William Burroughs na Homocore

O zine Homocore circulou entre 1988 e 1991. Era feito por Tom Jennings e Deke Nihilson em San Francisco, e se tornou uma referência para desertoras do heterossexualismo que não se sentiam representadas pela imprensa/política LGBT liberal assimilacionista da época. Homocore foi também um dos principais cronistas da nascente cena Queercore. Esta entrevista com William Burroughs apareceu no derradeiro número do zine. 

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W.S.Burroughs foi capa do primeiro número da Homocore, mas uma entrevista com ele só apareceria no zine três anos depois.

Esta entrevista foi feita no dia de Halloween de 1990. Graças a Deusa, porque foi o único jeito de me sentir melhor por ter perdido os cuzões do Larry Lea no Civic Center. Seguindo algumas pistas excitantes, no sábado anterior eu e meu amigo David fomos até Lawrence, no Kansas, e achamos o Sr. Burroughs. Dei a ele um calhamaço de zines queers, todos os que eu tinha à mão (Chainsaw, Sister Nobody, Pavement of Surface, Faggot, JD’s e, mais oui, alguns Homocores). Ele topou ser entrevistado para a Homocore, então ao longo dos dias seguintes eu trabalhei nos preparativos com seu secretário particular, James Grauerholtz, um homem muito doce que se lembrava de mim da River City Reunion em 1987.

Seja como for, armamos tudo por telefone (eu em Kansas City, eles em Larrytown) e meus amigos pagaram a conta (aham) de todas aquelas ligações de logística, então aqui vai um obrigado adicional para a turma Sorrels/Zastoupil.

PS: Eu também falei com o Sr. Grauerholtz por uns 20 minutos ou mais, mas por uma questão de espaço mantive só a transcrição de minha (Deke) conversa com Tio Bill (WSB). O Sr. Grauerholtz foi muito lúcido e espirituoso a respeito da situação da libertação queer e da cultura “punk”/jovem. Ele foi um facilitador maravilhoso e eu faço um agradecimento especial a ele.

PPS: Burroughs e Grauerholtz amam a Homocore, mas provavelmente não tanto quanto nós os amamos! Segue a entrevista…

Deke: Tom Jennings, o editor da Homocore, e eu nos interessamos bastante por sua discussão sobre as tongs como um modelo de grupo de proteção e apoio mútuo. No entanto, este modelo parece mais adequado para profissionais com dinheiro. Você acha que as tongs poderiam funcionar sem um montão de dinheiro e no nível da rua?

WSB: Sim, eu acho que sim. Lembre-se que [aquelas às quais me referi] tinham como modelo as tongs chinesas e boa parte dos chineses era muito pobre. A ideia era que quem tinha mais dinheiro ajudaria quem não tinha.

Deke: Bom, pelo menos nos EUA, e pelo que já vi por aí, as organizações da comunidade gay costumam ser de gente tipo empresários da classe alta. Nós [Homopunks] estamos atuando muito mais na realidade das ruas. Estamos nos perguntando como as tongs podem se adaptar melhor a nossas próprias necessidades específicas.

WSB: Bom, acho que vocês podem, com certeza, se tiverem o apoio de profissionais com as mesmas ideias. Além disso, penso que algum tipo de grupos de comandos para agir contra agressores de gays é uma ideia muito boa. Isso não precisa de dinheiro, só de dedicação, como os Guardian Angels.

Deke: Tem havido alguma discussão, como na OutWeek, sobre se homossexuais devem ou não se armar…

WSB: Eu acho que devem. Há várias armas, claro [longa pausa]. Gás lacrimogênio sempre é bom. É uma boa arma e não deixa, necessariamente, cadáveres caídos. Capsdun é o melhor gás lacrimogênio.

Deke: Capsdun?

WSB: Sim, é C-A-P-S-D-U-N. Muitos lugares, ou todos, que vendem gás lacrimogênio agora vendem Capsdun. Detém o ataque de um doberman na hora.

Deke: Pra não dizer o próximo intolerante que vier correndo atrás de você na rua! Você diria que a identidade gay em si é um meio de libertação?

WSB: Bom, de certa forma, sim. Quero dizer, eu me lembro quando era mais jovem, lá pela década de 1920, tudo era varrido para debaixo do tapete. Ninguém saía do armário. Mas isso vai nas duas direções. Uma das coisas que causam a ação antigay é o fato de que eles se atrevem a fazer barulho a respeito disso. Um monte de hétero diz: “bom, tudo bem, nós já sabemos disso, mas simplesmente não queremos que seja empurrado para cima de nós, só isso”.

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Deke: Em sua experiência pessoal, qual foi o instrumento mais eficaz que você encontrou para combater a homofobia?

WSB: na verdade eu não tive muita dificuldade com isso, pessoalmente. Bom, eu sempre costumava carregar uma arma na cidade de Nova Iorque, geralmente gás lacrimogênio ou um porrete, não tanto pelos agressores de gays, mas pela violência em geral.

Deke: Você acha que pode haver uma solução política para a intolerância?

WSB: Uh, não. Eu não penso assim. Você não pode legislar um comportamento decente.

Deke: Certo. Parece que muitos intolerantes são legisladores.

WSB: Bom, é isso mesmo, esse é o problema, claro.

Deke: Você acha que isso pode ser resolvido em seus próprios termos?

WSB: Certamente isso sempre cabe aos bons, os legisladores mais liberais que podem ser eleitos. Legisladores gays também, claro.

Deke: Como já está acontecendo, em certa medida.

WSB: Isso sempre ajuda, é um passo na direção certa.

Deke: Você vê a AIDS como uma trama biológica governamental?

WSB: Bom, seu eu tivesse que apostar meu dinheiro – estou dizendo se TIVESSE que apostar meu dinheiro – eu diria que, provavelmente, isso foi deliberado. Agora o dr. Seale de Londres, um especialista em AIDS, a atribuiu aos russos. Bom, não sei o que eles teriam a ganhar eliminando homossexuais e usuários de drogas intravenosas. E, também, é um trabalho muito simples de engenharia biológica, manipulação genética, com o vírus visna, que é encontrado em ovelhas e é sempre fatal. Existe uma coisa chamada Comitê Contra a Guerra e o Fascismo, que veio a público dizer que a AIDS é uma guerra biológica do governo dos EUA contra o povo, contra os gays e os negros.

Deke: Você acha que as populações mais atingidas pela AIDS foram alvos específicos?

WSB: Bom, é o que parece. Se você pensa na origem disso como tendo sido produzida pelo homem, induzida deliberadamente, então seguramente é muito especificamente orientada. Poderia ter sido introduzida através do negócio de agulhas. A população dependente forma um duto condutor pronto para a introdução de qualquer arma biológica ou química. Ela poderia ter sido introduzida através das agulhas. Você não pode colocar vírus em algo como a heroína, porque eles vivem por um tempo muito curto fora do corpo, mas eles podem colocá-los nas agulhas. A maioria das pessoas compra suas agulhas onde compra sua heroína. É um bem estranho que ela tivesse que aparecer pela primeira vez em usuários de drogas intravenosas, que são reconhecidamente inativos sexualmente. Você dificilmente espera que uma DST comece com um segmento da população que tem uma vida sexual bastante inativa.

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W.S.Burroughs + e-meter

Deke: Você ainda escreve?

WSB: Ah, sim, sim. Tenho um livro saindo, acho que na primavera. É a versão resumida de um livro chamado Ghost Of Chance, que é sobre Madagascar e lêmures.

Deke: Oh, era isso – havia uma história na Omni.

WSB: Sim, é isso mesmo. Aquilo era um trecho. Não tenho certeza de quando a edição completa vai sair. Essa está sendo lançada pelo Whitney Museum. George Condo, um jovem artista faz as ilustrações para o meu texto. É um texto condensado do romance. Mas espero que a edição comercial seja lançada no próximo outono.

Deke: Uma coisa que eu sempre particularmente gostei em seus livros é o que pode ser descrito como o conteúdo “pornográfico”, as cenas sexuais fora do tempo e do espaço. Você pretende escrever mais daquilo?

WSB: Talvez [pausa]. Há muito pouco sexo neste livro que acabei de terminar, The Ghost of Chance. Quando você fica velho, começa a se perguntar quanto sexo tem a ver com sexo.

Deke: O que você quer dizer?

WSB: Bom, é uma questão complicada. Os verdadeiros botões que nos provocam estímulos em muitos casos não são sexuais. [Longa pausa].

Deke: Gostaria de terminar perguntando se há algo em especial que você gostaria de dizer aos garotos, garotas, garotes queer lá fora…

WSB: Sou muito militantemente a favor e com toda certeza sinto que eles devem se defender.

Deke: Você acha que ataques preventivos podem ser justificados?

WSB: Ah, sim, com certeza; o ataque é a melhor defesa em todas as ações militares. Não espere até que ataquem, já que vão atacar.

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Viviana Díaz: a voz do Línea Aborto Libre

texto de Sentidos Comunes/ fotos de Josefina Astorga/11 de junho de 2014

Ela é médica, feminista e lésbica, e uma das fundadoras da Línea Aborto Libre (“Linha Aborto Livre”), uma página na internet para orientar mulheres com intenção de interromper suas gravidezes com comprimidos. Hoje elas já têm três processos arquivados, movidos por movimentos religiosos, e sabem que seus telefones estão grampeados, mas seguem adiante porque dizem que “o aborto é a ponta do iceberg de todas as violências do sistema”. Aqui, a visão de uma mulher que ajuda outras mulheres.

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O que é a Línea Aborto Libre?

Somos um coletivo de lésbicas e feministas. Nossa aspiração é que haja uma rede de colaboradores que façam um trabalho em torno do aborto. O que fazemos é atender um telefone onde damos informação sobre o procedimento do aborto, já que no Chile não há lugares onde obter informação de como usar os comprimidos nem em que dose. Essa é a informação que damos. Não dizemos onde conseguir o medicamento. Somente atendemos as mulheres e conversamos sobre o porquê de estarem nesta situação e tentamos fazer que sejam nossas aliadas. Também incentivamos as mulheres a fazer uso de seus direitos na hora de se dirigir a um serviço de urgência.

É sobretudo uma provocação, e que funcionou, já que até agora temos três processos de grupos ultraconservadores, principalmente evangélicos, que tentaram criminalizar nosso trabalho com a figura de “associação ilícita” e, agora por último, de exercício ilegal da profissão. Nenhum chegou até o final mas incomoda um pouco. Também fazemos oficinas, principalmente em organizações de base, em universidades, em comunidades, centros de mulheres e onde nos chamarem.

Quantas são?

Umas sete em Santiago, com mais três colaboradoras que nos dão apoio em serviços de telefonistas e outras coisas, e em Iquique são ao redor de cinco. Nos revezamos para responder as ligações, quatro horas durante a semana, das 7 às 11 da noite, de segunda a sexta. Estamos implementando para este ano (2014) um serviço de resposta telefônica automatizada 24 horas como alternativa. De qualquer forma, queremos continuar respondendo as ligações, porque nos interessa esse contato com a mulher.

Como é a mulher que liga?

É uma mulher que já decidiu abortar, não pede conselhos. Tende a primeiro justificar sua ligação, mas não busca informação sobre o que fazer e geralmente quer informação de como conseguir o medicamento ou de como usá-lo, ou já o usaram e têm dúvidas se funcionou ou não. São de todas as idades e muitas já têm filhos. Não creditamos que as mulheres que ligam sejam do estrato social mais baixo. O número é difundido através das redes que podemos gerar. Geramos um manual de como fazer um aborto com comprimidos que é um texto impresso que vendemos para nos autogerir, mas que também distribuímos em bibliotecas comunitárias e incentivamos que seja reproduzido, também pode ser baixado em PDF a partir de nossa página da internet e também há um áudio para ser baixado.

O que vocês dizem a ela?

Durante a ligação temos tudo super dentro das normas porque temos o telefone grampeado e esses processos em cima. O protocolo da resposta telefônica foi revisado por algumas advogadas que nos assessoram, então é bem impessoal. Nós repetimos o procedimento, como se faz, quais são as contraindicações, etc.

Qual é o procedimento?

Para uma gravidez de até 12 semanas é com 12 comprimidos de Misoprostol que são usados debaixo da língua. Começa com quatro debaixo da língua, depois de três horas outros quatro e depois de três horas mais outros quatro. Esse é o procedimento recomendado pela OMS. Também há outros casos nos quais não se pode usar este medicamento, como gravidezes múltiplas, mas para a norma geral em uma gravidez intrauterina de até 12 semanas esse é o procedimento. É debaixo da língua, e não intravaginal como se costuma pensar, porque debaixo da língua a dose alcança uma maior concentração do medicamento em cerca de 30 minutos. A absorção é mais rápida e é mais segura, e na hora de ir a um serviço de urgência não há como detectar e isso é importante porque as mulheres somos interrogadas e abusadas.

Se não se dissolvem depois de meia hora podem ser engolidos, mas com 30 minutos já se absorveu o suficiente. O sangramento pode começar imediatamente depois da primeira dose ou até depois da última. Se teve início rápido, recomendamos que se complete o processo porque o aborto pode ser incompleto e isso implica ter que ir ao pronto-socorro e esse tipo de coisas. O sangramento é similar a uma menstruação mas mais intenso, com a mesma cor, dor, cheiro e características. O procedimento completo dura entre 8 e 10 horas, e passado esse tempo a mulher não deve mais ter dor nem sangramento constante, mas pode haver sangramento por gotejamento por três semanas. A mulher pode ficar grávida imediatamente depois e deveria continuar com seus anticoncepcionais. Nós recomendamos o sexo não heterossexual, que é o melhor método anticoncepcional e convidamos as mulheres a questionar a heterossexualidade e suas práticas.

Por que para vocês o feminismo lésbico está tão ligado ao aborto?

Nós somos lésbicas feministas e se trabalhamos com o tema do aborto é porque neste momento no Chile o aborto é a ponta do iceberg de todas as violências do sistema. Aí se concentra o classismo, porque só têm acesso ao aborto as mulheres ricas, o racismo, porque o acesso tem a ver com o tema raça, a misoginia, por toda a violência que não há por quê enumerar aqui. E também a proibição do aborto é uma herança direta da ditadura, o último trabalho da ditadura e isso tinha sobretudo um sentido moral, segundo o qual o corpo das mulheres tem dono.

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Quem é o dono do corpo da mulher?

Qualquer um, menos nós mesmas. A Igreja e o Estado dividem o poder. A proibição do aborto não se justifica de nenhuma outra maneira que não seja pela moral e há toneladas de evidências de que a proibição do aborto como medida de saúde pública não serve para nada. O Chile tem uma enorme taxa de gravidez adolescente que nunca se conseguiu diminuir. A proibição do aborto não afetou isso. A mortalidade materna é superbaixa, similar à dos países europeus, mas dessas mulheres que morrem, que são muito poucas, há uma porcentagem que morre por abortos mal feitos e ainda que morra apenas uma por esta razão, é inaceitável.

Como as mulheres estão abortando hoje no Chile?

Depende de quanto dinheiro elas têm. A dose completa de Misoprostol no mercado ilegal custa por volta de 120 ou 150 mil pesos1. Há mulheres que não conseguem da primeira vez, então devem contar com dinheiro. As mulheres que podem viajar podem ter acesso a abortos em clínicas. Sabemos que existe o aborto em algumas clínicas privadas do Chile mas não há informação oficial sobre isso e não é nosso público-alvo. Uma mulher que quer abortar no Chile o faz como pode e aí está o risco. Há pouco uma garota estava a ponto de morrer no Hospital Cordillera e eu não sei o que ela pode ter feito. Uma vez ligou uma garota que estava sangrando e o senhor que lhe vendeu os comprimidos lhe disse que ia sangrar durante 3 dias e, se não tivesse me ligado, sabe-se lá como terminaria. As mulheres abortam clandestinamente, sozinhas ou acompanhadas pelas amigas, mas com um peso social muito grande em cima. Abortam de maneira muito violenta porque há a sensação de fazer algo proibido.

Vocês defendem o aborto somente até a 12ª semana?

Nós defendemos o aborto livre. Damos informação de aborto até as 12 semanas considerando a pressão social que temos em cima. Alguns centros dão informação de aborto até a 19ª semana, mas o problema tem a ver com a possibilidade de uma hemorragia, à medida que o feto é maior, é maior a possibilidade de ter uma hemorragia grave e essa é a restrição.

O que você acha do projeto de lei que está em discussão neste momento?

Acho conservador. Nos preocupa que haja esta despenalização com condicionantes muito pontuais porque isso implica que o aborto siga sendo um delito. A decisão autônoma de que a mulher decida sobre seu próprio corpo segue sendo penalizada. Isso nos preocupa pelo que implica simbolicamente. Isso é violência de gênero. Há coisas pontuais a respeito da lei, como isso de jogar sempre a decisão para outro. Por exemplo, se te estupram, o sistema para denunciar um estupro é terrível e se uma mulher é estuprada pelo namorado ou pelo marido, essa mulher não vai ter acesso ao aborto segundo essas cláusulas. Quando existia o aborto terapêutico no Chile também não eram todas as mulheres que tinham acesso porque dependia da opinião de dois médicos. Eu não tenho muita esperança se o reitor da PUC sair dizendo que eles não vão fazer isso. Se está nas mãos deles, muito poucas mulheres vão abortar e as que o fizerem vão passar por processos muito violentos.

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Qual a sua opinião sobre a objeção de consciência2?

Pontualmente, neste caso me parece que é somente uma mostra de misoginia. Quando fiz minha residência de ginecologia vi muitas coisas nojentas, sem contar que é um ambiente muito masculino onde você entra como uma mulher, um ser disponível, e isso desde que você é estudante. A maneira como eles interpretam a dor das mulheres é muito subjetiva e muito violenta.

O que teria que acontecer para que as mulheres possam decidir no futuro?

Que ocorresse uma despatriarcalização. Desmontar o patriarcado, mas isso implica muito mais que a despenalização do aborto. Por isso nós defendemos o aborto livre e um aborto feminista, porque sabemos que se hoje não houver uma mudança cultural e de mentalidade e um questionamento das estruturas que permitem que haja ginecologistas que se dão ao luxo de dizer que têm objeção de consciência, vai ficar no papel e nada mais. Como na Espanha, onde há um avanço e depois muda o governo por um de direita e se retrocede. As mulheres devemos sentir que é um direito, e não somente das mulheres, porque no fim é uma coisa todos.

No Uruguai, por exemplo, as entidades de classe e os partidos dos trabalhadores se fizeram parte da luta pela despenalização do aborto porque também era parte de suas demandas que as mulheres pudessem decidir. Há pouco eu soube de um caso de uma garota que teve um aborto espontâneo e trabalha em uma clínica de caráter religioso, e eles sabiam que estava grávida e agora a estão assediando moral e profissionalmente porque há a dúvida de se ela provocou o aborto.

Notas —————————————————

1Entre 210 e 240 dólares (março/2015)

2Referem-se aqui ao suposto direito que teriam os médicos, em uma situação em que o aborto estivesse despenalizado, de se recusarem a realizar o procedimento alegando questões de foro íntimo.

Entrevista: Silvia Federici e a Caça às Bruxas

por Maite Garrido Courel [via Lobo Suelto!]

Há alguns séculos ela teria sido queimada na fogueira. Feminista incansável, a historiadora e autora de um dos livros mais baixados da rede, “Caliban e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva”, fala com Números Rojos e expõe de forma rigorosa as razões políticas e econômicas que se ocultaram por trás da caça às bruxas. Seu último livro, “Revolução em ponto zero”, é uma recopilação de artigos imprescindível para conhecer sua trajetória intelectual.

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Com olhar inquiridor, a italiana Silvia Federici está há mais de 30 anos estudando os acontecimentos históricos que deram lugar à exploração social e econômica das mulheres. Em seu livro “Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva” (Tinta Limón ediciones, 2010), fixa sua mira na violenta transição do feudalismo ao capitalismo, onde se forjou a fogo a divisão sexual do trabalho e onde as cinzas das fogueiras cobriram de ignorância e falsidades um capítulo essencial da História. Federici fala com Números Rojos de seu escritório no departamento de História da Hofstra University de Nova Iorque sobre bruxas, sexualidade e capitalismo e propõe “reviver entre as jovens gerações a memória de uma longa história de resistência que hoje corre o risco de ser apagada”.

Como é possível que a matança sistemática de mulheres não tenha sido abordada mais que como um capítulo curioso nos livros de História? Nem sequer me recordo que tenha sido dado na escola

Este é um bom exemplo de como a História é escrita pelos vencedores. Em meados do século XVIII, quando o poder da classe capitalista se consolidou e a resistência em grande parte foi derrotada, os historiadores começaram a estudar a caça às bruxas como um simples exemplo de superstições rurais e religiosas. Como resultado disso, até não muito tempo atrás, poucos foram os que pesquisaram seriamente os motivos que se escondem por trás da perseguição às “bruxas” e sua correlação com a instauração de um novo modelo econômico. Como exponho em “Calibã e a bruxa”, dois séculos de execuções e torturas que condenaram milhares de mulheres a uma morte atroz foram liquidados pela História como produto da ignorância ou de algo pertencente ao folclore. Uma indiferença que ronda a cumplicidade, já que a eliminação das bruxas das páginas da história contribuiu para trivializar sua eliminação física na fogueira. Foi o Movimento de Libertação das Mulheres dos anos 70 que reavivou o interesse pela caça às bruxas. As feministas se deram conta de que se tratava de um fenômeno muito importante, que havia dado forma à posição das mulheres nos séculos seguintes, e se identificaram com o destino das “bruxas” como mulheres que foram perseguidas por resistir ao poder da Igreja e do Estado. Esperemos que, sim, ensinem às novas gerações de estudantes a importância desta perseguição.

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Há algo, também, que inquieta profundamente, e é o fato de que, salvo o caso dos pescadores bascos de Lapurdi, os familiares das supostas bruxas não se levantaram em armas em sua defesa, depois de haver lutado juntos nos levantes camponeses.

Desafortunadamente, a maioria dos documentos que temos sobre a caça às bruxas foram escritos por aqueles que ostentavam o poder: os inquisidores, os magistrados, os demonólogos. Isto significa que pode haver exemplos de solidariedade que não tenham sido registrados. Mas devemos ter em conta que era muito perigoso para os familiares das mulheres acusadas de bruxaria que fossem associados a elas e mais ainda se levantar em sua defesa. De fato, a maioria dos homens que foram acusados e condenados por bruxaria eram parentes das mulheres suspeitas. Isto, é claro, não minimiza as consequências do medo e da misoginia que a própria caça às bruxas produziu, já que propagou uma imagem horrível das mulheres, as convertendo em assassinas de crianças, servas do demônio, destruidoras de homens, que os seduziam e os tornavam impotentes ao mesmo tempo.

Você expõe duas consequências claras no que se refere à caça às bruxas: que é um elemento funcional do capitalismo e que supõe o nascimento da mulher submissa e domesticada.

A caça às bruxas, assim como o tráfico de escravos e a conquista da América, foi um elemento imprescindível para instaurar o sistema capitalista moderno, já que mudou de uma maneira decisiva as relações sociais e os fundamentos da reprodução social, começando pelas relações entre mulheres e homens e mulheres e Estado. Em primeiro lugar, a caça às bruxas debilitou a resistência da população às transformações que acompanharam o surgimento do capitalismo na Europa: a destruição da posse comunal da terra; o empobrecimento massivo e a inanição e a criação na população do proletariado sem terra, começando pelas mulheres mais velhas que, ao não possuir uma terra para cultivar, dependiam de uma ajuda estatal para subsistir. Também se ampliou o controle do Estado sobre o corpo das mulheres, ao criminalizar o controle que estas exerciam sobre sua capacidade reprodutiva e sua sexualidade (as parteiras e as anciãs foram as primeiras suspeitas). O resultado da caça às bruxas na Europa foi um novo modelo de feminilidade e uma nova concepção da posição social das mulheres, que desvalorizou seu trabalho como atividade econômica independente (processo que já havia começado gradualmente) e as colocou em uma posição subordinada aos homens. Este é o principal requisito para a reorganização do trabalho reprodutivo que exige o sistema capitalista.

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Você fala do controle dos corpos: se na Idade Média as mulheres exerciam um controle indiscutível sobre o parto, na transição ao capitalismo “os úteros se transformaram em território político controlados pelos homens e o Estado”.

Não há dúvida que com o advento do capitalismo começamos a ver um controle muito mais estrito por parte do Estado sobre o corpo das mulheres, levado a cabo não só através da caça às bruxas, mas também através da introdução de novas formas de vigilância da gravidez e da maternidade, e a instituição da pena capital contra o infanticídio (quando o bebê nascia morto ou morria durante o parto, se culpava e se executava a mãe). Em meu trabalho sustento que estas novas políticas, e em geral a destruição do controle que as mulheres na Idade Média haviam exercido sobre a reprodução, se associam com a nova concepção que o capitalismo promoveu do trabalho. Quando o trabalho se converte na principal fonte de riqueza, o controle sobre os corpos das mulheres adquire um novo significado; estes mesmos corpos são então vistos como máquinas para a produção de força de trabalho. Creio que este tipo de política é ainda muito importante hoje em dia porque o trabalho, a força de trabalho, segue sendo crucial para a acumulação do capital. Isto não quer dizer que em todo o mundo os patrões queiram ter mais trabalhadores mas, sem dúvida, querem controlar a produção da força de trabalho: querem decidir quantos trabalhadores estão produzindo e em que condições.

Na Espanha o Ministro da Justiça quer reformar a lei do aborto, excluindo os casos de malformação do feto, justo quando a assistência social do governo desapareceu.

Nos Estados Unidos também estão tentando introduzir leis que penalizem gravemente as mulheres e limitem sua capacidade de escolher se desejam ou não ter filhos. Por exemplo, vários estados estão introduzindo leis que fazem que a mulher seja responsável pelo que acontece ao feto durante a gravidez. Houve um caso polêmico de uma mulher a quem acusaram de assassinato porque seu filho nasceu morto e depois se descobriu que havia usado algumas drogas. Os médicos excluíram o consumo de cocaína como causa da morte do feto, mas foi em vão, a acusação seguiu seu curso. O controle da capacidade reprodutiva das mulheres é também um meio de controlar a sexualidade das mulheres e seu comportamento em geral.

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Você mesma coloca: por que Marx não se questionou sobre a procriação como uma atividade social determinada por interesses políticos?

Esta não é uma pergunta fácil de responder, já que hoje nos parece evidente que a procriação e a criação dos filhos são momentos cruciais na produção de força de trabalho e não por casualidade foram objeto de uma regulação muito dura por parte do Estado. Creio, no entanto, que Marx não podia se dar o luxo de ver a procriação como um momento da produção capitalista porque se identificava com a industrialização, com as máquinas e a indústria em grande escala, e a procriação, como o trabalho doméstico, parecia ser o oposto da atividade industrial. Que o corpo da mulher se mecanizasse e se convertesse em uma máquina para a produção da força de trabalho é algo que Marx não podia reconhecer. Hoje em dia, nos Estados Unidos pelo menos, o parto também se mecanizou. Em alguns hospitais, obviamente não os dos ricos, as mulheres dão à luz em uma linha de montagem, com certo tempo determinado para cada parto, se excedem esse tempo, é feita uma cesariana.

A sexualidade é outro tema que você aborda a partir de um ponto de vista ideológico, sendo a igreja quem promoveu com grande virulência um férreo controle e criminalização. Era tão forte o poder que conferia às mulheres que continua essa tentativa de controle?

Creio que a Igreja se opôs à sexualidade (ainda que sempre a praticaram à escondidas) porque tem medo do poder que exerce na vida das pessoas. É importante recordar que ao longo da Idade Média a Igreja também esteve envolvida na luta para erradicar o casamento dos sacerdotes, que via como uma ameaça para a conservação de seu patrimônio. Em todo caso, o ataque da Igreja sobre a sexualidade sempre foi um ataque às mulheres. A Igreja teme as mulheres e tratou de nos humilhar de todas as maneiras possíveis, nos retratando como o pecado original e a causa da perversão nos homens, nos obrigam a esconder nossos corpos como se estivessem contaminados. Enquanto isso, tratou-se de usurpar o poder das mulheres, apresentando o clero como doadores de vida e inclusive adotando a saia como vestimenta.

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Em uma entrevista você afirma que continua tendo lugar uma caça às bruxas. Quem são os hereges agora?

Tem havido caça às bruxas desde há vários anos em diferentes países africanos, assim como na Índia, Nepal, Papua Nova Guiné. Milhares de mulheres foram assassinadas desta maneira, acusadas de bruxaria. E está claro que, como nos séculos XVI e XVII, esta nova caça às bruxas se conecta com a extensão das relações capitalistas em todo o mundo. É muito conveniente ter camponeses lutando uns contra os outros enquanto que em muitas partes do mundo estamos vivendo um novo processo de cercamento, com a privatização da terra e um grande saque aos meios básicos de subsistência. Também há provas de que parte da responsabilidade dessa nova caça às bruxas, que por sua vez é dirigida especialmente às mulheres mais velhas, deve ser atribuída ao trabalho das seitas cristãs fundamentalistas, como o movimento pentecostal, que trouxeram de novo ao discurso religioso o tema do diabo, aumentando o clima de suspeitas e o medo já existente gerado pela dramática deterioração das condições econômicas.

Omnia sunt communia!, tudo é comum, foi o grito dos anabatistas cuja luta e derrota, como você conta no livro, foi varrida pela História. Esse grito continua sendo subversivo?

Certamente é, já que estamos vivendo numa época onde “sunt omnia privata”. Se as tendências atuais continuam, logo não haverá calçadas, nem praias, nem mares, nem águas costeiras, nem terra, nem florestas, nos quais possamos entrar sem ter que pagar algum dinheiro. Na Itália alguns municípios estão tentando aprovar leis que proíbem as pessoas de colocar suas toalhas nas poucas praias livres que restam e isto é só um pequeno exemplo. Na África, estamos sendo testemunhas das maiores apropriações de terras da história do continente por parte de empresas mineradoras, agroindustriais, agrocombustíveis A terra africana está sendo privatizada e as pessoas estão sendo expropriadas a um ritmo que coincide com o da época colonial. O conhecimento e a educação estão se convertendo em mercadorias disponíveis só para aqueles que podem pagar e inclusive nossos próprios corpos estão sendo patenteados. Assim que “omnia sunt communia” continua sendo uma ideia radical, ainda que se deva ter o cuidado de não aceitar a forma distorcida como está sendo usado esse ideal, por exemplo, por organizações como o Banco Mundial, que em nome da preservação da “comunidade global” privatiza as terras e as florestas e expulsa a população que ganhava seu sustento nelas.

Como se poderia abordar a questão dos comuns atualmente?

O tema dos comuns é como criar um mundo sem exploração, igualitário, onde milhões de pessoas não morram de fome no meio do consumo obsceno de uns poucos e onde o meio ambiente não seja destruído, onde a máquina não aumente a exploração em vez de reduzi-la. Este eu creio que é nosso problema comum e nosso projeto comum: criar um mundo novo.