por ser sempre consideradas eternas querubinas assexuadas. Não tenho ideia de como, mas sei que é necessário. Talvez tivéssemos que perguntar a elas para ver o que têm a nos dizer. Mas cada vez que alguém tenta abordar esses temas, assim como a sexualidade infantil, aparece o anjo protetor da infância, essa invenção do capitalismo industrial ao lado da família nuclear, para nos calar com seu futurismo reprodutivo e já não se pode dialogar.
Volto a reler algumas páginas de Games of Crohn para debruçar-me sobre o termo “paciente”. Tenho arrepios quando este termo é explorado a tal ponto, que parece que o comportamento que se espera do corpo que experimenta algum tipo de enfermidade é algo que poderíamos definir como a máxima submissão antes de ser agredido fisicamente. Qual sua opinião sobre toda essa violência intrínseca invisibilizada e que aos olhos do não def pode parecer um delírio? Você poderia nos falar desta expropriação do corpo?
O dispositivo médico produz o corpo paciente, o objetifica, até a posição para examinar é ideal para a prática de auscultar e apalpar, mas não para o corpo que é tratado como paciente, do grego pathos, sofrer, que por sua vez deriva de patheuomai, ser penetrado analmente, ser infantilizado. Devemos fazer nossas entradas hospitalares com técnicas para repelir essas investidas que nos produzem como pacientes, isto é, acatadoras acríticas do poder médico. E se não podemos sós, coisa que perfeitamente pode acontecer, devemos preparar outras para que nos apoiem e acompanhem quando nós mesmas não podemos fazer. Se vamos nos empenhar para fazer alguém entender algo, que seja às amigas que nos levam até a plantonista, para que obriguem – como for – o pessoal médico a nos dar a morfina antes que caiamos desvanecidas no delírio da dor. Para as que estamos obrigadas a passar tempos internadas, temos que recordar que não estamos à disposição de quem pratica. Como a prisão, o hospital também é um espaço de luta, não um paraíso neutro.
Tendo chegado a este ponto de estigmatização do corpo “doente”, talvez tivéssemos que começar a nos preocupar por todos esses corpos que saíram prejudicados do sistema médico, econômico, político e social. Ocorre-me a fantasia, porque vejo isso como uma necessidade, de criar espaços que ajudem esses corpos “doentes”, não para saber gerir sua doença mas para restabelecer sua psique depois do dano e do grau de violência que passaram depois de se relacionar com o corpo saudável. Em seu caso, como você experimentou estas situações de violência? Neste processo de Crohn, o que mais lhe prejudicou: a doença ou a relação com o ser humano e como se relaciona com a doença?
Aonde você quer restabelecê-la? Tenho vontade de lhe dizer que nasci prejudicada. Mas, outra vez, supor o dano é supor que há algo perfeito e a verdade é que não há condições em estado selvagem. Somos operações de diagnóstico. As máquinas só funcionam se quebrando. Para mim o Crohn não é uma doença. Não sinto que me prejudique, ainda que, bom, indubitavelmente tenha alguns efeitos, mas isso significa que meu corpo vive dessa maneira, é a maneira de funcionar que ele tem. Abraço amorosamente meu destino, amor fati. E finalmente, o pior mal é viver no mundo, mas não meu corpo e o que está nele. O sutil equilíbrio entre não me deixar subjetivar vítima e confessar que me foi causado um dano. Não tenho solução mas sei me dar conta que a culpa não é do Crohn, e de fato ele me deu tanto que hoje eu já não poderia renunciar a ele. Ele me deu que estou sendo agora. E isso eu não mudaria.
Uma das singularidades deste livro foi o grau de verdade com que ele funciona, a omissão de filtros para não cair na diplomacia, apostar em um texto cru ainda que ofenda e doa. Parece que somos capazes de absorver índices desproporcionais de violência, imagens onde se derrama carne e sangue, praticar o desafeto com cada gesto opressivo. Mas por outro lado estamos nos tornando intolerantes com a palavra, com a mensagem de whatsapp que não levam emoticon de sorriso porque senão parece que está dando bronca… parece que não se pode dizer nada.
Como li Paco Vidarte, devolver ao mundo merda e peidos, cagar no pau, se vou viver com cólicas porque o mundo está como está, então todas vamos ter gastroenterocolite à noite. Eu me dedico a isso. Sinceramente, não há nada mais restaurador para mim que um bom e querido deboche. E a resposta da oprimida não é o mesmo que o deboche insider, que a violência ou o bullying do opressor. Jamais entregar uma imagem reconciliada ao público leitor. Se a literatura é um espelho onde se contemplar bonita, não faço literatura. Escrevo para incomodar quem está cômodo e para dar conforto a quem se incomoda com essa comodidade.
Se eu tivesse que tirar uma contraleitura de Games of Crohn, me atreveria a dizer a importância e a decepção que carrega a palavra e o significante amizade como fio condutor que move parte desta obra, a deserção como lugar para se cuidar e o saber dar até onde é possível sem que te diminuam. Por tudo isso, eu gostaria de lhe perguntar em que momento vital você se encontra em relação à amizade? Você considera que o Crohn é uma aliada para lhe ajudar nesta ação de fechar e abrir a alma para outros corpos?
No pior momento possível! E celebro isso, fiel a meu estilo, dançando a noite toda com aquilo que veio a mim. Sinceramente, já não me conto historinhas idealizadoras sobre isso. E me encontro mais forte que nunca na solidão, mais à vontade que nunca comigo mesma. Encontro-me aberta às surpresas, mas com cautela, administrando doses baixas mas intensas de sociabilidade, tudo o que pode ser retirado da comunidade terrível e envenenada. A vida passa em um peido, e não fizemos o que gostamos de fazer. Só nos juntamos para socializar. E isso para mim não é vida.
Bárbara G. F. Muriel:
Você acha possível tecer aliança a partir dos feminismos?
É possível e é fundamental voltar a construir um feminismo (ou como o queiramos chamar, que para mim dá na mesma como o chamemos) que saia dos esquemas capacitistas e humanos de se manifestar (muitas de nós não poderemos ir amanhã à passeata porque se tomamos chuva o sistema imunológico nos manda a conta, por exemplo). Continuo acreditando na figura incômoda, incorrigível, híbrida de ciborgue, transpassando com o corpo dimensões estanques e exercendo as políticas do devir. Quanto dos feminismos originais essas incômodas alianças ilegítimas terão, eu ignoro. Pelo momento onde vivo, o feminismo ainda não se deu conta que continuar demandando ao Estado Nazional uma lei de aborto legal no hospital com justificativas do tipo “gravíssimas malformações do feto” é um erro capacitista e uma reafirmação muito perigosa da biopolítica que patologiza processos como parir ou abortar, que nada têm a ver sequer com um quadro clínico: nem o hospital é especialmente melhor para nada que não seja uma doença, como abortar ou parir (de fato é um lugar perigoso, de judicialização e de violência para as mulheres) nem é necessário colocar justificativas eugenistas para reafirmar a autonomia corporal de interromper um processo biológico não desejado. Aqui – e provavelmente em lugar nenhum – o feminismo não se deu conta, nem quer se dar, que a ciência surge a partir do maior massacre feminicida da história deste planeta, que se chamou caça às bruxas, em cujas fogueiras se queimaram as revoltas camponesas e indígenas tanto da Idade Média europeia quanto nas regiões autóctones da chamada América Latina (nem nome próprio temos) e seus conhecimentos ancestrais. Ou que a obstetrícia, especificamente, tem uma genealogia de tortura até o inenarrável de mulheres africanas escravizadas por senhores cientistas brancos sádicos. Estes feminismos vivem sob o jugo do paradigma moderno da ilustração e a única oposição a isso é um bando de autogestionárias da ignorância que ou te responsabilizam por sua condição por você ter vivido de tal ou qual maneira ou querem reduzir o dano produzido por uma ELA com um chá de sei lá o quê. Por isso se canta “aborto legal no hospital”.
Mas voltando ao aborto, o simples desejo deveria bastar para que fosse feito como e onde se quisesse, sem perigo de ir presa. O feminismo deveria lutar para fazer a vida de todas, incluídas as malformações tipo o polegar opositor da macaca Lucy, vivíveis e não construir a ideia de que sob certas pautas, ou certas razões, abortar está bem. Em todo caso, deveríamos nascer só as que vamos ser consideradas “malformadas”, para ver se o capitalismo pode subsistir quando sejamos só nós, as que não podemos trabalhar dentro dele. Só proponho uma distopia tão ridícula como isso de que tem que haver uma justificativa para abortar ou que ter uma cria “malformada” (insisto com a palavra porque ficou na redação do projeto de lei apresentado pelo feminismo na Argentina sem que ninguém dissesse nada nas plenárias) é pior que outra coisa. Tal como vejo, ter prole é sempre uma fatalidade à qual deveríamos todas nos opor. Mas sou muito clássica. Este feminismo caiu em desuso.
Shukare Otero:
Games of Crohn é tanto o nome do seu livro como do documentário que você filmou junto com Mai Stansauger. Que aspectos narrativos, filosóficos, poéticos, etc., o formato audiovisual permitiu desenvolver e quais o formato escrito permitiu? Que relação houve entre ambos?
Não muita, para lhe ser honesta. Exceto que a capa do livro e o documentário estiveram a cargo de minha amiga Mai Stansauger. Mas não foi muito pensado. Não sei se há relação além estar unidos pela narrativa sobre uma condição e por suas fazedoras. O documentário, apesar de dialogar como viver com Crohn depois de estar internada, saiu antes. Ao contrário, o livro, que ia sendo escrito em tempo real, saiu depois.
A escrita é uma ferramenta para o processo de ressignificação e empoderamento, para extrair potências daquilo que poderia nos entristecer?
Para mim é, não sei se pode ser universalizável nem para todo mundo. Para mim, escrever é uma maneira de sobreviver, sempre foi. Escrever o gênero que for. Por isso é paradoxal, porque se minha potência de agir tivesse ficado completamente obturada não teria poderia tê-lo feito. Cada corpa deve encontrar sua máquina de guerra contra as paixões tristes.
O texto vai indo e vindo de uma linguagem mais íntima, mais informal, a mais poética, a mais filosófica. O que te leva a se mover entre estas linguagens a cada momento?
Suponho que sou assim… Em minha vida em geral também. Por um lado, adoro a linguagem coloquial que utilizo em minha cotidianidade, inclusive para falar de filosofia, mas, ao mesmo tempo, me interessa abordá-la a partir de seu jargão específico sem me perder da palavra poética que no final creio que é a que desautomatiza a percepção. Por isso os três registros, mas não é uma questão que busco, mas que me sai assim.
O que supõe fazer filosofia a partir dos acontecimentos íntimos, da própria experiência?
Parece-me que não há outra maneira de fazê-la, pelo menos para mim não interessa. Existe essa velha frase de Nietzsche que tanto amo, “de tudo o que se escreve, só me interessa aquilo que se escreve com o próprio sangue. Escreva com sangue e saberá que o sangue é espírito”. Por outro lado, me calhou ser uma pessoa que eu gosto de ser, me acho interessante e acho interessante o que me acontece. Portanto, não poderia ter escrito de outra forma. Nem consigo entender bem a diferença, certamente muito universitária e fora de moda, entre a experiência, o corpo, a filosofia e a ficção literária, como se uma coisa não estivesse imersa ou entrelaçada (ou grudada) com a outra.
Boa parte de sua terminologia vem de textos filosóficos. Você acredita a sua leitura é difícil para quem não costuma ler filosofia? É necessário ler Platão para entender por que você o acusa de todos os males, por exemplo?
Nunca é necessário ler Platão. Espinosa, Nietzsche, Foucault, Wittig ou Buttler, sim. Se são difíceis, e não me consta que sejam mais que outras coisas, então vai demorar mais tempo e terão que ser lidos mais vezes. Deve-se labutar, perseverar. Eventualmente se entendem, ainda que demore. As coisas levam um tempo. Ler e entender filosofia, vivê-la, torná-la carne, poder transmiti-la depois ou dialogar na filosofia sobre a filosofia também. Se é difícil ler-me, não é por causa da terminologia, mas porque me esforço para afetar inclusive virulentamente quem me lê, e muita gente não quer isso porque não entrego uma imagem reconciliadora sobre a vida. Creio que uma filosofia como Espinosa pode estar ao alcance de quem seja. É a alta cultura, à qual é dever se opor até que seja destruída, quem dita que coisas certas pessoas podem, sim, entender, e que coisas não. É uma mentira. Se leva tempo, pois demorará mais, como tantas outras coisas…
No livro você fala de políticas antirressentimento diante das pessoas que não podem se afetar como o corpo doente, que não sabem cuidar… É mais difícil gerir o ressentimento contra quem não cuida de nós quando necessitamos mais desses cuidados?
O ressentimento é sempre difícil de gerir. Como não viver para a vingança – o que me parece uma perda absoluta de vida – sem reterritorializar um cristãozão que oferece a outra face? Não faço ideia. Creio que quem não sabe cuidar, que não sabe se afetar com um corpo assim chamado doente o que requer cuidados se perde de muita coisa, e não sabe se reconhecer nessa mesma situação, que mais cedo ou mais tarde chegará. Sei que as pessoas que estiveram próximas quando estive internada saíram mais que enriquecidas da experiência. O dilema, já não filosófico mas feminista, é por que no interior do lar da família nuclear essa tarefa recai sobre as pessoas designadas à feminilidade e por amor. Mas esse não é um problema da condição, mas do sistema capitalista que criou a família nuclear, da heterossexualidade como regime político e do capitalismo, e que submeteu as mulheres na Baixa Idade Média a ser as provedoras de alimento para as infâncias expropriadas de suas potências, incapazes ambas de produzir sua própria economia, ambas as partes recluídas no interior do lar, sem laços com a comunidade.
No livro você fala da exigência social de ser jovem até bem entrados os 40. Neste contexto, é a deficiência, o não poder ser como se supõe que deve ser a jovem, uma oportunidade para explorar ritmos de vida mais pausados, uma via para fugir das lógicas do urgente?
É um devir anciã que eu gosto muito. Essa é uma de suas potências, e a velhice, apesar do que acreditam as pessoas subjetivadas nas bondades da inovação, do novo e do jovem, tem potências maravilhosas a se invocar. Uma delas é poder dizer o que dá vontade, sem vergonha nem medo; a outra é que te deixam em paz, literalmente, já que não te solicitam socialmente. E isso dá tempo para criar e viver. Permite não responder a demanda constante da ansiedade neurótica do habitante médio da metrópole imperial.
Até que ponto existe o perigo de contribuir para a romantização das corporalidades deficientes por serem não-normativas, como ocorre com certas identidades, sem que isso suponha uma afetação real para quem observa de fora (tanto o pornô inspiracional quanto mascotes dos movimentos “progressistas”)?
Vamos ter que correr esse risco, que está sempre presente e é feroz. Cansam-me essas atividades para defs sem defs ou onde as vozes de comando são vozes que vivem de, mas não são. Fazer falar o subalterno, ser uma amplificação, quando puder. Há muito proxenetismo encoberto, isto é, gente que vive do corpo de outra def. Talvez seja uma romantização, não sei, mas creio no potencial crítico daquelas corpas definidas como anormais mas que usaram esse limite restritivo para um fenômeno singular de borda, de desterritorialização. Deficiência não é uma identidade, é o nome de uma invocação afetativa, é uma forma de vida com outras de maneira crítica contra o regime da normalidade.
Em um mundo imerso em políticas de visibilidade, de ocupação da rua ou ocupação das instituições, que formas de visibilização ou que políticas que não dependam das lógicas de visibilização desenvolvem os corpos para os quais mover-se, falar, sair à rua, é problemático e frequentemente impossível?
Creio que ninguém tenha desenvolvido isso melhor que Johanna Hedva em sua Teoria da Mulher Doente, não só como formas do político para quem, por diferentes motivos, não podemos habitar o espaço público da política (por medo, deficiência, tempo). Também creio que em uma sociedade do espetáculo como a nossa, boa parte das vezes a manifestação, especialmente a pacífica, supõe um entretenimento. Não tenho nada contra se divertir, mas saibamos disso: nossa participação política dentro das formas da política clássica foi se reduzindo à seleção de bens de consumo ou a formas do ócio recreativo mais trivial. Creio que nossos corpos são em si mesmos uma forma de protesto contra o regime de normalidade que se nega a ficar mais complexo ou a se arriscar.
Ultimamente, por ser uma questão que está me tocando muito de perto, ando me perguntando se não nos prejudicam mais as pessoas que acreditam se afetar e na realidade fazem/exibem caridade com nossos corpos que aquelas que diretamente desaparecem ou tentam não se envolver. Essa Boa Consciência que se autoafirma sobre nós sem nós e nos subjetiva “pacientes” sempre agradecidas por suas migalhas. Às vezes que nos causa mais danos são as pessoas que creem estar ajudando, e sinto que aquilo que você escrevia em seu blogue sobre a “pedagogia do opressor” é também muito adequado para as pessoas que ao acreditar que toda atenção sua deve ser agradecida, esperam que o corpo paciente seja sempre dócil, suave e educado na hora de lhes dizer o que fazem mal. Como você lida com isso? A ideia de autonomia que a maioria – ou uma grande parte – do movimento feminista utiliza é concebida como não necessitar nem depender de outras pessoas, o que vem a reforçar uma visão muito capacitista do empoderamento. É possível ressignificar o conceito de autonomia como, por exemplo, a possibilidade de determinar ou escolher o que mais convém ao próprio corpo?
Eu não lido com isso, para ser honesta. Sou muito pouco hábil com o que chamamos de “relações”. Vivo muito retirada. Também não frequento muito esse grupo doutrinário que chamamos “movimento feminista”, porque seja isso o que for, se dedica majoritariamente à política como espaço público, mas não ao político que é o espaço do tecido de redes, quando não se dedica pura e simplesmente a policiar e a competir. Prefiro optar por estar fora, dizer que não e não participar mais que de canto. O que escolhi fazer com a vida, se faz melhor sem tanto tumulto. O Crohn me fez devir anciã precocemente e me parece que está muito bem. Retiro-me do mundo, vou um pouquinho à morte onde posso pensar sem tanto barulho e sociabilidade envenenada. Por outro lado, estou completamente de acordo com a sua leitura de autonomia. De fato, não só não sou autônoma como não creio que seja desejável o ser. Sinto-me interconectada a muitas existentes, não só pessoas, que dotam minha existência de sentido e me dão vida e me parece formidável existir em rede. Efetivamente, creio que você tem uma grande definição de autonomia como aquilo com que meu corpo combina e incrementa minhas potências. Uma ideia espinosiana da potência como experiência compartilhada.
Finalmente, eu tinha a curiosidade sobre a recepção que o livro teve desde que foi publicado. Games of Crohn começou como um diário-terapia para sobreviver à clínica e ao aparato médico e agora é um livro que circula internacionalmente. Que encontros ele gerou, que respostas teve, o que se produziu ao redor da divulgação deste livro?
O livro continua sendo uma maneira de viver para mim. Mas, sobretudo, uma maneira de tocar os ovários de mais de uma feminista convencional e ortodoxa e suas boas maneiras, seja dentro do queer ou do essencialismo. Mutantes y Orgullosas, nome de nossa nova produção audiovisual. A revolução, como já disse, é das frágeis – isto é, das poderosas – ou não é.
Eva Vica:
No capítulo intitulado “Feministas enemigas de putas y enanos” (“Feministas inimigas de putas e anões”) você faz referência às feministas que se escandalizam por haver pessoas que fazem sexo com aleijades em troca de dinheiro. Qual sua opinião sobre a existência de formas de trabalho sexual especializadas nesta área como, por exemplo, xs assistentes sexuais?
Acho que a assistência sexual é uma especialização dentro do trabalho sexual, como as dominadoras, ou as “passivonas”, ou as “girlfriend experience”. Estou total e completamente a favor do trabalho sexual, em qualquer de suas variantes. Se bem que eu gostaria de viver em um mundo onde ninguém tivesse que pagar por nada, me parece que as mulheres – lato sensu – termos que continuar oferecendo certas tarefas de cuidado, atenção, limpeza, procriação, suporte afetivo e sentimental e amizade por nada mais que “amor” é um dos maiores erros políticos do feminismo da igualdade, junto da luta para que as mulheres consigamos nos equiparar à masculinidade hegemônica que produz militares e policiais. Cada vez que uma de nós se torna parte das forças repressivas de segurança, o feminismo morre um pouco. Só uma pessoa delirante, demente e desequilibrada pelo capitalismo pode achar que a igualdade é ser militar e não puta. Oxalá o abolicionismo pusesse toda a força que coloca em tentar proibir que as trabalhadoras sexuais façam/façamos o que queremos com nossas corpas em subtrair as subjetividades das solidariedades microfascistas. Por outro lado, supor que não deveria existir o sexo pago para clientes defs é um dos conceitos mais capacitistas jamais criados: como se trepar com defs por dinheiro fosse ainda pior que trepar com supostos não-defs por dinheiro ou gratis, como se a questão da deficiência, mais que um kink ou uma especialização, fosse uma tragédia que ninguém, a menos que seja muito, muito pobre, faria. Lamentavelmente, quando se fala da função social dos serviços sexuais e se usa o exemplo dos benefícios prestados ao coletivo def sempre surge o capacitismo que crê que não há dinheiro que pague a asquerosidade de trepar com uma pessoa def. Se soubessem. Se soubessem as vantagens, talvez se voltassem à especialização def para prestar serviços para o coletivo de deficiência ou arrumariam amantes defs. Esta postura me faz lembrar das pró-saco gestacional antiaborto, que falam de bebê para se referir a embriões, mas depois pedem mão dura, pena de morte e redução da maioridade penal uma vez que o “bebê” não foi abortado. Eu prefiro pensar nisso como uma aliança política e um agenciamento empoderante onde vários mundos geram um mecanismo para sobreviver e se apoiar mutuamente. Valorizo isso infinitamente.
Por que você acha que o trabalho sexual exercido de forma livre e autônoma é algo que, em geral, incomoda tanto?
Por motivos similares aos que torna incômoda uma pessoa que convive com uma condição incurável, permanente, degenerativa, dolorosa, dolorosa e, no entanto, vive bem: somos a demonstração empírica de que a vida normal não está tão boa e não é desejável; somos aquelas que em boa medida o sistema não pôde cooptar com seus discursos de vitimismo, patetismo, autopiedade, miséria e tristeza que sustenta o setor que acredita em sua normalidade como o reino deste mundo. Pois não, ser normal e sã não é a grande coisa. Não só dizemos isso, como também demonstramos empiricamente.
Shukare:
Com as perguntas sobre a especialização em diversidade funcional dentro do trabalho sexual me vinha à cabeça a ideia de que há corpas defs não só consumindo como fornecendo serviços sexuais. Há possibilidade das pessoas com deficiência trabalharem na indústria do sexo?
Claro que há! Muitas pessoas cujas corporalidades são lidas dentro do paradigma da deficiência são atores e atrizes pornôs e também são fornecedoras de serviços. Há muito kink dentro do pornô, seja industrial ou não, e do trabalho sexual. Acho muito acertado que você tenha trazido isso à discussão. Games of Crohn – Diario de una Internación está dedicado às pessoas coprófagas, por exemplo, porque com elas as diarreicas e ostomizadas compartilhamos o paraíso perverso e escatológico.
GynePunk, as bruxas ciborgues da ginecologia DIY
Ewen Chardronnet no MAKERY/media for labs em 30 de junho de 2015
O coletivo catalão GynePunk quer descolonizar o corpo feminino. Com este objetivo, está desenvolvendo instrumentos de primeiros socorros ginecológicos, para mulheres socialmente desfavorecidas, refugiadas, trabalhadoras sexuais. Mas também para elas mesmas.
Localizada nas colinas a oeste de Barcelona, a comunidade de Calafou onde o coletivo GynePunk surgiu se autodefine como uma “colônia ecoindustrial pós-capitalista”. Seu ambiente não tem nada de idílico – o rio está contaminado, a velha usina hidrelétrica gera campos elétricos que afetam a vida diária. No entanto, algumas pessoas se cotizaram para comprar estes 28.000 metros quadrados e criar 27 apartamentos. A vida em Calafou é uma cooperativa, com diversos espaços comuns, um estúdio de marcenaria, uma fundição e um hackerspace ocupado pelo biolaboratório Pechblenda.
Dildomancia
Pechblenda é parte da rede internacional de biologia DIY de código aberto Hackteria. Segundo Paula Pin, a quem encontramos em Nantes durante sua residência 0.camp no fablab de Ping e da Plateforme C: “Decidimos nos instalar em Calafou em 2013, porque acreditávamos que tínhamos que viver juntas em cooperativa para colocar nossas ideias em prática. Trabalhar com fluidos em geral era nosso objetivo principal, da análise da água do rio à análise de nossos fluidos corporais. Uma vez instaladas em Calafou, iniciamos um grupo de sexologia espontâneo”. Ainda que as mulheres já estivessem trabalhando com temas relacionados ao chauvinismo masculino, as “anarcofeministas e transhackfeministas” não se concentravam “o suficiente” no corpo.
“Como podemos dar uma forma mais orgânica aos brinquedos sexuais, que sejam mais educativos?” continua Paula. “Também queríamos seguir as ideias de Annie Sprinkle e Beth Stephens, que com seu movimento ecossexual defendem a desgenitalização da sexualidade”. Seu movimento também é parte do movimento pós-pornografia, que é muito forte na Espanha e promove uma visão diferente da sexualidade e da pornografia mainstream, que atualmente enfatiza exclusivamente relações sexuais genitais.
“Também demos oficinas sobre ‘dildomancia’, demonstrando como fazer lubrificantes naturais e tratar problemas vaginais com plantas. Klau Kinky, que começou a documentar este trabalho, veio então com o conceito de GynePunk”.
Anarcha, Betsey, Lucy y outras chicas del montón
Klau Kinky estava explorando a questão da descolonização do corpo feminino. Enquanto pesquisava a sexologia, ela se deparou com os nomes dos ginecologistas americanos do século XIX J. Marionn Sims e Alexander Skene. O primeiro inventou o espéculo, e o último deu seu nome às glândulas de skene, análogas à próstata masculina e associada à ejaculação feminina.
Esses pais da ginecologia moderna praticaram suas pesquisas ginecológicas em escravas das plantations, sem anestesia. De 1844 a 1849, Sims fez experimentos em três escravas no Alabama – Anarcha, Betsey e Lucy – que sofriam de fístulas. Anarcha foi operada 30 vezes sem anestesia. Foi só depois do sucesso destas cirurgias que ele começou a operar mulheres brancas, desta vez com anestesia. Essas experiências, consideradas um passo em direção à cirurgia vaginal moderna, permitiram a Sims projetar instrumentos médicos, inclusive o espéculo.
Klau, então, decidiu dedicar seu projeto a “Anarcha, Betsey, Lucy y outras chicas del montón”, em referência a um dos primeiros filmes de Pedro Almodóvar, Pepi, Luci, Bom y outras chicas del montón (1980). Ela também rebatizou a glândula de skene e as glândulas de Bartholin como glândula de Anarcha e glândulas de Lucy e Betsey, em homenagem às escravas que foram vítimas das experiências de Sims.
↑ Centrífuga GynePunk para análise de fluidos corporais
O kit ginecológico de emergência
Mas Klau e o GynePunk não pararam por aí. Para uma oficina no Hangar em Barcelona, elas desenvolveram uma caixa biolaboratório de emergência. O objetivo era reunir ferramentas de biohacking DIY para analisar fluidos corporais: sangue, urina, fluidos vaginais. Ajudado pela rede Hackteria, o GynePunk desenvolveu três ferramentas: uma centrífuga, um microscópio e uma estufa. A centrífuga separa os sólidos dos líquidos, e decanta o conteúdo para exame no microscópio. O microscópio, uma ferramenta útil para a citologia (o estudo da morfologia da célula) e a histologia (morfologia dos tecidos), é usado para identificar infecção urinária e outras infecções genitais por fungos. E, finalmente, a estufa desenvolve as bactérias em uma placa de petri, nutrindo-as para revelar sua presença.
O objetivo do GynePunk é desenvolver um kit de ferramentas para medicina ginecológica de emergência, algo como a redução de riscos para usuários de drogas. O kit pode ser útil para imigrantes sem cobertura de saúde, para campos de refugiados, mas também para trabalhadoras sexuais, organizadas ou não.
Mas o kit também é útil para as próprias integrantes do GynePunk. Em Calafou há um grupo de saúde que busca alternativas que ajudam a evitar consultas médicas para quem não tem dinheiro ou assistência médica apropriada. É também uma militância pela medicina alternativa, conhecimento ancestral, medicina chinesa, bruxaria e receitas da vovó… “Somos bruxas ciborgues!” diz Paula. “Nós queremos atualizar o conhecimento ancestral com o uso independente da tecnologia”.
↑ Microscópio DIY em homenagem a Mary Ward, uma especialista em microscópios do séc.XIX
Espéculo 3D
O Gynepunk também inspira a rede Hackteria com sua vontade de democratizar e “libertar” os instrumentos e protocolos usados na obstetrícia e na ginecologia para permitir diagnósticos de baixo custo. Urs Gaudenz, membro da Hackteria e do Gaudi Labs da Suíça, desenvolveu recentemente um espéculo para impressoras 3D (disponível no Thingiverse) e desenvolve ferramentas genéricas usando elementos reapropriados de produtos de consumo amplamente disponíveis (motor de DVD player, discos rígidos, ventoinhas de computadores) ou projetos abertos para fabricação digital. Outros projetos e protótipos exploram o campo performativo corporal pós-pornô, como os dispositivos de código aberto para microfluidos “OpenDrop” e sensores de osciladores de cristal, como o “Wild OpenQCM”, que combina dois cristais de quartzo com um circuito de theremin para transformar o bio-sensor openQCM em um instrumento de BodyNoise para performance de som.
↑ O espéculo para impressoras 3D do Gaudi Labs
Hormônios
O Menino Cobaia anda feliz da vida com seu projeto de estação doméstica de tratamento de água. Diz que a água que sai da máquina de lavar roupa, depois de passar pelo tratamento que desenvolveu, foi classificada como água de reuso. Perguntamos se não vai dar pra beber essa água. O Menino Cobaia respondeu:
No projeto finalizado eu não potabilizei. Mas é possível fazer “água de beber” sim. Os parâmetros químico-biológicos do padrão de potabilidade brasileiro são ridículos e é fácil produzir uma água para consumo humano. Você bebe água com paracetamol, rivotril, hormônios femininos e masculinos, e a Sabesp trata como água potável.
Opa! Hormônios? Então quer dizer que poderíamos fazer nossa transição só tomando a água da Sabesp?
O menino cobaia não respondeu essa nossa questão, mas como o mundo virtual é espaço de insondáveis sincronicidades, naquela mesma noite nos deparamos com a entrevista que segue, publicada originalmente no site de uma revista muito interessante chamada Planeta Laboratório. Aí ficamos um pouco por dentro dessa impressionante história dos hormônios na água de beber.
Xenoestrógenos: uma verdade oculta
Aliens in Green entrevista Chus Martínez no Planeta Laboratório nº 5
Recentemente tive a sorte de sentar para conversar com a Drª Chus Martínez sobre um assunto controvertido e repleto de mitos, os xenoestrógenos (substâncias químicas sintéticas que atuam de forma similar aos estrógenos).
Para quem não está familiarizado com Chus Martínez, farei uma pequena introdução sobre sua vida. Chus Martínez licenciou-se em antropologia e psicologia pela Universidade do País Basco/ Euskal Herriko Unibertsitatea. Em seguida, e depois de sua mudança de sexo (M2F), doutorou-se na especialidade de antropologia médica e nutrição paleolítica nos Estados Unidos, na Universidade de Baltimore; um assunto que pesquisou bastante, escreveu e deu conferências de forma extensa.
Aliens in Green: Vamos começar pelo principal para as pessoas que não estão familiarizadas com o tema. O que são exatamente os xenoestrógenos?
CM: Os xenoestrógenos são substâncias químicas sintéticas que podem entrar em nosso corpo e simular os efeitos do hormônio feminino estrogênio. Os estrógenos naturais atuam com uma molécula maior chamada receptor e, uma vez feito isso, a atividade biológica associada a esse hormônio é ativada. Basicamente, liga-se o interruptor. Os xenoestrógenos se encaixam nos mesmos receptores que os estrógenos e realizam a mesma função que o hormônio natural. Mas, além disso, também podem converter-se em outros receptores – às vezes sinergicamente – fazendo que o efeito do estrógeno ou exoestrógeno seja mais profundo.
AIG: Os xenoestrógenos estão relacionados com os fitoestrógenos de alguma maneira?
CM: Não, podem atuar de forma similar mas os fitoestrógenos são produzidos de forma natural nos alimentos vegetais e os xenoestrógenos são artificiais. Em minha opinião, não há por que preocupar-se com os fitoestrógenos, a menos que você os esteja consumindo de forma muito isolada e abundante. Não creio que apresentem os mesmos riscos para a saúde que os xenoestrógenos. A verdadeira ameaça são os xenoestrógenos. Provavelmente, a diferença mais importante entre os dois é que os xenoestrógenos se acumulam no tecido adiposo de seres humanos e animais, enquanto que os fitoestrógenos se metabolizam e passam relativamente pouco tempo no corpo.
AIG: Qual é a origem dos xenoestrógenos? Como e quando os seres humanos os criaram? Por serem produtos químicos, suponho que alguém teve que sintetizá-los.
CM: Sim, vem de muito tempo atrás. Cientistas britânicos sintetizaram o primeiro xenoestrógeno em 1938. Era conhecido como dietilbestrol, ou DES, para abreviar. Vou mencionar muitas siglas, então peço desculpas se as leitoras e leitores se confundirem. O DES foi considerado uma droga estupenda e ato contínuo foi testado em mulheres que tinham problemas durante a gravidez, acreditando-se que seus níveis de estrógenos eram insuficientes. Produziram abortos e partos prematuros.
É certo que baixos níveis de estrógenos podem causar abortos involuntários durante os três prieiros meses de gravidez, mas agindo assim pecaram por ingenuidade, bobardeando mulheres com altos níveis de hormônios sintéticos sem considerar os efeitos secundários. Foi prescrito em todas as gravidezes, como se fosse uma vitamina ou uma pílula milagrosa que poderia melhorar sua natureza. Mais de cinco milhões de mulheres nos Estados Unidos, Europa e América Latina receberam tratamento com DES.
Casualmente, nesse mesmo ano (1938), na Suíça, um pesquisador descobriu o diclorodifenil tricloroetano (DDT) e se deu conta que funcionava muito bem como inseticida. O DDT é também um xenoestrógeno e foi amplamente usado na agricultura e em programas de saúde pública. Não era mau em si, já que salvou milhões de vidas de pessoas quando demonstrou ser o agente mais eficaz que se conhece para aniquilar as doenças transmitidas por insetos, como a malária.
AIG: Você estava falando da criação do DDT como xenoestrógeno e como foi utilizado como inseticida. O que aconteceu?
CM: Bom, em meados do século XX as pessoas começaram a notar os efeitos negativos desses xenoestrógenos. Por exemplo, em 1947 um ornitólogo no golfo da Flórida, Charles Broley, começou a testemunhar coisas estranhas na população de águias. Obeservou que o número de filhotes começou a diminuir de forma pronunciada e as águias adultas começaram a agir de um modo peculiar. Especificamente, os machos simplesmente não tinham interesse em procriar.
Descobriu-se em anos posteriores que 80% das águias de cabeça branca da Flórida eram estéreis. Os pesquisadores descobriram mais tarde que o problema era o DDE, um subproduto estrogênico do DDT.
As notícias sobre os efeitos estrogênicos nestes inseticidas continuaram aparecendo e em 1980 a Chemical Company Tower de Orlando teve um acidente ao pulverizar uma grande quantidade de DDE em um córrego próximo. O córrego desembocava no lago Apopka. Pouco depois uma equipe científica foi chamada para pesquisar a diminuição da população de crocodilos. Encontraram muito mais do que o esperado. Um pesquisador descreveu que estavam presenciando uma reversão sexual. Descobriu-se que pelo menos 25% de todos os crocodilos machos tinham um pênis deformado, a maioria de tamanho reduzido.
Vinte e cinco anos mais tarde, 75% dos ovos encontrados no lago estavam mortos ou eram inférteis. Esta é uma evidência bastante convincente de que há um forte componente estrogênico associado a este inseticida. Os machos que sobreviveram foram desmasculinizados. Basicamente, seu sistema endócrino começou a produzir estrogênio em lugar de testosterona. Para piorar as coisas ainda mais, os crocodilos não foram os únicos animais afetados. Os pesquisadores descobriram que 20% de todos os animais do lago Apopka tinha algum tipo de condição intersexual.
É bastante aterrador, porque tudo o que vemos na vida silvestre tem uma implicação nos humanos. Estes produtos químicos podem permanecer durante anos e anos no ambiente, alguns têm uma vida média de 25 a 100 anos. Assim que, inclusive se reduzimos o uso destes inseticidas nos últimos anos, seus resíduos ainda estão no entorno.
Em 1992, uma equipe de epecialistas em reprodução da Universidade de Copenhague surpreendeu o mundo com o anúncio, publicado no British Medical Journal, de que o número de espermatozóides havia diminuído em 50% nos países industrializados desde 1938. Foi uma grande notícia já que as pessoas começaram a se preocupar com os xenoestrógenos como causa potencial.
É algo com o que se preocupar. Chegou-se à conclusão, sem sombra de dúvida, de que a causa disso é o DDT? Não, mas é algo a se levar em conta.
AIG: Parece que há uma quantidade significativa de dados ambientais sobre os efeitos dos xenoestrógenos em animais, mas existem dados de laboratório sobre os efeitos dos xenoestrógenos sobre animais ou mesmo seres humanos?
CM: As experiências com animais são abundantes mas, por razões éticas, os cientistas não podem fazer experiências com seres humanos como com os ratos. Há, no entanto, vários estudos que mostram uma correlação entre os xenoestrógenos e diversos problemas de saúde.
Há muitas pesquisas que mostram os efeitos negativos dos xenoestrógenos em animais. Por exemplo, em camundongos. Realizou-se um estudo em que se administrava DES a camundongas grávidas durante apenas 2 dias, produzindo várias mudanças importantes na descendência masculina. Os camundongos recém-nascidos eram hermafroditas.
Havia uma feminização dos machos que era produzida precocemente na vida fetal quando se expunha o sistema reprodutor masculino e feminino a xenoestrógenos. A nível molecular, os machos produziam proteínas femininas em seu trato reprodutivo durante toda sua vida. Além disso, os camundongos mais velhos desenvolveram uma doença prostática. Estes foram alguns dos primeiros resultados extensíveis às pessoas, pelo fato de que são alteradores endócrinos definidos.
E a transferência para ser humano? Uma vez mais, não há estudos causais. As pessoas não se oferecem de forma voluntária para que lhe administrem estrógenos, ainda que depois doem seu corpo à ciência para que dissequem seus ovários ou testículo, ou algo assim.
Houve um montão de estudos evidenciando uma correlação entre produtos químicos no meio ambiente e os efeitos que têm sobre as pessoas de baixo nível econômico que estão expostas a eles. O mais antigo que eu recordo é o que mostra mulheres da Guatemala que se encontravam na puberdade aos 3-4 anos de idade. Acredita-se que foi devido à exposição a toneladas de xenoestrógenos.
AIG: Você mencionou uma contagem menor de espermatozóides. Quais são os principais efeitos negativos dos xenoestrógenos nos homens?
CM: O câncer seria o pior dos efeitos. Os homens são particularmente suscetíveis ao câncer quando estão expostos a altas doses de estrógenos; estrógenos de qualquer tipo, incluindo os xenoestrógenos. Ainda que seja menos aterrador, também podem ter efeitos prejudiciais sobre a composição corporal.
AIG: Falando dos altos níveis de estrógenos, dado que as mulheres já têm níveis mais altos de estrógenos, qual o impacto dos xenoestrógenos nas mulheres?
CM: Relacionaram os xenoestrógenos com o câncer de mama. Para as mulheres, como para os homens, o câncer é o pior dos males. A evidência é bastante convincente, sobretudo se nos fixamos nas maiores taxas de câncer de mama nos últimos decênios. A probabilidade de que uma mulher na América do Norte contraia câncer de mama aumentou de uma entre vinte em 1950 à taxa atual de uma entre oito. A cada ano 182.000 mulheres estadunidenses são diagnosticadas com câncer de mama e 46.000 mulheres morrem desta doença.
Basicamente, a exposição a estrógenos é reconhecida pela American Cancer Society como um fator de risco para o câncer de mama. Foram levados a cabo vários estudos. Vou mencionar um deles. Em 1990, um estudo da Escola de Medicina Hadassah da Universidade Hebraica mostrou que, na década entre 1976 e 1986, Israel foi o único entre os 28 países pesquisados no qual se havia verdadeiramente registrado um decréscimo significativo da mortalidade por câncer de mama. O que finalmente explicou esta diminuição da mortalidade por câncer de mama em 1978 foi a proibição israelense de três pesticidas xenoestrogênicos, incluindo o DDT.
AIG: Impressionante. Parece bastante convincente na argumentação contra os xenoestrógenos.
CM: Bastante, mas quero deixar claro que não estou tentando ser alarmista. Os estudos não são conclusivos e minha postura é, basicamente, que há formas práticas para reduzir ao mínimo a exposição aos xenoestrógenos e estou certa de que vamos tocar nelas mais adiante.
AIG: Você mencionou bastante os xenoestrógenos que se encontram nos pesticidas. Mas sei que um dos temas mais candentes seria: xenoestrógenos nos plásticos. Parece que vão em uníssono. Qual seria sua correlação?
CM: Vários estudos demonstraram que os xenoestrógenos podem vazar a partir de policarbonatos de plástico. Há um estudo em particular em que dei uma olhada. Os pesquisadores estavam estudando sobre meios de cultivo com diferentes produtos químicos para ver que tipos de produtos eram estrogênicos. Encontraram um que era incrivelmente estrogênico, mas não teve relação com os produtos químicos acrescentados. Em contrapartida, descobriram sim que o recipiente de plástico onde aqueciam a solução era estrogênico.
AIG: Você falou de crocodilos e águias brancas. Estes animais foram afetados por xenoestrógenos. Estes podem passar para a cadeia alimentar? Se um peixe esteve rodeado por estas toxinas e depois alguém o come, está correndo risco?Estaria ingerindo uma grande quantidade de xenoestrógenos?
CM: Com certeza. Os xenoestrógenos passam para a cadeia alimentar. Dei uma olhada em uma pesquisa onde alguns peixes predadores haviam aumentado seus níveis de xenoestrógenos sob o tecido adiposo ao comer outros que por sua vez estavam armazenando produtos químicos em seu tecido adiposo. Do mesmo modo ocorre nos seres humanos.
Os xenoestrógenos têm uma vida média longa, permanecem no meio ambiente e se armazenam no tecido adiposo. Isto é muito desalentador porque é assim que os produtos químicos passam através da cadeia alimentar.
AIG: Então os plásticos são questionáveis, os pesticidas ruins e agora os xenoestrógenos passam pela cadeia alimentar. Parece que não há forma de livrar-se dos xenoestrógenos por completo. Então qual seria a forma de minimizar a exposição a eles?
CM: Dentro do possível, tentar manter-se longe dos plásticos moles, especiallmente o cloruro de polivinil (PVC), deixá-lo fora de sua casa, sobretudo se há crianças. A questão principal para muitos destes estudos sobre os efeitos dos xenoestrógenos nos seres humanos é que os bebês, meninas e meninos pequenos e especialmente os fetos no útero são particularmente suscetíveis aos efeitos de xenoestrógenos. Você pode arruinar uma criança ao expô-la a altos níveis de xenoestrógenos. Se você tem crianças, use garrafas de vidro sempre que for possível.
Outro conselho seria reduzir ou eliminar os perfumes e ambientadores. Alguns destes produtos têm compostos chamados parabenos, que são xenoestrógenos. Se você adora os ambientadores ou as colônias, certifique-se de que não contenham parabenos.
Meu outro conselho é que se for às compras adquira todo o orgânico que puder. Também é verdade que não é sempre que aplico isso. Sei que comer alimentos orgânicos não é nada barato e sei o que é ser estudante universitária e ter pouco dinheiro. Mas através do consumo de alimentos ecológicos vamos reduzir a exposição à contaminação por pesticidas.Se compra em um mercado, deve lavar bem as frutas e verduras. Compre uma escova suave para esfregar as frutas e verduras antes de cozinhá-las ou comê-las.
Quero insistir que, apesar de existir a possibilidade de consumir pesticidas através do consumo de frutas e verduras, você não deve diminuir seu consumo. São um muro de defesa contra os xenoestrógenos.
Diferentes variedades de frutas e verduras contêm cálcio D-Glucarato. É um extrato botânico que podemos encontrar em altos níveis na toranja, na maçã, no brócolis e nas couves de Bruxelas. Este extrato permite que o corpo possa excretar hormônios estrogênicos antes de possam ser reabsorvidos.
Se bem que já mencionamos as frutas e as verduras, devemos aumentar a ingestão de frutas e bagas, especialmente as que têm altos níveis de antioxidantes. Em particular, assegure-se de comer uvas negras com regularidade.
As uvas negras são a melhor fonte natural de resveratrol, um composto que foi recentemente objeto de numerosos estudos devido suas propriedades antioxidantes e seu potencial para prevenir a doença de Alzheimer. As uvas vermelhas também são uma boa fonte de resveratrol e o consumo moderado de vinho tinto também poderia ajudar. O resveratrol também tem propriedades antiestrogênicas que ajudam a bloquear os xenoestrógenos quando tentam aderir aos receptores de nosso corpo.
Mas nem tudo o que reluz é ouro. Devemos evitar as verduras em conserva. Vários estudos demonstraram que foram detectadas quantidades significativas de BPA em verduras enlatadas e no líquido que se encontra nestas. Trata-se basicamente de uma contaminação que se infiltra da camada de plástico até o interior da lata.
AIG: Isto não deve ser bom para o Popeye, comer todas aquelas latas de espinafre.
CM: Sim, efetivamente. Deve ter tido alguns inibidores da aromatase ou algo assim.
Documentando sem incriminar 2
Ainda sobre os cuidados na documentação de eventos de rua, lembramos que convém também zelar pela proteção da própria foto/videógrafa. Recomendamos a leitura deste texto do site Autonomia Feminista Tecnológica a respeito dos metadados contidos em fotos, vídeos & etc e como deletá-los com o ExifTool e o MAT (Metadata Anonymisation Toolkit).
Em tempo: para as usuárias do Ubuntu, informamos que não só o MAT, mas também o Exiftool se encontra nos repositórios da distro. É só abrir o terminal e pedir:
$ sudo apt-get install libimage-exiftool-perl
Documentando sem incriminar
Depois que elaborei esta série de tweets, uma amiga me pediu para fazer um post no blogue sobre como documentar uma manifestação sem incriminar quem dela participa.
É de conhecimento geral que fotos e vídeos de rostos podem ser usados por agentes do Estado para identificar e, desta forma, envolver indivíduos em investigações criminais. Para impedir esse processo de identificação, muitas manifestantes optam por usar máscaras e muitas fotógrafas e videógrafas tomam cuidado para não incluir rostos em seus registros. Embora este seja um bom começo, não é suficiente para impedir que as forças da ordem usem suas fotos e vídeos para identificar, e assim perseguir, manifestantes.
Os identificadores biométricos, que são características/traços únicos que podem ser usados para distinguir (e assim identificar) indivíduos, vão muito além dos rostos expostos. Algumas outras características pelas quais as pessoas podem ser identificadas incluem sua constituição física, o formato de seus olhos e/ou orelhas, o tamanho de suas mãos e/ou pés, sua postura, seu caminhar, sua voz e seus padrões de fala. Identificadores adicionais podem incluir o traje da pessoa (roupas, sapatos, bolsas, etc), piercings, tatuagens visíveis e cicatrizes.
O complicado é que, ainda que você não capture rosto algum, a sua câmera nunca é a única presente no local. Se você capturar uma característica identificável de qualquer tipo em uma imagem ou vídeo de vidraças sendo quebradas ou de paredes sendo pichadas, ela pode ser cruzada com outras imagens da multidão e usada para marcar e identificar suspeitos.
Uma mão tatuada quebrando uma vidraça, ou um tênis de sola pink registrado enquanto chuta um carro de polícia podem ser os elementos que faltavam para completar a sequência de imagens de câmeras de segurança pelas quais a multidão passou, de tomadas em HD de uma grande-angular da multidão feitas por jornalistas, ou qualquer outra fonte de dados que possa ter capturado partes da ação.
Portanto, se você se preocupa em documentar sem incriminar, geralmente a melhor prática é se certificar de não capturar nenhuma parte de corpos humanos em sua documentação de fogueiras, vidraças quebradas, paredes pichadas, ou carros de polícia incendiados. Isso inclui pessoas de costas, membros variados e reflexos em vidraças.
Além disso, se você capturar partes humanas em suas fotos ou vídeos, é uma boa ideia desfocar esses detalhes usando o ObscuraCam ou outra ferramenta similar, a ponto de torná-los inindentificáveis antes da publicação. Além disso, é importante DELETAR AS FOTOS E/OU GRAVAÇÕES ORIGINAIS. Dados armazenados são dados que podem posteriormente ser citados em um processo judicial, o que frustraria o objetivo de seu processo de edição.
Finalmente, ao fazer fotos ou vídeos de manifestantes, é sempre uma boa idéia primeiro pedir o consentimento. Se você aprova ou não o comportamento potencialmente criminoso não vem ao caso: não precisamos fazer o trabalho do Estado ou da polícia quando estamos em um protesto contra suas ações.