Hormônios 2

Desde que o Menino Cobaia trouxe ao hotel o tema da contaminação ambiental por xenoestrógenos nós temos pensado bastante sobre essa situação paradoxal em que toneladas de estrógenos são despejadas sorrateiramente sem qualquer controle em nosso entorno, ao mesmo tempo em que a livre experimentação consciente com hormônios em nossos próprios corpos passa por um rígido controle institucional. E é exatamente disso que trata o Open Source Estrogen/ Estrógenos de Código Aberto, um projeto de Mary Maggic, Byron Rich & outres corpes:

A BIO-LENTA E O PARADOXO DA DISRUPÇÃO

Toxidade ambiental e Biopolítica contra a soberania do corpo e de gênero

A BIO-LENTA é o exercício da violência biopolítica contra a capacidade individual de decisão.

O Paradoxo da Disrupção nos recorda como o poder hegemônico silencia a forma pela qual intoxica nossos corpos ao mesmo tempo em que patologiza as identidades dissidentes de gênero.

Partindo disso… vamos esclarecer alguns conceitos.

O que é Biopolítica?

Há diferentes maneiras de definir a biopolítica. De acordo com Foucault, a biopolítica é a maneira pela qual o governo regula a população através do biopoder, isto é, a aplicação e o impacto político do poder em todos os aspectos da vida humana.

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetiva somente mediante a consciência ou a ideologia, mas também no corpo e com o corpo. Para a sociedade capitalista o que importava acima de tudo era o bio-político, o biológico, o somático, o corporal”. (Foucault)

Para compreender esta forma de dominação, é importante entender dois conceitos principais: Zoé e Bios.

Zoé significa, em grego clássico, simplesmente “vida”.

Bios faz referência à vida política.

Foucault sugere que com a aparição do estado moderno, a zoé foi incluída na bios, com a intenção de controlá-la.

No entanto, Giorgio Agamben (Roma, 1942) repensa a biopolítica foucaultiana. Podemos encontrar duas importantes diferenças entre Agamben e Foucault:

1. O biopoder se apropria da zoé dxs cidadã/os para sua manipulação política desde o início da hegemonia ocidental, na polis grega.

2. O poder político cria uma coincidência conceitual entre Zoé e Bios. Este ponto é importante porque coloca que a “simples vida” foi considerada fora da lei. Mas com a absorção desse espaço, zona autônoma e fora da lei, pela Bios, o poder político estende sua ação sobre o exercício da vida dos seres vivos.

Podemos tomar estas ou outras definições de biopolítica, mas o ponto é:

O significado conceitual da biopolítica se relaciona com a capacidade do poder hegemônico para controlar os corpos, comportamentos e identidades dxs seres humanxs.

COLONIZAÇÃO MOLECULAR E TOXIDADE AMBIENTAL

A contaminação com xenoestrógenos está interferindo nos estrógenos naturais, o que provoca uma série de disfunções e doenças no sistema hormonal dos seres vivos. Os xenoestrógenos, como o DDT e o DES, foram sintetizados pelas indústrias química e farmacêutica, criados na década de 1930.

Os xenoestrógenos sintetizados quimicamente podem permanecer no meio ambiente por até 100 anos. Além disso, demonstrou-se cientificamente que são transmitidos através de recipientes de plástico (especialmente os de PVC). Essas são as principais causas da contaminação por estrógenos. Os xenoestrógenos são DISRUPTORES HORMONAIS, isto é, geram mudanças na funcionalidade do sistema endócrino.

Graças às teorias de Agamben, é possível entender a contaminação por xenoestrógenos como uma forma de controle biopolítico, porque afeta o equilíbrio hormonal dos seres vivos, incluídos os humanos. E, mais concretamente, a contaminação por estrógenos pode ser considerada uma expressão da “slow violence” ou violência lenta/paulatina.

O que é a violência paulatina [a.k.a BIO-LENTA]?

Segundo Rob Nixon, em seu livro Slow Violence and the Environmentalism of the Poor, a violência lenta é um tipo de violência que tem lugar gradualmente e fora da vista (pública). Não é um tipo de violência espetacular e instantânea, mas uma violência que muitas vezes nem se considera como tal. Em nosso caso, a contaminação por xenoestrógenos se adapta perfeitamente à ideia de violência paulatina porque a opinião pública não atua sobre ela, por falta de informação. A onipresença dos xenoestrógenos é um ato silencioso e progressivo de envenenamento.

Como pudemos ver nos ataques terroristas do 11 de setembro, o tratamento dado à violência pelos meios de comunicação se baseia no espetáculo.

Os meios de comunicação não costumam prestar atenção nas tragédias produzidas pela violência paulatina, como a contaminação por estrógenos.

Um dos objetivos principais do projeto Estrógenos de Código Aberto consiste em oferecer ao público a informação relacionada com a contaminação por estrógenos na água de Madri para envolver a sociedade civil, exigir intervenção política institucional e oferecer uma reflexão sobre a ação corporal subversiva.

Estrógenos de código aberto

Escritorxs, cineastas e ativistas digitais poderiam desempenhar um papel mediador ajudando a se contrapor à invisibilidade estratificada resultante das ameaças insidiosas, procedentes da temporalidade prolongada, e do fato de que as pessoas afetadas são aquelas cuja qualidade de vida – e, com frequência, a própria existência – é indiferente para os grandes meios de comunicação” (Rob Nixon)

Centradas nesta proposta, abordamos uma reconsideração do projeto com a ideia da apreensão.

Primeiro, a apreensão esboça percepção, emoção e ação, por outro lado, nosso projeto inclui a detecção, extração e a síntese de estrógenos. Existe uma relação direta entre estas duas tríades de conceitos, mas existe também um diálogo multidirecional dos seis conceitos. Em segundo lugar, apreendendo algo potencialmente perigoso, como os estrógenos disseminados no ambiente madrilenho, e usando-os como arma criativa e comunicativa, criamos uma subversão artística.

Com a ajuda de tecnologias contemporâneas de baixo custo, convidamos o público a uma mudança na percepção temporal dos processos violentos alteração de Gaia (a Terra é o melhor indicador dos problemas de poluição). Para isso, coletamos amostras de água da cidade de Madri e as analisamos em nosso laboratório biológico caseiro, geolocalizando os resultados. Experimentamos com a detecção e a extração do estrógeno das amostras e liberamos o conhecimento mostrando como construir um laboratório DIY com materiais cotidianos.

O PARADOXO DISRUPTIVO

Disrupção

s.f.

(do latim disrupio, -onis, fractura, ruptura)

Ato ou efeito de romper(-se); dirupção, fratura.

Quebra de um curso normal de um processo.

Criar confusão ou desordem.

Restabelecimento abrupto de energia elétrica que provoca faíscas e enorme consumo da energia acumulada.

Em escoamento de fluidos, formação e acúmulo de turbilhões ao redor de um obstáculo; deflexão.

Enquanto o atual e voraz sistema hegemônico de consumo nos envenena lentamente através da toxidade estrogênica ambiental provocada pelas dinâmicas da alta produtividade industrial e da exploração agrícola, os corpos dissidentes, inclassificáveis nos parâmetros binômicos, são patologizados.

Enquanto a instituição médica, política, psiquiátrica e farmacêutica coloniza nossos corpos, a agroindústria alimentícia os altera com a BIO-LENTA.

Ao mesmo tempo, as pessoas transgênero são tratadas como doentes, submetidas a diagnósticos e à experimentação do poder, a livre experimentação da disrupção hormonal está encriptada.

Tanto a toxidade ambiental como as ações corporais subversivas, estão envolvidas na disrupção hormonal.

Os hormônios sexuais estão dentro de nós e pululam por nosso entorno, afetando nossos corpos.

A coisa é: por que não podemos decidir como queremos expor nossos corpos? A contaminação por xenoestrógenos é ocultada pelo poder porque a regulação e o controle de sua toxidade são controvertidos.

Por outra parte, a normatividade enclausura a possibilidade de hackear nossos corpos para romper o sistema hegemônico e os privilégios do sistema cis-sexista.

Esta situação insana se parece com algo como uma INDÚSTRIA CAPITALISTA FARMACOPORNOGRÁFICA de controle social e reprodutivo.

A contaminação por estrógenos não está controlada nem calibrada por nenhum parâmetro de sustentabilidade ecológica. No entanto, existem consequências sobre o funcionamento de nossos corpos pela exposição prolongada a estes níveis não analisados nem identificados. O silêncio consentido em favor dos interesses econômicos liberais nos afeta.

A ficção do sistema sexo/gênero acompanhado de uma concepção binarista e cis-sexista da sociedade, desnormaliza a soberania do corpo e do gênero, patologizando as identidades trans, inter, queer…

Precisamos nos reapropriar da soberania de nossos corpos, devemos ressignificar e decolonizar os termos e processos, e, finalmente, temos que hackear o controle da instituição através da DESOBEDIÊNCIA CIVIL BIOTÉCNICA.

Como? Queremos desmitificar as objeções em relação à experimentação hormonal. Se conhecemos os níveis de toxidade poderemos proteger nossa soberania. Abriremos o código de nossa experimentação para a intervenção política. Este projeto de biohacking poderia ser um fantástico caminho para a injeção cultural da resistência. [ texto retirado do Estrozine 1.1 – tradução das macacas idosas do Instituto Geriátrico Puerco Suíno]

Open Source Estrogen/Estrógenos de Código Aberto: donas de casa fazendo drogas combina ciência DIY, política de corpo e de gênero, e ética da manipulação hormonal.

O objetivo do projeto é criar um protocolo de código aberto para a biossíntese de estrógeno.

A cozinha é um espaço politicamente carregado prescrito às mulheres como seu ambiente apropriado, o que a torna o contexto exato para se fazer uma receita de síntese de estrógeno.

Com os recentes desenvolvimentos no campo da biologia sintética, a cozinha adaptada em laboratório pode ser uma realidade ubíqua num futuro próximo.

O estrógeno de código aberto poderá permitir a mulheres cis e trans o exercício de um maior controle sobre seus corpos ao prescindir de governos e instituições.

Queremos perguntar: quais são as biopolíticas que governam nossos corpos? E mais importante ainda: é ético autoadministrar-se hormônios autossintetizados?

[Os detalhes sobre a detecção, extração e geolocalização da BIO–LENTA Madrilenha, você encontra AQUI.]

“Biologia de escola não explica nada”

De uma hóspede vitalícia do hotel:

A vizinha foi operada. Tinha hérnia, aproveitou e fez tudo. O marido disse que ela não gosta de falar que é bariátrica. Já vi muita gente que fez e está engordando loucamente. Mas os médicos adoram falar que é coisa simples, enchem a cabeça das pessoas pra elas fazerem. E, meu, o cara que fez medicina, não você, aí você acha que se ele tá falando deve ser verdade. Sabe o que é absurdo? A gente tem aula de biologia, mas não sabe onde fica nada. Se tem dor, não faz ideia do que tem ali dentro. Estou até hoje tentando entender a cirurgia que fizeram em mim, em que o cara mexeu, onde eu sinto e por quê. Ainda que esse ortopedista e a fisioterapeuta explicam tudo o que eu pergunto, como funciona. Ainda têm toda paciência, o que não é normal. Mas ainda estou tentando entender um joelho. Biologia de escola não explica nada… Agora que eu tô aprendendo direito onde fica todo aparelho digestivo, fígado, baço, intestinos… a gente vê desenhinhos lindos, mas não aprende que rim fica na lombar… essas coisas…

Silimarina Composta

Entrevista Transdisciplinar Queer Cripple Aleijada Def: Games of Crohn – Diario de una Internación

Leo Silvestri dixit:

A pedido de Sandra, que conheci na turnê “Games of Crohn – Diario de una internación”, na apresentação realizada em Barcelona no espaço das companheiras trabalhadoras sexuais da Aprosex, convidamos muitas companheiras defs e trabalhadoras sexuais para participar desta reunião de reflexões.

Sandra Estragués:

A partir de sua experiência no hospital onde esteve internada por causa da condição de Crohn, quais são os fatores que você diria que afetam de forma especial e diferenciada as mulheres – as biopoliticamente designadas “mulheres” – e que não afetam os homens cis heterossexuais? São os entornos hospitalares, como você diz em seu livro, “espaços de feminização forçada”?

Realmente não sei o que não afeta os homens, porque por sorte não sou um deles; mas comprovou-se que qualquer dor, especialmente na região corporal estratificada como reprodutivo-digestiva, expressada por uma corporalidade “mulher”, cis ou trans, costuma ser desconsiderada porque o mito da “histérica” freudiana que mente continua operando, de forma consciente ou não, no pessoal médico. Com isso o acesso à analgesia é sempre mais restrito quando se porta um útero ou uma feminilidade que costuma ser associada a um útero. Creio que o mundo é um espaço de feminização forçada, não só o hospital. Mas a infantilização da mulher no dispositivo hospitalar se faz notar com força: sempre nos tratam como menininhas com capacidade reduzida de compreensão, a quem se fala no diminutivo porque não entendemos bem sobre o que estão nos falando e nem terminam de explicar “para que não fique impressionada”. Como narro no livro, o peso e o que consideram um peso “normal” também tem relação com os padrões de beleza hegemônicos.

Em um trecho de seu livro você diz “A doença normaliza. Ela torna mulher, humana, se você se entrega, no pior sentido que essa palavra pode ter. Ela faz de você uma pessoa pouco autônoma, vítima […]”. Podemos deduzir, a partir de suas palavras, que o aparato médico é um reprodutor de violência sobre nós, um potente agente “normalizador”?

É um dos dispositivos de normalização e correção mais coercitivos com que contamos nos últimos anos. Afinal de contas, muitas vezes chamam “curar” o que pura e simplesmente é uma operação, em geral a ponta de bisturi, para ajustar até fazer encaixar uma corporalidade que ultrapassa os estreitos limites das identidades prescritas. O dispositivo hospitalar subjetiva até seus médicos, não só suas pacientes. Não está lá nem para companhar nem para dar assistência, nem também para curar, porque muitas vezes os quadros clínicos não são curáveis, porque não são doenças. Apenas são. A medicina se beneficiaria muito se tivesse um papel de acompanhamento e empoderamento, que atualmente não tem, especialmente para nós que necessitamos de suportes técnicos específicos. E podemos dizer o mesmo dos feminismos. Já não têm mais. Mas pelo lado da práxis médica, o mundo está dividido entre saudáveis e doentes e isso gera muitas vantagens, em especial para aqueles que detêm o protocolo que define quem fica de um lado e quem fica do outro. Para mim o aparato médico é o braço armado da biopolítica. Se você se descuida, podem ser pessoas realmente perigosas, dotadas, por um lado, do saber/poder do qual ninguém desconfia ou questiona e, por outro, das armas/ferramentas. Não tenho uma relação harmoniosa com a instituição corporativa médica. Tento ir pouco e me relacionar o menos possível só com pessoas específicas com quem, sim, podemos trabalhar. Em geral me parecem pessoas embrutecidas por sua maneira de adquirir conhecimentos e por sua disciplina com pouca capacidade de empatia, e uma soberba inédita, apesar de seu embrutecimento.

Em seu livro você também afirma “As feministas continuam pensando que são melhores que as trabalhadoras sexuais e as defs”. Você acredita que o feminismo abolicionista reproduz os argumentos do capacitismo, quando essas feministas se consideram “melhores” que as trabalhadoras sexuais, partindo da ideia do corpo como algo sagrado?

O feminismo hegemônico foi historicamente capacitista como quase tudo até a atualidade – em seu essencialismo, utilizando argumentos do dispositivo médico corretivo-normalizador para ditar quem éramos as mulheres e quem não era (primeiro foram as lésbicas, depois foi a vez das trans e amanhã, quem sabe, talvez as deformadas). Nos dias de hoje encontramos frases feministas tais como “a transexualidade é parte da dominação masculina”. Sem dúvida as trabalhadoras sexuais, assim como o “coletivo de diversidade funcional”, isto é, nós as defs/aleijadas, somos um exemplo contundente de que a dissidência não é necessariamente sexual, e que muitas vezes, como acontece com o véu na Europa, o que aparentemente é o epítome do tradicionalismo conservador (assim como essa imagem da suposta beleza hegemônica da trabalhadora sexual, que é sempre bastante mítica e quando se desce à realidade a coisa não é bem assim) na realidade tem potências contestatárias em confronto contra a ordem estabelecida (como o véu dentro da disputa conta a hegemonia ocidental). Atos de confronto e desobediência, inclusive sem o saber, o que me parece ainda mais fascinante. Devir Antígona.

Bárbara G. F. Muriel:

Qual é, para você, a potência política da dor? E das nossas cicatrizes?

Uma pensadora brasileira, Suely Rolnik, fala de “corpos vibráteis”. Acredito que somos isso: corpas que se agitam, vibram, estremecem, fendem-se, gritam, fazem ranger o maquinário do normal. Não concebo, desde antes de meu diagnóstico, uma vida sem dor. Não consigo pensar em nada pior que a não-dor. Recordemos que a dor não é o sofrimento e que a dor, como foi longamente estudado desde Sade, Genet ou Foucault até o grupo Samois, pode nos lançar em abismos insondáveis de extremo prazer ou autoconhecimento. Se você me permite ser poética, eu diria, citando o verso do poeta irlandês Arthur O’Shaughenessy, que somos quem movemos e agitamos o mundo. A revolução é das frágeis sencientes cuja “saúde” tão vulnerável tem a potência de fomentar uma melhor escuta do existente e da vida. Caso contrário, será simplesmente publicidade para conseguir uma melhor posição social ou pornô inspiracional. Fazer da dor física, do vazio existencial, uma experiência política é o desafio. Creio que é disso que fala Games of Crohn tanto quanto outras produções ou criações de corpos vibráteis, como as suas na área das artes visuais, por exemplo. Doente e anormal são, para mim, denominações feitas em referência a um limite que me circunscreve no entorno ou contra a normalidade. É claro que uso esses conceitos quando é necessário incomodar. Mas dentro de mim não acredito nisso. Convivo com uma gata que é quase cega e surda como uma parede. Não tem diagnóstico, portanto, apesar de ser muito particular aos meus olhos, ela simplesmente existe uma vida prazerosa sem perceber que não vê ou não ouve. Sua vida é assim. E me parece que por isso mesmo (e não apesar disso mesmo) vive não só muito alegremente, como desdobrou uma grande quantidade de potências: por exemplo, não teme o barulho da metrópole onde vive, não se assusta. Sua suposta incapacidade se vê como uma adaptação. Creio que muitas de nós poderíamos ser como a Elliot, a gata surda-cega. É o modelo social que nos impede. Como já disse por aí, sinto que uma boa parte de mim não participa deste banquete sem piedade chamado humanidade, ama e soberana de tudo o que existe, que aplaina e asfalta a rodovia do progresso, e celebro isso, celebrarei sempre, não importa o quanto doa, porque qualquer coisa que me faça menos humana (entendendo-se por humano esse ideal regulatório de perfeição e normalidade que ninguém resiste e por humanismo essas soberanias submetidas contra as quais nos advertia Foucault em Microfísica do Poder) me cai bem e me da alegria, isto é, incrementa minhas potências de agir ainda que às vezes tenha que estar quieta, ainda que no ínterim tenha que fazer terríveis concessões.

Miriam Vega:

Nem toda def carrega implícita uma dor física em sua corpa, e nem toda corpa que dói é considerada def pelo sistema imperante. Como você acha que este vazio afeta o interior da subjetividade que se reconhece como def? Como o sistema representa o corpo def?

O capacitismo cria seu próprio modelo estigmatizador em ambos os sentidos da deficiência. Só são defs as pessoas com as chamadas deficiências múltiplas e as consideradas com suas capacidades intelectivas devastadas, como tive que escutar de uma professora especializada em deficiência para referir-se a alguém surdo e cego. Portanto, se você pode se movimentar, se não está em cadeira de rodas, e não finge uma certa imbecilidade, você não é def, invisibilizando toda uma série de fatores com suas necessidades específicas que não são visíveis a primeira vista. Estamos realizando com Mai Stansauger, com quem fizemos o documentário do Crohn, uma série de vídeos que se chama Mutantes y Orgullosas sobre condições invisíveis: endometriose, ostomia, esclerose múltipla, HIV, diferentes diagnósticos psiquiátricos e Crohn. Toda essa gama de pessoas que em muitos casos são defs sem documentos, cidadãs de segunda de uma cidadania de saúde já subalterna. Este fenômeno de produzir, através da opressão, um estigma que por sua vez nega importância e existência àquelas pessoas não estigmatizadas também se observa frequentemente em outros fenômenos como o estupro ou o aborto: enquanto seguirmos pensando que o estupro só existe quando ocorre no meio da noite, onde um desconhecido te dá uma paulada na cabeça e te arrasta para um descampado, negaremos a existência de quadros muito mais sutis, infrafamiliares, com gente de confiança, todo tipo de abusos que muitas vezes dificilmente são detectáveis até para a pessoa que os sofre, que só os verifica em seu mal-estar. E assim também com o aborto, que é considerado um descuido ou má sorte e não um risco ou um efeito colateral intrínseco a toda relação penetrativa-coital onde estão envolvidos líquidos seminais.

Não acredito nas olimpíadas da opressão, por isso não vale a pena competir para ver quem sofre mais a opressão capacitista e sim detectar melhor quem se beneficia com o regime e como desmantelá-lo. Do mesmo modo não acho que vivo melhor porque me desloco sobre minhas duas pernas e não sobre umas próteses de carbono ou uma cadeira de rodas. Também não creio que existam quadros ou condições mais sofridos que outros. Segundo quem tal ou qual vida é pior que a outra? Não me consta que ter maior capacidade de movimentos torne uma vida mais rica só porque há um mundo feito para pessoas com certas características e não outras. Creio que é necessário nos juntar, nos encontrar no que temos em comum nesta forma realmente divergente de habitar o mundo e visibilizar os pontos de encontro: como se explica no famoso vídeo de Sunaura Taylor com Judith Butler, os crimes de ódio que ainda ocorrem contra as populações cujas expressões de gênero e desejo excedem os ditames da heterossexualidade se baseiam em como as pessoas são vistas, ou se movem ou se deslocam, tal como acontece com nossa comunidade aleijada ou com o coletivo de trabalhadoras sexuais.

Neste livro você formula um diário que lhe sustenta durante a internação e a recuperação de seu corpo, inclusive poderíamos falar que a palavra é formulada como uma prótese que te mantém para não te ver cair. Mas por outro lado poderíamos dizer que seu princípio ativo funciona com sua leitura, com a responsabilidade que o corpo leitor adquire para entender que este livro não tem o propósito de contar para equilibrar o excesso, mas de eriçar consciências e de fazer máquina que modifique e esbofeteie o corpo capacitista. Com tudo isso me surgem várias perguntas: como fazer o corpo capacitista entender que o que impera não é a terapia, mas sua maneira de proceder?

Adoro as suas perguntas. Antes de tudo, obrigada. Eu não quero fazer ninguém entender nada. Quem puder sentir conosco, que sinta, o resto, sinto muito, rezarei a Baphomet para que fiquem bem. Ou como dizia nosso velho e querido comediante Fernando Peña, “desejo a todos que adoeçam de uma doença terminal, mas não morram”… ou algo assim. Ultimamente ando desejando muito que as pessoas adoeçam. Vai depender de sua maneira de sentir ou entender “a doença” se me dirão obrigado ou me mandarão cagar. Mas não creio que possa haver diálogo com quem se beneficia de nossa opressão. Assim como as afrodescendentes e outras corpas feitas sob os efeitos da opressão branca não se sentam para pensar como fazer branquinhas antirracistas como nós entenderem, mas sim como desbaratar o regime.

A partir de seu posicionamento de professora, de querer compartilhar conhecimento, de ensinar paradigmas úteis, você acredita que se deve com o foco no discurso fazer entender o outro corpo ou, pelo contrário, é melhor investir forças em outras questões que elevem nossas potências?

Meu trabalho docente é um trabalho vivível. Simplesmente isso. Se eu soubesse, seria eletricista. Não há nada mais por trás disso. Lamento não ter pensado em ser puta antes, queria ter sido trabalhadora sexual bem jovem por muito dinheiro, quando ser magra e estar hiperdepilada não me custava tanto esforço.

Recomendo que sempre o esforço e o afã estejam orientados para o incremento da própria potência. Como a potência só se incrementa compondo com outros corpos (não necessariamente humanos), então nunca se está inteiramente só ou isolada e graciosamente se dá a volta no individualismo. Devemos repelir com suma força a tentação de ajudar os outros e fazer o bem, de fazer alguém entender algo. É um lugar não só infrutífero como também problemático, como de púlpito: atrás dessa função pseudopedagógica bondosa, que nada tem a ver com a capacidade ético-afetiva, se encontra Hitler jogando bridge com a madre Teresa de Calcutá. Quem queira sentir, que sinta. Os chamados estão destinados a quem pode sentir, e o devir é sempre minoritário.

Qual a sua opinião sobre a arteterapia e a prática do arteterapeuta? Até quando vamos continuar infantilizadas?

Nem sei o que é, e pelo jeito que soa, parece que não me interessa. Em princípio desconfio da arte, exceto que seja ofensiva e quando é muito ofensiva, pois aí já não é considerada arte em nosso mundo atual. Na realidade desconfio de tudo o que não ofenda. Na verdade, não sei te dizer até quando. Só sei o que dizia Beauvoir: o opressor não seria tão forte sem a cumplicidade do oprimido. Se bem que pode haver usos estratégicos desse infantilismo, creio que é bom não acreditar no jogo que se joga para ganhar um lugar. Quando você consegue que sua interpelação capacitista lhe dê uma única existência, cagou. O devir “menina” não tem nada a ver com ser uma eterna menininha por ser def. Como o coletivo def se encarregou de desenvolver ad nauseam nos últimos tempos todas as corpas que assim desejem devem ter acesso ao mundo dos prazeres corporais, um dos quais fundamentalmente é o exercício da sexualidade. Não tenho soluções nem respostas, mas me dou conta que as pessoas Down, fala dizer alguém, merecem trepar quando assim desejarem, como qualquer outra pessoa. Especialmente as neurodivergentes que ficaram para trás por ser sempre consideradas eternas querubinas assexuadas. Não tenho ideia de como, mas sei que é necessário. Talvez tivéssemos que perguntar a elas para ver o que têm a nos dizer. Mas cada vez que alguém tenta abordar esses temas, assim como a sexualidade infantil, aparece o anjo protetor da infância, essa invenção do capitalismo industrial ao lado da família nuclear, para nos calar com seu futurismo reprodutivo e já não se pode dialogar.

Volto a reler algumas páginas de Games of Crohn para debruçar-me sobre o termo “paciente”. Tenho arrepios quando este termo é explorado a tal ponto, que parece que o comportamento que se espera do corpo que experimenta algum tipo de enfermidade é algo que poderíamos definir como a máxima submissão antes de ser agredido fisicamente. Qual sua opinião sobre toda essa violência intrínseca invisibilizada e que aos olhos do não def pode parecer um delírio? Você poderia nos falar desta expropriação do corpo?

O dispositivo médico produz o corpo paciente, o objetifica, até a posição para examinar é ideal para a prática de auscultar e apalpar, mas não para o corpo que é tratado como paciente, do grego pathos, sofrer, que por sua vez deriva de patheuomai, ser penetrado analmente, ser infantilizado. Devemos fazer nossas entradas hospitalares com técnicas para repelir essas investidas que nos produzem como pacientes, isto é, acatadoras acríticas do poder médico. E se não podemos sós, coisa que perfeitamente pode acontecer, devemos preparar outras para que nos apoiem e acompanhem quando nós mesmas não podemos fazer. Se vamos nos empenhar para fazer alguém entender algo, que seja às amigas que nos levam até a plantonista, para que obriguem – como for – o pessoal médico a nos dar a morfina antes que caiamos desvanecidas no delírio da dor. Para as que estamos obrigadas a passar tempos internadas, temos que recordar que não estamos à disposição de quem pratica. Como a prisão, o hospital também é um espaço de luta, não um paraíso neutro.

Tendo chegado a este ponto de estigmatização do corpo “doente”, talvez tivéssemos que começar a nos preocupar por todos esses corpos que saíram prejudicados do sistema médico, econômico, político e social. Ocorre-me a fantasia, porque vejo isso como uma necessidade, de criar espaços que ajudem esses corpos “doentes”, não para saber gerir sua doença mas para restabelecer sua psique depois do dano e do grau de violência que passaram depois de se relacionar com o corpo saudável. Em seu caso, como você experimentou estas situações de violência? Neste processo de Crohn, o que mais lhe prejudicou: a doença ou a relação com o ser humano e como se relaciona com a doença?

Aonde você quer restabelecê-la? Tenho vontade de lhe dizer que nasci prejudicada. Mas, outra vez, supor o dano é supor que há algo perfeito e a verdade é que não há condições em estado selvagem. Somos operações de diagnóstico. As máquinas só funcionam se quebrando. Para mim o Crohn não é uma doença. Não sinto que me prejudique, ainda que, bom, indubitavelmente tenha alguns efeitos, mas isso significa que meu corpo vive dessa maneira, é a maneira de funcionar que ele tem. Abraço amorosamente meu destino, amor fati. E finalmente, o pior mal é viver no mundo, mas não meu corpo e o que está nele. O sutil equilíbrio entre não me deixar subjetivar vítima e confessar que me foi causado um dano. Não tenho solução mas sei me dar conta que a culpa não é do Crohn, e de fato ele me deu tanto que hoje eu já não poderia renunciar a ele. Ele me deu que estou sendo agora. E isso eu não mudaria.

Uma das singularidades deste livro foi o grau de verdade com que ele funciona, a omissão de filtros para não cair na diplomacia, apostar em um texto cru ainda que ofenda e doa. Parece que somos capazes de absorver índices desproporcionais de violência, imagens onde se derrama carne e sangue, praticar o desafeto com cada gesto opressivo. Mas por outro lado estamos nos tornando intolerantes com a palavra, com a mensagem de whatsapp que não levam emoticon de sorriso porque senão parece que está dando bronca… parece que não se pode dizer nada.

Como li Paco Vidarte, devolver ao mundo merda e peidos, cagar no pau, se vou viver com cólicas porque o mundo está como está, então todas vamos ter gastroenterocolite à noite. Eu me dedico a isso. Sinceramente, não há nada mais restaurador para mim que um bom e querido deboche. E a resposta da oprimida não é o mesmo que o deboche insider, que a violência ou o bullying do opressor. Jamais entregar uma imagem reconciliada ao público leitor. Se a literatura é um espelho onde se contemplar bonita, não faço literatura. Escrevo para incomodar quem está cômodo e para dar conforto a quem se incomoda com essa comodidade.

Se eu tivesse que tirar uma contraleitura de Games of Crohn, me atreveria a dizer a importância e a decepção que carrega a palavra e o significante amizade como fio condutor que move parte desta obra, a deserção como lugar para se cuidar e o saber dar até onde é possível sem que te diminuam. Por tudo isso, eu gostaria de lhe perguntar em que momento vital você se encontra em relação à amizade? Você considera que o Crohn é uma aliada para lhe ajudar nesta ação de fechar e abrir a alma para outros corpos?

No pior momento possível! E celebro isso, fiel a meu estilo, dançando a noite toda com aquilo que veio a mim. Sinceramente, já não me conto historinhas idealizadoras sobre isso. E me encontro mais forte que nunca na solidão, mais à vontade que nunca comigo mesma. Encontro-me aberta às surpresas, mas com cautela, administrando doses baixas mas intensas de sociabilidade, tudo o que pode ser retirado da comunidade terrível e envenenada. A vida passa em um peido, e não fizemos o que gostamos de fazer. Só nos juntamos para socializar. E isso para mim não é vida.

Bárbara G. F. Muriel:

Você acha possível tecer aliança a partir dos feminismos?

É possível e é fundamental voltar a construir um feminismo (ou como o queiramos chamar, que para mim dá na mesma como o chamemos) que saia dos esquemas capacitistas e humanos de se manifestar (muitas de nós não poderemos ir amanhã à passeata porque se tomamos chuva o sistema imunológico nos manda a conta, por exemplo). Continuo acreditando na figura incômoda, incorrigível, híbrida de ciborgue, transpassando com o corpo dimensões estanques e exercendo as políticas do devir. Quanto dos feminismos originais essas incômodas alianças ilegítimas terão, eu ignoro. Pelo momento onde vivo, o feminismo ainda não se deu conta que continuar demandando ao Estado Nazional uma lei de aborto legal no hospital com justificativas do tipo “gravíssimas malformações do feto” é um erro capacitista e uma reafirmação muito perigosa da biopolítica que patologiza processos como parir ou abortar, que nada têm a ver sequer com um quadro clínico: nem o hospital é especialmente melhor para nada que não seja uma doença, como abortar ou parir (de fato é um lugar perigoso, de judicialização e de violência para as mulheres) nem é necessário colocar justificativas eugenistas para reafirmar a autonomia corporal de interromper um processo biológico não desejado. Aqui – e provavelmente em lugar nenhum – o feminismo não se deu conta, nem quer se dar, que a ciência surge a partir do maior massacre feminicida da história deste planeta, que se chamou caça às bruxas, em cujas fogueiras se queimaram as revoltas camponesas e indígenas tanto da Idade Média europeia quanto nas regiões autóctones da chamada América Latina (nem nome próprio temos) e seus conhecimentos ancestrais. Ou que a obstetrícia, especificamente, tem uma genealogia de tortura até o inenarrável de mulheres africanas escravizadas por senhores cientistas brancos sádicos. Estes feminismos vivem sob o jugo do paradigma moderno da ilustração e a única oposição a isso é um bando de autogestionárias da ignorância que ou te responsabilizam por sua condição por você ter vivido de tal ou qual maneira ou querem reduzir o dano produzido por uma ELA com um chá de sei lá o quê. Por isso se canta “aborto legal no hospital”.

Mas voltando ao aborto, o simples desejo deveria bastar para que fosse feito como e onde se quisesse, sem perigo de ir presa. O feminismo deveria lutar para fazer a vida de todas, incluídas as malformações tipo o polegar opositor da macaca Lucy, vivíveis e não construir a ideia de que sob certas pautas, ou certas razões, abortar está bem. Em todo caso, deveríamos nascer só as que vamos ser consideradas “malformadas”, para ver se o capitalismo pode subsistir quando sejamos só nós, as que não podemos trabalhar dentro dele. Só proponho uma distopia tão ridícula como isso de que tem que haver uma justificativa para abortar ou que ter uma cria “malformada” (insisto com a palavra porque ficou na redação do projeto de lei apresentado pelo feminismo na Argentina sem que ninguém dissesse nada nas plenárias) é pior que outra coisa. Tal como vejo, ter prole é sempre uma fatalidade à qual deveríamos todas nos opor. Mas sou muito clássica. Este feminismo caiu em desuso.

Shukare Otero:

Games of Crohn é tanto o nome do seu livro como do documentário que você filmou junto com Mai Stansauger. Que aspectos narrativos, filosóficos, poéticos, etc., o formato audiovisual permitiu desenvolver e quais o formato escrito permitiu? Que relação houve entre ambos?

Não muita, para lhe ser honesta. Exceto que a capa do livro e o documentário estiveram a cargo de minha amiga Mai Stansauger. Mas não foi muito pensado. Não sei se há relação além estar unidos pela narrativa sobre uma condição e por suas fazedoras. O documentário, apesar de dialogar como viver com Crohn depois de estar internada, saiu antes. Ao contrário, o livro, que ia sendo escrito em tempo real, saiu depois.

A escrita é uma ferramenta para o processo de ressignificação e empoderamento, para extrair potências daquilo que poderia nos entristecer?

Para mim é, não sei se pode ser universalizável nem para todo mundo. Para mim, escrever é uma maneira de sobreviver, sempre foi. Escrever o gênero que for. Por isso é paradoxal, porque se minha potência de agir tivesse ficado completamente obturada não teria poderia tê-lo feito. Cada corpa deve encontrar sua máquina de guerra contra as paixões tristes.

O texto vai indo e vindo de uma linguagem mais íntima, mais informal, a mais poética, a mais filosófica. O que te leva a se mover entre estas linguagens a cada momento?

Suponho que sou assim… Em minha vida em geral também. Por um lado, adoro a linguagem coloquial que utilizo em minha cotidianidade, inclusive para falar de filosofia, mas, ao mesmo tempo, me interessa abordá-la a partir de seu jargão específico sem me perder da palavra poética que no final creio que é a que desautomatiza a percepção. Por isso os três registros, mas não é uma questão que busco, mas que me sai assim.

O que supõe fazer filosofia a partir dos acontecimentos íntimos, da própria experiência?

Parece-me que não há outra maneira de fazê-la, pelo menos para mim não interessa. Existe essa velha frase de Nietzsche que tanto amo, “de tudo o que se escreve, só me interessa aquilo que se escreve com o próprio sangue. Escreva com sangue e saberá que o sangue é espírito”. Por outro lado, me calhou ser uma pessoa que eu gosto de ser, me acho interessante e acho interessante o que me acontece. Portanto, não poderia ter escrito de outra forma. Nem consigo entender bem a diferença, certamente muito universitária e fora de moda, entre a experiência, o corpo, a filosofia e a ficção literária, como se uma coisa não estivesse imersa ou entrelaçada (ou grudada) com a outra.

Boa parte de sua terminologia vem de textos filosóficos. Você acredita a sua leitura é difícil para quem não costuma ler filosofia? É necessário ler Platão para entender por que você o acusa de todos os males, por exemplo?

Nunca é necessário ler Platão. Espinosa, Nietzsche, Foucault, Wittig ou Buttler, sim. Se são difíceis, e não me consta que sejam mais que outras coisas, então vai demorar mais tempo e terão que ser lidos mais vezes. Deve-se labutar, perseverar. Eventualmente se entendem, ainda que demore. As coisas levam um tempo. Ler e entender filosofia, vivê-la, torná-la carne, poder transmiti-la depois ou dialogar na filosofia sobre a filosofia também. Se é difícil ler-me, não é por causa da terminologia, mas porque me esforço para afetar inclusive virulentamente quem me lê, e muita gente não quer isso porque não entrego uma imagem reconciliadora sobre a vida. Creio que uma filosofia como Espinosa pode estar ao alcance de quem seja. É a alta cultura, à qual é dever se opor até que seja destruída, quem dita que coisas certas pessoas podem, sim, entender, e que coisas não. É uma mentira. Se leva tempo, pois demorará mais, como tantas outras coisas…

No livro você fala de políticas antirressentimento diante das pessoas que não podem se afetar como o corpo doente, que não sabem cuidar… É mais difícil gerir o ressentimento contra quem não cuida de nós quando necessitamos mais desses cuidados?

O ressentimento é sempre difícil de gerir. Como não viver para a vingança – o que me parece uma perda absoluta de vida – sem reterritorializar um cristãozão que oferece a outra face? Não faço ideia. Creio que quem não sabe cuidar, que não sabe se afetar com um corpo assim chamado doente o que requer cuidados se perde de muita coisa, e não sabe se reconhecer nessa mesma situação, que mais cedo ou mais tarde chegará. Sei que as pessoas que estiveram próximas quando estive internada saíram mais que enriquecidas da experiência. O dilema, já não filosófico mas feminista, é por que no interior do lar da família nuclear essa tarefa recai sobre as pessoas designadas à feminilidade e por amor. Mas esse não é um problema da condição, mas do sistema capitalista que criou a família nuclear, da heterossexualidade como regime político e do capitalismo, e que submeteu as mulheres na Baixa Idade Média a ser as provedoras de alimento para as infâncias expropriadas de suas potências, incapazes ambas de produzir sua própria economia, ambas as partes recluídas no interior do lar, sem laços com a comunidade.

No livro você fala da exigência social de ser jovem até bem entrados os 40. Neste contexto, é a deficiência, o não poder ser como se supõe que deve ser a jovem, uma oportunidade para explorar ritmos de vida mais pausados, uma via para fugir das lógicas do urgente?

É um devir anciã que eu gosto muito. Essa é uma de suas potências, e a velhice, apesar do que acreditam as pessoas subjetivadas nas bondades da inovação, do novo e do jovem, tem potências maravilhosas a se invocar. Uma delas é poder dizer o que dá vontade, sem vergonha nem medo; a outra é que te deixam em paz, literalmente, já que não te solicitam socialmente. E isso dá tempo para criar e viver. Permite não responder a demanda constante da ansiedade neurótica do habitante médio da metrópole imperial.

Até que ponto existe o perigo de contribuir para a romantização das corporalidades deficientes por serem não-normativas, como ocorre com certas identidades, sem que isso suponha uma afetação real para quem observa de fora (tanto o pornô inspiracional quanto mascotes dos movimentos “progressistas”)?

Vamos ter que correr esse risco, que está sempre presente e é feroz. Cansam-me essas atividades para defs sem defs ou onde as vozes de comando são vozes que vivem de, mas não são. Fazer falar o subalterno, ser uma amplificação, quando puder. Há muito proxenetismo encoberto, isto é, gente que vive do corpo de outra def. Talvez seja uma romantização, não sei, mas creio no potencial crítico daquelas corpas definidas como anormais mas que usaram esse limite restritivo para um fenômeno singular de borda, de desterritorialização. Deficiência não é uma identidade, é o nome de uma invocação afetativa, é uma forma de vida com outras de maneira crítica contra o regime da normalidade.

Em um mundo imerso em políticas de visibilidade, de ocupação da rua ou ocupação das instituições, que formas de visibilização ou que políticas que não dependam das lógicas de visibilização desenvolvem os corpos para os quais mover-se, falar, sair à rua, é problemático e frequentemente impossível?

Creio que ninguém tenha desenvolvido isso melhor que Johanna Hedva em sua Teoria da Mulher Doente, não só como formas do político para quem, por diferentes motivos, não podemos habitar o espaço público da política (por medo, deficiência, tempo). Também creio que em uma sociedade do espetáculo como a nossa, boa parte das vezes a manifestação, especialmente a pacífica, supõe um entretenimento. Não tenho nada contra se divertir, mas saibamos disso: nossa participação política dentro das formas da política clássica foi se reduzindo à seleção de bens de consumo ou a formas do ócio recreativo mais trivial. Creio que nossos corpos são em si mesmos uma forma de protesto contra o regime de normalidade que se nega a ficar mais complexo ou a se arriscar.

Ultimamente, por ser uma questão que está me tocando muito de perto, ando me perguntando se não nos prejudicam mais as pessoas que acreditam se afetar e na realidade fazem/exibem caridade com nossos corpos que aquelas que diretamente desaparecem ou tentam não se envolver. Essa Boa Consciência que se autoafirma sobre nós sem nós e nos subjetiva “pacientes” sempre agradecidas por suas migalhas. Às vezes que nos causa mais danos são as pessoas que creem estar ajudando, e sinto que aquilo que você escrevia em seu blogue sobre a “pedagogia do opressor” é também muito adequado para as pessoas que ao acreditar que toda atenção sua deve ser agradecida, esperam que o corpo paciente seja sempre dócil, suave e educado na hora de lhes dizer o que fazem mal. Como você lida com isso? A ideia de autonomia que a maioria – ou uma grande parte – do movimento feminista utiliza é concebida como não necessitar nem depender de outras pessoas, o que vem a reforçar uma visão muito capacitista do empoderamento. É possível ressignificar o conceito de autonomia como, por exemplo, a possibilidade de determinar ou escolher o que mais convém ao próprio corpo?

Eu não lido com isso, para ser honesta. Sou muito pouco hábil com o que chamamos de “relações”. Vivo muito retirada. Também não frequento muito esse grupo doutrinário que chamamos “movimento feminista”, porque seja isso o que for, se dedica majoritariamente à política como espaço público, mas não ao político que é o espaço do tecido de redes, quando não se dedica pura e simplesmente a policiar e a competir. Prefiro optar por estar fora, dizer que não e não participar mais que de canto. O que escolhi fazer com a vida, se faz melhor sem tanto tumulto. O Crohn me fez devir anciã precocemente e me parece que está muito bem. Retiro-me do mundo, vou um pouquinho à morte onde posso pensar sem tanto barulho e sociabilidade envenenada. Por outro lado, estou completamente de acordo com a sua leitura de autonomia. De fato, não só não sou autônoma como não creio que seja desejável o ser. Sinto-me interconectada a muitas existentes, não só pessoas, que dotam minha existência de sentido e me dão vida e me parece formidável existir em rede. Efetivamente, creio que você tem uma grande definição de autonomia como aquilo com que meu corpo combina e incrementa minhas potências. Uma ideia espinosiana da potência como experiência compartilhada.

Finalmente, eu tinha a curiosidade sobre a recepção que o livro teve desde que foi publicado. Games of Crohn começou como um diário-terapia para sobreviver à clínica e ao aparato médico e agora é um livro que circula internacionalmente. Que encontros ele gerou, que respostas teve, o que se produziu ao redor da divulgação deste livro?

O livro continua sendo uma maneira de viver para mim. Mas, sobretudo, uma maneira de tocar os ovários de mais de uma feminista convencional e ortodoxa e suas boas maneiras, seja dentro do queer ou do essencialismo. Mutantes y Orgullosas, nome de nossa nova produção audiovisual. A revolução, como já disse, é das frágeis – isto é, das poderosas – ou não é.

Eva Vica:

No capítulo intitulado “Feministas enemigas de putas y enanos” (“Feministas inimigas de putas e anões”) você faz referência às feministas que se escandalizam por haver pessoas que fazem sexo com aleijades em troca de dinheiro. Qual sua opinião sobre a existência de formas de trabalho sexual especializadas nesta área como, por exemplo, xs assistentes sexuais?

Acho que a assistência sexual é uma especialização dentro do trabalho sexual, como as dominadoras, ou as “passivonas”, ou as “girlfriend experience”. Estou total e completamente a favor do trabalho sexual, em qualquer de suas variantes. Se bem que eu gostaria de viver em um mundo onde ninguém tivesse que pagar por nada, me parece que as mulheres – lato sensu – termos que continuar oferecendo certas tarefas de cuidado, atenção, limpeza, procriação, suporte afetivo e sentimental e amizade por nada mais que “amor” é um dos maiores erros políticos do feminismo da igualdade, junto da luta para que as mulheres consigamos nos equiparar à masculinidade hegemônica que produz militares e policiais. Cada vez que uma de nós se torna parte das forças repressivas de segurança, o feminismo morre um pouco. Só uma pessoa delirante, demente e desequilibrada pelo capitalismo pode achar que a igualdade é ser militar e não puta. Oxalá o abolicionismo pusesse toda a força que coloca em tentar proibir que as trabalhadoras sexuais façam/façamos o que queremos com nossas corpas em subtrair as subjetividades das solidariedades microfascistas. Por outro lado, supor que não deveria existir o sexo pago para clientes defs é um dos conceitos mais capacitistas jamais criados: como se trepar com defs por dinheiro fosse ainda pior que trepar com supostos não-defs por dinheiro ou gratis, como se a questão da deficiência, mais que um kink ou uma especialização, fosse uma tragédia que ninguém, a menos que seja muito, muito pobre, faria. Lamentavelmente, quando se fala da função social dos serviços sexuais e se usa o exemplo dos benefícios prestados ao coletivo def sempre surge o capacitismo que crê que não há dinheiro que pague a asquerosidade de trepar com uma pessoa def. Se soubessem. Se soubessem as vantagens, talvez se voltassem à especialização def para prestar serviços para o coletivo de deficiência ou arrumariam amantes defs. Esta postura me faz lembrar das pró-saco gestacional antiaborto, que falam de bebê para se referir a embriões, mas depois pedem mão dura, pena de morte e redução da maioridade penal uma vez que o “bebê” não foi abortado. Eu prefiro pensar nisso como uma aliança política e um agenciamento empoderante onde vários mundos geram um mecanismo para sobreviver e se apoiar mutuamente. Valorizo isso infinitamente.

Por que você acha que o trabalho sexual exercido de forma livre e autônoma é algo que, em geral, incomoda tanto?

Por motivos similares aos que torna incômoda uma pessoa que convive com uma condição incurável, permanente, degenerativa, dolorosa, dolorosa e, no entanto, vive bem: somos a demonstração empírica de que a vida normal não está tão boa e não é desejável; somos aquelas que em boa medida o sistema não pôde cooptar com seus discursos de vitimismo, patetismo, autopiedade, miséria e tristeza que sustenta o setor que acredita em sua normalidade como o reino deste mundo. Pois não, ser normal e sã não é a grande coisa. Não só dizemos isso, como também demonstramos empiricamente.

Shukare:

Com as perguntas sobre a especialização em diversidade funcional dentro do trabalho sexual me vinha à cabeça a ideia de que há corpas defs não só consumindo como fornecendo serviços sexuais. Há possibilidade das pessoas com deficiência trabalharem na indústria do sexo?

Claro que há! Muitas pessoas cujas corporalidades são lidas dentro do paradigma da deficiência são atores e atrizes pornôs e também são fornecedoras de serviços. Há muito kink dentro do pornô, seja industrial ou não, e do trabalho sexual. Acho muito acertado que você tenha trazido isso à discussão. Games of Crohn – Diario de una Internación está dedicado às pessoas coprófagas, por exemplo, porque com elas as diarreicas e ostomizadas compartilhamos o paraíso perverso e escatológico.

GynePunk, as bruxas ciborgues da ginecologia DIY

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Ewen Chardronnet no MAKERY/media for labs em 30 de junho de 2015

O coletivo catalão GynePunk quer descolonizar o corpo feminino. Com este objetivo, está desenvolvendo instrumentos de primeiros socorros ginecológicos, para mulheres socialmente desfavorecidas, refugiadas, trabalhadoras sexuais. Mas também para elas mesmas.

Localizada nas colinas a oeste de Barcelona, a comunidade de Calafou onde o coletivo GynePunk surgiu se autodefine como uma “colônia ecoindustrial pós-capitalista”. Seu ambiente não tem nada de idílico – o rio está contaminado, a velha usina hidrelétrica gera campos elétricos que afetam a vida diária. No entanto, algumas pessoas se cotizaram para comprar estes 28.000 metros quadrados e criar 27 apartamentos. A vida em Calafou é uma cooperativa, com diversos espaços comuns, um estúdio de marcenaria, uma fundição e um hackerspace ocupado pelo biolaboratório Pechblenda.

Dildomancia

Pechblenda é parte da rede internacional de biologia DIY de código aberto Hackteria. Segundo Paula Pin, a quem encontramos em Nantes durante sua residência 0.camp no fablab de Ping e da Plateforme C: “Decidimos nos instalar em Calafou em 2013, porque acreditávamos que tínhamos que viver juntas em cooperativa para colocar nossas ideias em prática. Trabalhar com fluidos em geral era nosso objetivo principal, da análise da água do rio à análise de nossos fluidos corporais. Uma vez instaladas em Calafou, iniciamos um grupo de sexologia espontâneo”. Ainda que as mulheres já estivessem trabalhando com temas relacionados ao chauvinismo masculino, as “anarcofeministas e transhackfeministas” não se concentravam “o suficiente” no corpo.

Como podemos dar uma forma mais orgânica aos brinquedos sexuais, que sejam mais educativos?” continua Paula. “Também queríamos seguir as ideias de Annie Sprinkle e Beth Stephens, que com seu movimento ecossexual defendem a desgenitalização da sexualidade”. Seu movimento também é parte do movimento pós-pornografia, que é muito forte na Espanha e promove uma visão diferente da sexualidade e da pornografia mainstream, que atualmente enfatiza exclusivamente relações sexuais genitais.

Também demos oficinas sobre ‘dildomancia’, demonstrando como fazer lubrificantes naturais e tratar problemas vaginais com plantas. Klau Kinky, que começou a documentar este trabalho, veio então com o conceito de GynePunk”.

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Anarcha, Betsey, Lucy y outras chicas del montón

Klau Kinky estava explorando a questão da descolonização do corpo feminino. Enquanto pesquisava a sexologia, ela se deparou com os nomes dos ginecologistas americanos do século XIX J. Marionn Sims e Alexander Skene. O primeiro inventou o espéculo, e o último deu seu nome às glândulas de skene, análogas à próstata masculina e associada à ejaculação feminina.

Esses pais da ginecologia moderna praticaram suas pesquisas ginecológicas em escravas das plantations, sem anestesia. De 1844 a 1849, Sims fez experimentos em três escravas no Alabama – Anarcha, Betsey e Lucy – que sofriam de fístulas. Anarcha foi operada 30 vezes sem anestesia. Foi só depois do sucesso destas cirurgias que ele começou a operar mulheres brancas, desta vez com anestesia. Essas experiências, consideradas um passo em direção à cirurgia vaginal moderna, permitiram a Sims projetar instrumentos médicos, inclusive o espéculo.

Klau, então, decidiu dedicar seu projeto a “Anarcha, Betsey, Lucy y outras chicas del montón”, em referência a um dos primeiros filmes de Pedro Almodóvar, Pepi, Luci, Bom y outras chicas del montón (1980). Ela também rebatizou a glândula de skene e as glândulas de Bartholin como glândula de Anarcha e glândulas de Lucy e Betsey, em homenagem às escravas que foram vítimas das experiências de Sims.

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↑ Centrífuga GynePunk para análise de fluidos corporais

O kit ginecológico de emergência

Mas Klau e o GynePunk não pararam por aí. Para uma oficina no Hangar em Barcelona, elas desenvolveram uma caixa biolaboratório de emergência. O objetivo era reunir ferramentas de biohacking DIY para analisar fluidos corporais: sangue, urina, fluidos vaginais. Ajudado pela rede Hackteria, o GynePunk desenvolveu três ferramentas: uma centrífuga, um microscópio e uma estufa. A centrífuga separa os sólidos dos líquidos, e decanta o conteúdo para exame no microscópio. O microscópio, uma ferramenta útil para a citologia (o estudo da morfologia da célula) e a histologia (morfologia dos tecidos), é usado para identificar infecção urinária e outras infecções genitais por fungos. E, finalmente, a estufa desenvolve as bactérias em uma placa de petri, nutrindo-as para revelar sua presença.

O objetivo do GynePunk é desenvolver um kit de ferramentas para medicina ginecológica de emergência, algo como a redução de riscos para usuários de drogas. O kit pode ser útil para imigrantes sem cobertura de saúde, para campos de refugiados, mas também para trabalhadoras sexuais, organizadas ou não.

Mas o kit também é útil para as próprias integrantes do GynePunk. Em Calafou há um grupo de saúde que busca alternativas que ajudam a evitar consultas médicas para quem não tem dinheiro ou assistência médica apropriada. É também uma militância pela medicina alternativa, conhecimento ancestral, medicina chinesa, bruxaria e receitas da vovó… “Somos bruxas ciborgues!” diz Paula. “Nós queremos atualizar o conhecimento ancestral com o uso independente da tecnologia”.

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↑ Microscópio DIY em homenagem a Mary Ward, uma especialista em microscópios do séc.XIX

Espéculo 3D

O Gynepunk também inspira a rede Hackteria com sua vontade de democratizar e “libertar” os instrumentos e protocolos usados na obstetrícia e na ginecologia para permitir diagnósticos de baixo custo. Urs Gaudenz, membro da Hackteria e do Gaudi Labs da Suíça, desenvolveu recentemente um espéculo para impressoras 3D (disponível no Thingiverse) e desenvolve ferramentas genéricas usando elementos reapropriados de produtos de consumo amplamente disponíveis (motor de DVD player, discos rígidos, ventoinhas de computadores) ou projetos abertos para fabricação digital. Outros projetos e protótipos exploram o campo performativo corporal pós-pornô, como os dispositivos de código aberto para microfluidos “OpenDrop” e sensores de osciladores de cristal, como o “Wild OpenQCM”, que combina dois cristais de quartzo com um circuito de theremin para transformar o bio-sensor openQCM em um instrumento de BodyNoise para performance de som.

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↑ O espéculo para impressoras 3D do Gaudi Labs

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A Teoria da Mulher Doente

Na tarde do domingo passado, o staff do hotel subia a Rua Augusta na manifestação contra o golpe convocada pelas mulheres. Observando as pessoas que das janelas dos prédios acenavam para nós com bandeiras e panos vermelhos, ChaosTotal comentou: “moram aqui do lado, por que não vêm pra rua também?”. Respondemos que muita gente, por mais vontade que tivesse, não podia estar ali caminhando conosco, por vários motivos. Johanna Hedva nos explica melhor isso e muitas outras coisas importantes.

[como de costume, a tradução foi feita pelas macacas idosas durante as atividades antidemência no asilo do Puerco Suíno. Está imperfeita, cheia de erros, por isso pode e deve ser melhorada por quem se dispuser].

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A TEORIA DA MULHER DOENTE

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Johanna Hedva vive com uma doença crônica e sua Teoria da Mulher Doente é para todas aquelas que nunca imaginaram sobreviver, mas sobreviveram.

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No final de 2014 eu estava num surto de uma patologia crônica que, entre cada 12 ou 18 meses, torna-se tão forte que me deixa sem poder caminhar, dirigir, fazer meu trabalho, às vezes falar ou entender o que falam, tomar banho sem ajuda e sair da cama, por cinco meses a cada episódio. Naquela vez, coincidiu com os protestos de Black Lives Matter, aos quais eu teria ido sem pensar, se pudesse. Vivo a uma quadra do parque MacArthur em Los Angeles, um bairro predominantemente latino e popularmente conhecido como um lugar onde muitos imigrantes começam sua vida nos Estados Unidos. Portanto, não surpreende que o parque seja um dos mais ativos locais de protesto na cidade.

Ouvi os sons da manifestação se aproximando de minha janela. Grudada a minha cama, ergui meu punho de mulher doente em solidariedade.

Comecei a pensar sobre as formas de protesto permitidas às pessoas doentes – me pareceu que muitas das pessoas às quais Black Lives Matter se destina não podem, talvez, estar presentes nas manifestações porque estão presas a um trabalho, pelo risco de demissão se forem às manifestações, por estarem literalmente presas, e, claro, pela ameaça da violência e brutalidade policial… mas também por doença ou deficiência, ou por cuidarem de alguém com uma doença ou deficiência. Continue reading

Viviana Díaz: a voz do Línea Aborto Libre

texto de Sentidos Comunes/ fotos de Josefina Astorga/11 de junho de 2014

Ela é médica, feminista e lésbica, e uma das fundadoras da Línea Aborto Libre (“Linha Aborto Livre”), uma página na internet para orientar mulheres com intenção de interromper suas gravidezes com comprimidos. Hoje elas já têm três processos arquivados, movidos por movimentos religiosos, e sabem que seus telefones estão grampeados, mas seguem adiante porque dizem que “o aborto é a ponta do iceberg de todas as violências do sistema”. Aqui, a visão de uma mulher que ajuda outras mulheres.

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O que é a Línea Aborto Libre?

Somos um coletivo de lésbicas e feministas. Nossa aspiração é que haja uma rede de colaboradores que façam um trabalho em torno do aborto. O que fazemos é atender um telefone onde damos informação sobre o procedimento do aborto, já que no Chile não há lugares onde obter informação de como usar os comprimidos nem em que dose. Essa é a informação que damos. Não dizemos onde conseguir o medicamento. Somente atendemos as mulheres e conversamos sobre o porquê de estarem nesta situação e tentamos fazer que sejam nossas aliadas. Também incentivamos as mulheres a fazer uso de seus direitos na hora de se dirigir a um serviço de urgência.

É sobretudo uma provocação, e que funcionou, já que até agora temos três processos de grupos ultraconservadores, principalmente evangélicos, que tentaram criminalizar nosso trabalho com a figura de “associação ilícita” e, agora por último, de exercício ilegal da profissão. Nenhum chegou até o final mas incomoda um pouco. Também fazemos oficinas, principalmente em organizações de base, em universidades, em comunidades, centros de mulheres e onde nos chamarem.

Quantas são?

Umas sete em Santiago, com mais três colaboradoras que nos dão apoio em serviços de telefonistas e outras coisas, e em Iquique são ao redor de cinco. Nos revezamos para responder as ligações, quatro horas durante a semana, das 7 às 11 da noite, de segunda a sexta. Estamos implementando para este ano (2014) um serviço de resposta telefônica automatizada 24 horas como alternativa. De qualquer forma, queremos continuar respondendo as ligações, porque nos interessa esse contato com a mulher.

Como é a mulher que liga?

É uma mulher que já decidiu abortar, não pede conselhos. Tende a primeiro justificar sua ligação, mas não busca informação sobre o que fazer e geralmente quer informação de como conseguir o medicamento ou de como usá-lo, ou já o usaram e têm dúvidas se funcionou ou não. São de todas as idades e muitas já têm filhos. Não creditamos que as mulheres que ligam sejam do estrato social mais baixo. O número é difundido através das redes que podemos gerar. Geramos um manual de como fazer um aborto com comprimidos que é um texto impresso que vendemos para nos autogerir, mas que também distribuímos em bibliotecas comunitárias e incentivamos que seja reproduzido, também pode ser baixado em PDF a partir de nossa página da internet e também há um áudio para ser baixado.

O que vocês dizem a ela?

Durante a ligação temos tudo super dentro das normas porque temos o telefone grampeado e esses processos em cima. O protocolo da resposta telefônica foi revisado por algumas advogadas que nos assessoram, então é bem impessoal. Nós repetimos o procedimento, como se faz, quais são as contraindicações, etc.

Qual é o procedimento?

Para uma gravidez de até 12 semanas é com 12 comprimidos de Misoprostol que são usados debaixo da língua. Começa com quatro debaixo da língua, depois de três horas outros quatro e depois de três horas mais outros quatro. Esse é o procedimento recomendado pela OMS. Também há outros casos nos quais não se pode usar este medicamento, como gravidezes múltiplas, mas para a norma geral em uma gravidez intrauterina de até 12 semanas esse é o procedimento. É debaixo da língua, e não intravaginal como se costuma pensar, porque debaixo da língua a dose alcança uma maior concentração do medicamento em cerca de 30 minutos. A absorção é mais rápida e é mais segura, e na hora de ir a um serviço de urgência não há como detectar e isso é importante porque as mulheres somos interrogadas e abusadas.

Se não se dissolvem depois de meia hora podem ser engolidos, mas com 30 minutos já se absorveu o suficiente. O sangramento pode começar imediatamente depois da primeira dose ou até depois da última. Se teve início rápido, recomendamos que se complete o processo porque o aborto pode ser incompleto e isso implica ter que ir ao pronto-socorro e esse tipo de coisas. O sangramento é similar a uma menstruação mas mais intenso, com a mesma cor, dor, cheiro e características. O procedimento completo dura entre 8 e 10 horas, e passado esse tempo a mulher não deve mais ter dor nem sangramento constante, mas pode haver sangramento por gotejamento por três semanas. A mulher pode ficar grávida imediatamente depois e deveria continuar com seus anticoncepcionais. Nós recomendamos o sexo não heterossexual, que é o melhor método anticoncepcional e convidamos as mulheres a questionar a heterossexualidade e suas práticas.

Por que para vocês o feminismo lésbico está tão ligado ao aborto?

Nós somos lésbicas feministas e se trabalhamos com o tema do aborto é porque neste momento no Chile o aborto é a ponta do iceberg de todas as violências do sistema. Aí se concentra o classismo, porque só têm acesso ao aborto as mulheres ricas, o racismo, porque o acesso tem a ver com o tema raça, a misoginia, por toda a violência que não há por quê enumerar aqui. E também a proibição do aborto é uma herança direta da ditadura, o último trabalho da ditadura e isso tinha sobretudo um sentido moral, segundo o qual o corpo das mulheres tem dono.

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Quem é o dono do corpo da mulher?

Qualquer um, menos nós mesmas. A Igreja e o Estado dividem o poder. A proibição do aborto não se justifica de nenhuma outra maneira que não seja pela moral e há toneladas de evidências de que a proibição do aborto como medida de saúde pública não serve para nada. O Chile tem uma enorme taxa de gravidez adolescente que nunca se conseguiu diminuir. A proibição do aborto não afetou isso. A mortalidade materna é superbaixa, similar à dos países europeus, mas dessas mulheres que morrem, que são muito poucas, há uma porcentagem que morre por abortos mal feitos e ainda que morra apenas uma por esta razão, é inaceitável.

Como as mulheres estão abortando hoje no Chile?

Depende de quanto dinheiro elas têm. A dose completa de Misoprostol no mercado ilegal custa por volta de 120 ou 150 mil pesos1. Há mulheres que não conseguem da primeira vez, então devem contar com dinheiro. As mulheres que podem viajar podem ter acesso a abortos em clínicas. Sabemos que existe o aborto em algumas clínicas privadas do Chile mas não há informação oficial sobre isso e não é nosso público-alvo. Uma mulher que quer abortar no Chile o faz como pode e aí está o risco. Há pouco uma garota estava a ponto de morrer no Hospital Cordillera e eu não sei o que ela pode ter feito. Uma vez ligou uma garota que estava sangrando e o senhor que lhe vendeu os comprimidos lhe disse que ia sangrar durante 3 dias e, se não tivesse me ligado, sabe-se lá como terminaria. As mulheres abortam clandestinamente, sozinhas ou acompanhadas pelas amigas, mas com um peso social muito grande em cima. Abortam de maneira muito violenta porque há a sensação de fazer algo proibido.

Vocês defendem o aborto somente até a 12ª semana?

Nós defendemos o aborto livre. Damos informação de aborto até as 12 semanas considerando a pressão social que temos em cima. Alguns centros dão informação de aborto até a 19ª semana, mas o problema tem a ver com a possibilidade de uma hemorragia, à medida que o feto é maior, é maior a possibilidade de ter uma hemorragia grave e essa é a restrição.

O que você acha do projeto de lei que está em discussão neste momento?

Acho conservador. Nos preocupa que haja esta despenalização com condicionantes muito pontuais porque isso implica que o aborto siga sendo um delito. A decisão autônoma de que a mulher decida sobre seu próprio corpo segue sendo penalizada. Isso nos preocupa pelo que implica simbolicamente. Isso é violência de gênero. Há coisas pontuais a respeito da lei, como isso de jogar sempre a decisão para outro. Por exemplo, se te estupram, o sistema para denunciar um estupro é terrível e se uma mulher é estuprada pelo namorado ou pelo marido, essa mulher não vai ter acesso ao aborto segundo essas cláusulas. Quando existia o aborto terapêutico no Chile também não eram todas as mulheres que tinham acesso porque dependia da opinião de dois médicos. Eu não tenho muita esperança se o reitor da PUC sair dizendo que eles não vão fazer isso. Se está nas mãos deles, muito poucas mulheres vão abortar e as que o fizerem vão passar por processos muito violentos.

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Qual a sua opinião sobre a objeção de consciência2?

Pontualmente, neste caso me parece que é somente uma mostra de misoginia. Quando fiz minha residência de ginecologia vi muitas coisas nojentas, sem contar que é um ambiente muito masculino onde você entra como uma mulher, um ser disponível, e isso desde que você é estudante. A maneira como eles interpretam a dor das mulheres é muito subjetiva e muito violenta.

O que teria que acontecer para que as mulheres possam decidir no futuro?

Que ocorresse uma despatriarcalização. Desmontar o patriarcado, mas isso implica muito mais que a despenalização do aborto. Por isso nós defendemos o aborto livre e um aborto feminista, porque sabemos que se hoje não houver uma mudança cultural e de mentalidade e um questionamento das estruturas que permitem que haja ginecologistas que se dão ao luxo de dizer que têm objeção de consciência, vai ficar no papel e nada mais. Como na Espanha, onde há um avanço e depois muda o governo por um de direita e se retrocede. As mulheres devemos sentir que é um direito, e não somente das mulheres, porque no fim é uma coisa todos.

No Uruguai, por exemplo, as entidades de classe e os partidos dos trabalhadores se fizeram parte da luta pela despenalização do aborto porque também era parte de suas demandas que as mulheres pudessem decidir. Há pouco eu soube de um caso de uma garota que teve um aborto espontâneo e trabalha em uma clínica de caráter religioso, e eles sabiam que estava grávida e agora a estão assediando moral e profissionalmente porque há a dúvida de se ela provocou o aborto.

Notas —————————————————

1Entre 210 e 240 dólares (março/2015)

2Referem-se aqui ao suposto direito que teriam os médicos, em uma situação em que o aborto estivesse despenalizado, de se recusarem a realizar o procedimento alegando questões de foro íntimo.

Entrevista: Silvia Federici e a Caça às Bruxas

por Maite Garrido Courel [via Lobo Suelto!]

Há alguns séculos ela teria sido queimada na fogueira. Feminista incansável, a historiadora e autora de um dos livros mais baixados da rede, “Caliban e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva”, fala com Números Rojos e expõe de forma rigorosa as razões políticas e econômicas que se ocultaram por trás da caça às bruxas. Seu último livro, “Revolução em ponto zero”, é uma recopilação de artigos imprescindível para conhecer sua trajetória intelectual.

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Com olhar inquiridor, a italiana Silvia Federici está há mais de 30 anos estudando os acontecimentos históricos que deram lugar à exploração social e econômica das mulheres. Em seu livro “Calibã e a bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva” (Tinta Limón ediciones, 2010), fixa sua mira na violenta transição do feudalismo ao capitalismo, onde se forjou a fogo a divisão sexual do trabalho e onde as cinzas das fogueiras cobriram de ignorância e falsidades um capítulo essencial da História. Federici fala com Números Rojos de seu escritório no departamento de História da Hofstra University de Nova Iorque sobre bruxas, sexualidade e capitalismo e propõe “reviver entre as jovens gerações a memória de uma longa história de resistência que hoje corre o risco de ser apagada”.

Como é possível que a matança sistemática de mulheres não tenha sido abordada mais que como um capítulo curioso nos livros de História? Nem sequer me recordo que tenha sido dado na escola

Este é um bom exemplo de como a História é escrita pelos vencedores. Em meados do século XVIII, quando o poder da classe capitalista se consolidou e a resistência em grande parte foi derrotada, os historiadores começaram a estudar a caça às bruxas como um simples exemplo de superstições rurais e religiosas. Como resultado disso, até não muito tempo atrás, poucos foram os que pesquisaram seriamente os motivos que se escondem por trás da perseguição às “bruxas” e sua correlação com a instauração de um novo modelo econômico. Como exponho em “Calibã e a bruxa”, dois séculos de execuções e torturas que condenaram milhares de mulheres a uma morte atroz foram liquidados pela História como produto da ignorância ou de algo pertencente ao folclore. Uma indiferença que ronda a cumplicidade, já que a eliminação das bruxas das páginas da história contribuiu para trivializar sua eliminação física na fogueira. Foi o Movimento de Libertação das Mulheres dos anos 70 que reavivou o interesse pela caça às bruxas. As feministas se deram conta de que se tratava de um fenômeno muito importante, que havia dado forma à posição das mulheres nos séculos seguintes, e se identificaram com o destino das “bruxas” como mulheres que foram perseguidas por resistir ao poder da Igreja e do Estado. Esperemos que, sim, ensinem às novas gerações de estudantes a importância desta perseguição.

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Há algo, também, que inquieta profundamente, e é o fato de que, salvo o caso dos pescadores bascos de Lapurdi, os familiares das supostas bruxas não se levantaram em armas em sua defesa, depois de haver lutado juntos nos levantes camponeses.

Desafortunadamente, a maioria dos documentos que temos sobre a caça às bruxas foram escritos por aqueles que ostentavam o poder: os inquisidores, os magistrados, os demonólogos. Isto significa que pode haver exemplos de solidariedade que não tenham sido registrados. Mas devemos ter em conta que era muito perigoso para os familiares das mulheres acusadas de bruxaria que fossem associados a elas e mais ainda se levantar em sua defesa. De fato, a maioria dos homens que foram acusados e condenados por bruxaria eram parentes das mulheres suspeitas. Isto, é claro, não minimiza as consequências do medo e da misoginia que a própria caça às bruxas produziu, já que propagou uma imagem horrível das mulheres, as convertendo em assassinas de crianças, servas do demônio, destruidoras de homens, que os seduziam e os tornavam impotentes ao mesmo tempo.

Você expõe duas consequências claras no que se refere à caça às bruxas: que é um elemento funcional do capitalismo e que supõe o nascimento da mulher submissa e domesticada.

A caça às bruxas, assim como o tráfico de escravos e a conquista da América, foi um elemento imprescindível para instaurar o sistema capitalista moderno, já que mudou de uma maneira decisiva as relações sociais e os fundamentos da reprodução social, começando pelas relações entre mulheres e homens e mulheres e Estado. Em primeiro lugar, a caça às bruxas debilitou a resistência da população às transformações que acompanharam o surgimento do capitalismo na Europa: a destruição da posse comunal da terra; o empobrecimento massivo e a inanição e a criação na população do proletariado sem terra, começando pelas mulheres mais velhas que, ao não possuir uma terra para cultivar, dependiam de uma ajuda estatal para subsistir. Também se ampliou o controle do Estado sobre o corpo das mulheres, ao criminalizar o controle que estas exerciam sobre sua capacidade reprodutiva e sua sexualidade (as parteiras e as anciãs foram as primeiras suspeitas). O resultado da caça às bruxas na Europa foi um novo modelo de feminilidade e uma nova concepção da posição social das mulheres, que desvalorizou seu trabalho como atividade econômica independente (processo que já havia começado gradualmente) e as colocou em uma posição subordinada aos homens. Este é o principal requisito para a reorganização do trabalho reprodutivo que exige o sistema capitalista.

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Você fala do controle dos corpos: se na Idade Média as mulheres exerciam um controle indiscutível sobre o parto, na transição ao capitalismo “os úteros se transformaram em território político controlados pelos homens e o Estado”.

Não há dúvida que com o advento do capitalismo começamos a ver um controle muito mais estrito por parte do Estado sobre o corpo das mulheres, levado a cabo não só através da caça às bruxas, mas também através da introdução de novas formas de vigilância da gravidez e da maternidade, e a instituição da pena capital contra o infanticídio (quando o bebê nascia morto ou morria durante o parto, se culpava e se executava a mãe). Em meu trabalho sustento que estas novas políticas, e em geral a destruição do controle que as mulheres na Idade Média haviam exercido sobre a reprodução, se associam com a nova concepção que o capitalismo promoveu do trabalho. Quando o trabalho se converte na principal fonte de riqueza, o controle sobre os corpos das mulheres adquire um novo significado; estes mesmos corpos são então vistos como máquinas para a produção de força de trabalho. Creio que este tipo de política é ainda muito importante hoje em dia porque o trabalho, a força de trabalho, segue sendo crucial para a acumulação do capital. Isto não quer dizer que em todo o mundo os patrões queiram ter mais trabalhadores mas, sem dúvida, querem controlar a produção da força de trabalho: querem decidir quantos trabalhadores estão produzindo e em que condições.

Na Espanha o Ministro da Justiça quer reformar a lei do aborto, excluindo os casos de malformação do feto, justo quando a assistência social do governo desapareceu.

Nos Estados Unidos também estão tentando introduzir leis que penalizem gravemente as mulheres e limitem sua capacidade de escolher se desejam ou não ter filhos. Por exemplo, vários estados estão introduzindo leis que fazem que a mulher seja responsável pelo que acontece ao feto durante a gravidez. Houve um caso polêmico de uma mulher a quem acusaram de assassinato porque seu filho nasceu morto e depois se descobriu que havia usado algumas drogas. Os médicos excluíram o consumo de cocaína como causa da morte do feto, mas foi em vão, a acusação seguiu seu curso. O controle da capacidade reprodutiva das mulheres é também um meio de controlar a sexualidade das mulheres e seu comportamento em geral.

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Você mesma coloca: por que Marx não se questionou sobre a procriação como uma atividade social determinada por interesses políticos?

Esta não é uma pergunta fácil de responder, já que hoje nos parece evidente que a procriação e a criação dos filhos são momentos cruciais na produção de força de trabalho e não por casualidade foram objeto de uma regulação muito dura por parte do Estado. Creio, no entanto, que Marx não podia se dar o luxo de ver a procriação como um momento da produção capitalista porque se identificava com a industrialização, com as máquinas e a indústria em grande escala, e a procriação, como o trabalho doméstico, parecia ser o oposto da atividade industrial. Que o corpo da mulher se mecanizasse e se convertesse em uma máquina para a produção da força de trabalho é algo que Marx não podia reconhecer. Hoje em dia, nos Estados Unidos pelo menos, o parto também se mecanizou. Em alguns hospitais, obviamente não os dos ricos, as mulheres dão à luz em uma linha de montagem, com certo tempo determinado para cada parto, se excedem esse tempo, é feita uma cesariana.

A sexualidade é outro tema que você aborda a partir de um ponto de vista ideológico, sendo a igreja quem promoveu com grande virulência um férreo controle e criminalização. Era tão forte o poder que conferia às mulheres que continua essa tentativa de controle?

Creio que a Igreja se opôs à sexualidade (ainda que sempre a praticaram à escondidas) porque tem medo do poder que exerce na vida das pessoas. É importante recordar que ao longo da Idade Média a Igreja também esteve envolvida na luta para erradicar o casamento dos sacerdotes, que via como uma ameaça para a conservação de seu patrimônio. Em todo caso, o ataque da Igreja sobre a sexualidade sempre foi um ataque às mulheres. A Igreja teme as mulheres e tratou de nos humilhar de todas as maneiras possíveis, nos retratando como o pecado original e a causa da perversão nos homens, nos obrigam a esconder nossos corpos como se estivessem contaminados. Enquanto isso, tratou-se de usurpar o poder das mulheres, apresentando o clero como doadores de vida e inclusive adotando a saia como vestimenta.

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Em uma entrevista você afirma que continua tendo lugar uma caça às bruxas. Quem são os hereges agora?

Tem havido caça às bruxas desde há vários anos em diferentes países africanos, assim como na Índia, Nepal, Papua Nova Guiné. Milhares de mulheres foram assassinadas desta maneira, acusadas de bruxaria. E está claro que, como nos séculos XVI e XVII, esta nova caça às bruxas se conecta com a extensão das relações capitalistas em todo o mundo. É muito conveniente ter camponeses lutando uns contra os outros enquanto que em muitas partes do mundo estamos vivendo um novo processo de cercamento, com a privatização da terra e um grande saque aos meios básicos de subsistência. Também há provas de que parte da responsabilidade dessa nova caça às bruxas, que por sua vez é dirigida especialmente às mulheres mais velhas, deve ser atribuída ao trabalho das seitas cristãs fundamentalistas, como o movimento pentecostal, que trouxeram de novo ao discurso religioso o tema do diabo, aumentando o clima de suspeitas e o medo já existente gerado pela dramática deterioração das condições econômicas.

Omnia sunt communia!, tudo é comum, foi o grito dos anabatistas cuja luta e derrota, como você conta no livro, foi varrida pela História. Esse grito continua sendo subversivo?

Certamente é, já que estamos vivendo numa época onde “sunt omnia privata”. Se as tendências atuais continuam, logo não haverá calçadas, nem praias, nem mares, nem águas costeiras, nem terra, nem florestas, nos quais possamos entrar sem ter que pagar algum dinheiro. Na Itália alguns municípios estão tentando aprovar leis que proíbem as pessoas de colocar suas toalhas nas poucas praias livres que restam e isto é só um pequeno exemplo. Na África, estamos sendo testemunhas das maiores apropriações de terras da história do continente por parte de empresas mineradoras, agroindustriais, agrocombustíveis A terra africana está sendo privatizada e as pessoas estão sendo expropriadas a um ritmo que coincide com o da época colonial. O conhecimento e a educação estão se convertendo em mercadorias disponíveis só para aqueles que podem pagar e inclusive nossos próprios corpos estão sendo patenteados. Assim que “omnia sunt communia” continua sendo uma ideia radical, ainda que se deva ter o cuidado de não aceitar a forma distorcida como está sendo usado esse ideal, por exemplo, por organizações como o Banco Mundial, que em nome da preservação da “comunidade global” privatiza as terras e as florestas e expulsa a população que ganhava seu sustento nelas.

Como se poderia abordar a questão dos comuns atualmente?

O tema dos comuns é como criar um mundo sem exploração, igualitário, onde milhões de pessoas não morram de fome no meio do consumo obsceno de uns poucos e onde o meio ambiente não seja destruído, onde a máquina não aumente a exploração em vez de reduzi-la. Este eu creio que é nosso problema comum e nosso projeto comum: criar um mundo novo.