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Por que a inclusão trans nas Forças Armadas é uma luta equivocada?
Já que mais ninguém fala nada a respeito e não ouvimos nenhuma voz dissonante no coro da esquerda de boa consciência que, lá como cá, se apressou em prestar solidariedade às gentes trans da Gringolândia em seu sagrado direito de participar das guerras imperiais mundo afora, fomos obrigadas a traduzir [malepuercamente, pra variar…] mais um texto de Mattilda Berstein Sycamore sobre o tema. O primeiro está aqui. O título deste é Swords Into Marketshare – não fazemos ideia de como ficaria isso em portugay… quem souber, que se habilite. Seguiremos aqui no asilo do Puerco Suíno, sonhando com a insurreição translésbicha preta e anticapitalista que nunca veremos, mas virá. [MI do IGPS]
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Por que a inclusão trans nas Forças Armadas é uma luta equivocada?
Mattilda Bernstein Sycamore no The Baffler de 21 de setembro de 2017
Em 26 de julho de 2017, o presidente Trump anunciou (no Twitter, claro) que proibiria as pessoas trans de servir nas Forças Armadas dos Estados Unidos, um ano após Obama ter revogado a proibição. Imediatamente, imaginei comemorações espetaculares em cidades por todo o país, onde pessoas trans – e qualquer pessoa com consciência – se reuniriam para dar as boas-vindas a essa notícia com uma extravagante oposição ao militarismo em todas as suas formas. Talvez a transgressão de gênero pudesse, afinal, derrubar o Estado!
Finalmente, aqui estava o primeiro passo do plano de três pontos para dramáticas mudanças estruturais, nos sendo entregue de bandeja:
Passo 1: Proibir pessoas trans de servir nas Forças Armadas.
Passo 2: Proibir todas as pessoas de servir nas Forças Armadas.
Passo 3: Proibir as Forças Armadas.
Com apenas esses três simples passos, poderíamos liberar recursos para financiar tudo o que já sonhamos para este país: acesso universal à moradia e à saúde, garantia de renda mínima, refúgios para crianças queer e trans que escapam de lares abusivos – tudo o que você puder imaginar. Com a redistribuição das centenas de milhões de dólares destinados anualmente às Forças Armadas (quase metade de todo o orçamento federal), com certeza a palavra de ordem “Um mundo melhor é possível” pode se tornar algo mais que uma frase inspiradora.
Infelizmente, porém, as instituições dominantes que se autorrotulam como “o movimento LGBT” estão há tempos obcecadas com o acesso ao poder estatal (e hétero), em vez de desafiarem a violência estrutural. Desde o início da década de 1990, quando o fim da proibição de soldados abertamente homossexuais se tornou um objetivo central desse movimento, os chamados líderes LGBT e seus aliados se enrolaram na bandeira de listras e estrelas, enquanto os Estados Unidos destruíam o Iraque, o Afeganistão, o Paquistão, a Somália, a Síria, o Iêmen e sabe-se lá quantos países mais – tudo isso enquanto financiavam a guerra israelense contra os palestinos, apoiavam inúmeros regimes despóticos, saqueavam recursos naturais indígenas, envenenavam a terra, o ar e a água, doutrinavam jovens para uma vida de brutalidade e trauma.
Muita gente queer sabe, com certeza, o que é sobreviver ao trauma, certo? E, no entanto, o foco principal do movimento LGBT tem sido lutar pelo “direito de servir” à agenda imperial das Forças Armadas dos EUA, e não a necessidade de desafiar sua tirania no país e no exterior. Um dia após Trump anunciar a iminente proibição, eu liguei no Democracy Now, minha fonte diária de notícias, e assisti a uma entrevista com uma mulher descrita como o “primeiro membro da infantaria a se revelar transgênero”. Assisti com horror como ela exaltou as glórias das Forças Armadas dos EUA durante quinze minutos, sem que nenhuma pergunta séria fosse feita: “Eu amo meu país, só quero continuar a servir”, afirmou, naquela que é, indiscutivelmente, uma das fontes de notícias da esquerda antiguerra mais importantes e de maior audiência em todo o mundo.
Com dezoito anos de serviço militar, incluindo três idas em missão ao Afeganistão, ela acrescentou: “Nas Forças Armadas, nos concentramos no desempenho no trabalho. E é só isso que importa, o quanto você pode fazer bem o seu trabalho”. Ninguém perguntou: como alguém cujo trabalho é literalmente atirar nas pessoas, o que exatamente você quer dizer com desempenho no trabalho?
Depois dessa entrevista, um homem trans atualmente estacionado em Kandahar, no Afeganistão, declarou: “Eu gosto de estar mobilizado porque posso ser autêntico, sou só mais um cara… para mim, é como estar de férias, porque posso ser eu mesmo, em um ambiente tão austero”. Ao contrário da matéria anterior, esta não era uma entrevista ao vivo. Era um clipe pré-selecionado de um documentário do New York Times sobre soldados trans. Todas as pessoas responsáveis pela matéria já o haviam assistido antes, e disseram sim, isso realmente é algo legal para ser apresentado! Devemos acreditar que o Democracy Now vê uma missão militar no Afeganistão como umas férias da transfobia?
Durante décadas, a esquerda ignorou as vidas queer e trans, e agora que de vez em quando incorpora nossas vozes (sim, fui já convidada algumas vezes no Democracy Now), ela com frequência é das mais conservadoras. A matéria do Democracy Now foi atroz, mas o resto da esquerda, ao cobrir esta questão, muitas vezes é tão ruim quanto. Tome uma recente manchete do Mother Jones, “Cadetes Transgêneros ainda esperam sua chance de servir” – ou esta do Huffington Post: “Senador que perdeu as duas pernas no Iraque ataca a proibição aos militares transgêneros de Trump”.
Depois de transmitir vinte minutos de vozes trans enaltecendo o serviço militar, o Democracy Now pelo menos permitiu que o acadêmico trans Dean Spade articulasse críticas substantivas – mas só em uma conversa com o cineasta que achou inspirador destacar um cara trans que acha que a guerra é uma viagem de férias.
Vez ou outra, ouvimos essa mesma retórica pró-guerra sobre a inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA ao lado de coberturas detalhadas das guerras dos EUA que aterrorizam os povos ao redor do mundo. É como se a esquerda nem percebesse a contradição.
A presença incessante de gente gay, queer e trans pró-Forças Armadas na mídia antiguerra de esquerda é sintomática da homo/transfobia estrutural que rotineiramente se manifesta neste tipo de tokenismo retrógrado. Estas são as mesmas vozes que a imprensa e os políticos chamam de porta-vozes do rótulo “movimento LGBT”. Esse estratagema reformista retrógrado tem sua base de poder no grupo lobista de Washington DC denominado Human Rights Campaign, que há muito se centra no casamento e na inclusão militar, em vez de desafiar as instituições de opressão dominantes. Para essa elite acomodada no poder, os principais problemas são sempre as isenções fiscais e os direitos de herança, em vez do acesso universal à satisfação das necessidades básicas. Com o fim da proibição de soldados abertamente gays nas Forças Armadas dos EUA, em 2011, e o casamento gay tornando-se lei quatro anos depois, o movimento assimilacionista LGBT havia alcançado seus dois objetivos principais e buscava novas fontes de financiamento e uma outra “questão” que pudesse ampliar seu status dentro do status quo.
Durante anos, ativistas trans e queers exigiram que o “T” do LGBT representasse algo mais que um enfeite em bairros gays gentrificados que expulsam qualquer pessoa que não queira ou não possa se sujeitar às normas da classe média branca. Mas agora que o T se tornou mais visível, nos presenteiam com o horroroso espetáculo do serviço militar trans como o ingresso para a aceitação.
A questão da inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA não era sequer colocada até que Jennifer Pritzker, descrita como a primeira trans bilionária, doou US$1,35 milhão ao Palm Center para o estabelecimento da Transgender Military Iniciative (“Iniciativa Militar Transgênero”), em 2014. Aparentemente, US$ 1,35 milhão é o número mágico que leva sua questão ao centro do assim chamado movimento, já que de repente a inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA se tornou a bola da vez na agenda LGBT. (Se o nome Pritzker lhe parece familiar, é porque ela é membro da notória família Pritzker, cuja fortuna foi construída com especulação imobiliária e informações privilegiadas, e que teve uma outra integrante, Penny Pritzker, nomeada Secretária do Comércio de Barack Obama.).
A luta pela inclusão trans nas Forças Armadas toma emprestada a retórica de mais de duas décadas em apoio a homossexuais nas Forças Armadas, mas, em muitos aspectos, pode ser ainda pior, já que as pessoas trans não têm nem uma fração do acesso ao poder que gays tinham há vinte e cinco anos, quando o debate gays-nas-forças-armadas foi para o palco central da política nacional. As pessoas trans rotineiramente são expulsas de suas famílias de origem, assediadas na escola e no trabalho, perseguidas por líderes e políticos religiosos e atacadas nas ruas simplesmente por ousarem existir. Às pessoas trans muitas vezes é negado o acesso a serviços básicos, como saúde e moradia, elas são demitidas ou nunca contratadas, e forçadas a escapar dos lugares onde cresceram simplesmente para sobreviver. As mulheres trans, em particular as mulheres trans não-brancas, têm uma taxa de assassinatos brutais surpreendente.
Como o movimento LGBT responde a esse padrão assustador de violência e exclusão sistêmicas? Favorecendo o serviço militar como o caminho para a assimilação – que maneira melhor para provar que as pessoas trans são “saudáveis” e “aptas para o emprego” que participando da guerra pelo lucro das corporações? Dizem-nos que o serviço militar é um “direito humano”, como se os direitos humanos das pessoas nas aldeias destruídas por ataques de drones não importassem. E agora nos dizem que as Forças Armadas dos EUA são o maior empregador de pessoas trans e que as pessoas trans precisam desses empregos! Não importa que essa informação se baseie inteiramente em um estudo que analisou o levantamento demográfico de uma amostra de pessoas trans e, em seguida, extrapolou os números de pessoas trans servindo nas Forças Armadas. Isso é tudo – de repente, porque uma das questões da pesquisa perguntava à pessoa entrevistada se ela já havia estado nas Forças Armadas (mas não quando ou por quê), ouvimos as Forças Armadas sendo descritas como algum tipo de refúgio para pessoas trans em vez de uma instituição perversa que drena recursos de tudo o que realmente importa.
Em vez de chamar a atenção para as condições estruturais que tornam o serviço militar uma trágica opção para algumas pessoas tão desesperadas para escapar da opressão, que a internalizam, e por fim a expandem, o movimento LGBT eleva o serviço militar ao padrão ouro da bravura. Por que as pessoas à esquerda papagueiam a especulação absurda e não comprovada de que as Forças Armadas são o maior empregador de pessoas trans como se isso fosse um fato, reforçando o militarismo em vez de desafiá-lo?
Em qualquer caso, por que basear um estudo inteiro em adivinhar quantas pessoas trans estão nas Forças Armadas? Porque a inclusão militar era seu único objetivo. Caso contrário, haveria estimativas do número de pessoas trans em outras atividades, ou mesmo em outros setores públicos, certo? Um ponto de referência muito mais importante seria examinar o número de pessoas trans presas no sistema carcerário dos EUA e compará-lo com as Forças Armadas, uma vez que estes são bastiões gigantescos e superfinanciados do complexo prisional-industrial. Se, como indicam os registros atuais, há cerda de 1,3 milhão de pessoas no serviço ativo das Forças Armadas dos EUA, e aproximadamente 2,3 milhões de pessoas nas prisões dos EUA – e sabemos que as pessoas trans, e as mulheres trans em particular, especialmente mulheres trans não-brancas, estão sobrerrepresentadas no sistema penitenciário – então garanto que há muito mais pessoas trans nas prisões que nas Forças Armadas dos Estados Unidos. Mas quem vai querer me dar US$ 1,35 milhão para chegar a essa conclusão?
Há tanta dissonância cognitiva quando dizem que apoiam a inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA, mas não a guerra… Para quê, exatamente, eles pensam que as Forças Armadas são? A mesma linha nociva de pensamento mágico assume o controle quando dizem que as Forças Armadas ajudam as pessoas trans a escapar da pobreza – e então não conseguem explicar as inúmeras maneiras pelas quais as Forças Armadas geram pobreza e, em seguida, empurram as pessoas marginalizadas para servir. Ninguém deve ter que se tornar parte de uma instituição assassina para escapar de um lar ameaçador, para pagar a faculdade ou sair de uma cidade sem futuro. No entanto, é isso que o movimento LGBT anuncia como progresso.
E se tivéssemos um movimento LGBT que ajudasse as pessoas trans presas às Forças Armadas a sair de lá – a desaprender sua doutrinação e encontrar formas sustentáveis de autocuidado e cuidados comunitários? E se tivéssemos um movimento LGBT que estivesse centrado em tirar pessoas trans – e todas as pessoas – da prisão, em vez de fazê-las entrar nas Forças Armadas? Se a esquerda pudesse ver a diferença entre tokenismo e transformação, estaríamos muito mais perto de alcançar mudanças estruturais significativas.
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Profeta dos últimos dias do Capitaloceno
Viajando com Foucault
Esses gringos falam muita bobagem na entrevista, mas a ideia de Foucault tomando ácido no Vale da Morte por si só é maravilhosa. [makakas idosas do IGPS dixit]
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Michel Foucault no Vale da Morte: uma entrevista da Boom com Simeon Wade
Boom California em 10 de setembro de 2017
Simeon Wade
Heather Dundas
Nota do Editor: Michel Foucault (nascido Paul-Michel Foucault, em 1926) foi um dos pensadores centrais da segunda metade do século XX. Nem filósofo tradicional, nem historiador por formação, Foucault analisou a interseção de verdade e história através das dinâmicas históricas específicas de poder.
Na França, Foucault foi uma figura importante no pensamento estruturalista da década de 1960 e nos anos seguintes. No entanto, nos Estados Unidos, especialmente na cultura popular, Foucault muitas vezes é considerado um instigador do movimento da “teoria francesa” que varreu as universidades americanas nas décadas de 1970 e 80. Frequentemente controversas, as análises de Foucault sobre os usos do poder na sociedade, assim como suas preocupações com a sexualidade, os corpos e as normas foram fundamentais no desenvolvimento das teorias feminista e queer.
Um dos primeiros seguidores do pensamento de Foucault foi Simeon Wade, professor-assistente de História na Claremont Graduate School. Nativo do Texas, Wade mudou-se para a Califórna em 1972, depois de obter seu doutorado em história intelectual da civilização ocidental em Harvard, no ano de 1970. Em 1975, Foucault foi convidado para ir à Califórnia ensinar em um seminário da Universidade da Califórnia em Berkeley. Após uma palestra, Wade e seu parceiro, o músico Michael Stoneman, convidaram Foucault a acompanhá-los em uma viagem ao Vale da Morte. Depois de alguma persuasão, Foucault concordou. A viagem memorável ocorreu duas semanas depois. Esta entrevista foi conduzida por Heather Dundas em 27 de maio de 2017, e foi editada em seu tamanho, clareza e precisão histórica.
Boom: o que você pode nos falar sobre a foto acima?
Simeon Wade: Tirei a foto com minha câmera Leica em junho de 1975. A fotografia mostra as montanhas Panamint, as salinas do Vale da Morte e as dunas congeladas no Zabriskie Point. Em primeiro plano, duas figuras: Michel Foucault, de gola olímpica branca, sua roupa sacerdotal, e Michael Stoneman, que foi meu parceiro de vida.
Boom: Como você foi parar no Vale da Morte com Michel Foucault?
Wade: Eu estava realizando um experimento. Eu queria ver [como] uma das maiores mentes da história seria afetada por uma experiência que nunca havia tido antes: tomar uma dose apropriada de LSD clínico em um ambiente deserto de grande magnificência e, em seguida, juntar a isso vários tipos de entretenimento. Estivemos no Vale da Morte por dois dias e uma noite. Este é um dos locais que visitamos durante esta viagem.
Boom: O que você pode dizer sobre esta fotografia? Foucault e Stoneman já estavam viajando quando ela foi tirada? E não fazia um calor inacreditável, no Vale da Morte em junho?
Wade: Sim. Nós subimos para a ocasião, por assim dizer, numa área chamada Artist’s Palette. E sim, estava muito quente. Mas à noite, esfriava, e você pode ver Foucault com sua gola olímpica no ar fresco. Fomos ao Zabriskie Point para ver Vênus aparecer. Michael colocou caixas de som ao nosso redor, já que não havia mais ninguém lá, e ouvimos Elisabeth Schwartzkopf cantar as Quatro Últimas Canções, de Richard Strauss. Vi lágrimas nos olhos de Foucault. Entramos em uma das cavidades e deitamos de costas, como no vulcão de James Turrell1, e observamos Vênus aparecer e, depois, as estrelas. Ficamos no Zabriskie Point por cerca de dez horas. Michael também tocou Three Places in New England, de Charles Ives, e Kontakte, de Stockhausen, junto com alguma coisa de Chopin… Foucault tinha uma apreciação profunda da música; um de seus amigos de faculdade foi Pierre Boulez2.
Boom: essa é uma verdadeira playlist. Mas por que LSD?
Wade: A revelação de São João na Ilha de Patmos, dizem alguns, foi inspirada pela Amanita muscaria. O LSD é um equivalente químico da potência alucinógena desses cogumelos. Muitas das grandes invenções que tornaram possível a civilização ocorreram em sociedades que usavam cogumelos mágicos em seus rituais religiosos3. Então, pensei, se isso for verdade, se o composto químico tiver tal poder, então o que isso vai fazer com a grande mente de Foucault?
Boom: Mas por que ir tão longe para ter essa experiência? Por que dirigir cinco horas de Claremont ao Vale da Morte?
Wade: A principal razão foi que Michael e eu tínhamos tido muitas viagens maravilhosas no deserto. No Vale da Morte, muitas vezes, e também no Mojave, em Joshua Tree. Se você toma LSD clínico e está em um lugar como o Vale da Morte, você pode ouvir progressões harmônicas, como em Chopin; é a música mais gloriosa que você jamais ouviu, e ela te ensina que há mais.
Boom: Até recentemente, a própria ideia da década de 1970 de, como você colocou em seu manuscrito4, um “elixir mágico” para expandir a consciência, era tão fora de moda quanto ridícula. Mas a pesquisa atual colocou essa intensa rejeição da experiência psicodélica em questão5.
Wade: E já não era sem tempo! [Durante essas viagens] eu vi o firmamento como realmente é, em todas as suas cores e formas gloriosas, e também ouvi os ecos do big–bang, que soa como um coro de anjos, que é o que os antigos pensavam que era.
Boom: Então você quis dar LSD para Foucault para que ele pudesse ter acesso a essa “música gloriosa”?
Wade: Não só isso. Era 1975, claro, e As Palavras e as Coisas havia sido publicado há quase uma década (publicado em 1966, em francês). As Palavras e as Coisas trata da finitude do homem, de sua morte inevitável, bem como da morte da humanidade, argumentando que todo o humanismo do Renascimento já não é viável. A ponto de dizer que o rosto do homem foi apagado.
Boom: Há a famosa passagem no final de As Palavras e as Coisas, postulando um mundo sem as estruturas de poder do Iluminismo: “Se essas disposições viessem a desaparecer… então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia”6.
Wade: Eu pensei, se eu der LSD clínico para Foucault, tenho certeza que ele perceberia que é prematuro em destruir nossa humanidade e a mente tal como as conhecemos agora, porque ele verá que existem formas de conhecimento além da ciência, e por causa do tema da morte em seu pensamento até aquele ponto. A tremenda ênfase na finitude, finitude, finitude reduz nossa esperança.
Boom: Então você levou Foucault ao Vale da Morte para uma espécie de renascimento, em certo sentido?
Waden: Exatamente. Foi uma experiência transcendental para Foucault. Ele nos escreveu alguns meses depois que foi a maior experiência de sua vida e que mudou profundamente sua vida e seu trabalho.
Boom: No momento desta viagem, Foucault acabava de publicar o primeiro dos seis volumes planejados para sua obra História da Sexualidade. Ele também publicou um esboço do resto da obra e, aparentemente, já havia terminado de escrever diversos volumes dela. Então, quando essa mudança pós-Vale da Morte se tornou evidente em seu trabalho?
Waden: Imediatamente. Ele nos escreveu que havia jogado os volumes dois e três de sua História da Sexualidade no fogo e que tinha que começar a escrever tudo de novo. Se isso foi só uma maneira de falar, eu não sei, mas ele destruiu pelo menos alguma versão deles e então os reescreveu antes de sua morte prematura em 1984. Os títulos desses dois últimos livros são emblemáticos do impacto que essa experiência teve sobre ele: O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si, sem qualquer menção à finitude. Tudo depois dessa experiência de 1975 é o novo Foucault, neo-Foucault. De repente, ele estava fazendo declarações que chocaram a intelligentsia francesa7.
Boom: Tais como…
Wade: Declarações mais confiantes em público, como a de que ele finalmente havia percebido quem era o verdadeiro Colombo da política: Jeremy Bentham. Jeremy Bentham tinha sido, por aquela época, uma figura muito respeitada, e Foucault começou a ver nele um vilão intelectual. E Foucault nega Marx e Engels, e diz que devemos ver Marx apenas como um excelente jornalista, não como teórico. E todas as coisas em que Foucault estava avançando foram reforçadas após a viagem ao Vale da Morte. O Foucault de 1975 a 1984 foi um novo ser8.
Boom: Você mencionou que algumas pessoas discordaram de sua experiência e acharam que você estava sendo negligente com o bem-estar de Foucault.
Wade: Muitos acadêmicos foram bem negativos neste ponto, dizendo que aquilo era interferir na mente de uma grande pessoa. Que eu não deveria mexer com sua mente. Mas Foucault estava bem ciente daquilo em que estava se envolvendo, e estávamos com ele o tempo todo.
Boom: Você pensou na repercussão que essa experiência teria em sua carreira?
Wade: Em retrospectiva, eu deveria ter pensado9.
Boom: Essa foi uma experiência única? Você viu Foucault novamente?
Wade: Sim, Foucault nos visitou novamente. Pouco depois, em sua segunda visita, que foi duas semanas depois dessa, nós ficamos nas montanhas – foi uma experiência de montanha.
Boom: Também com música e LSD?
Waden: Sem LSD, mas com todo o resto. Depois que ele foi embora na segunda vez, sentei e escrevi um relado da experiência chamado Death Valley Trip. Nunca foi publicado. Foucault o leu. Tivemos uma correspondência robusta. E então passamos um tempo fantástico com ele novamente em 1981, quando ele estava em uma conferência na Universidade do Sul da Califórnia.
Boom: Você guardou as cartas de Foucault?
Waden: Sim, cerca de vinte delas. A última foi escrita em 1984. Ele perguntava se poderia morar conosco em Silverlake, pois estava sofrendo de uma doença terminal. Eu acho que ele queria morrer como Huxley10. Eu disse que sim, claro. Infelizmente, antes que ele estivesse pronto para viajar, o alçapão da história o surpreendeu11.
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Heather Dundas é candidata ao doutorado em Literatura e Escrita Criativa na Universidade do Sul da Califórnia. www.heatherdundas.com.
_________________________________ Notas
O editor deseja agradecer a Stuart Elden, professor de Teoria Política e Geografia, Política e Estudos Internacionais da Universidade de Warwick, e autor de Foucault’s Last Decade (“A Última Década de Foucault”) e Foucault: The Birth of Power (“Foucault: O Nascimento do Poder”) (Polity Press) por esclarecer uma série de questões factuais nesta entrevista. Obrigado também a Jonathan Simon.
1James Turrell, Cratera Roden, http://rodencrater.com/
2Nota do editor: Segundo Stuart Elden, “Foucault era muito mais próximo de Jean Barraqué, com quem ele tinha amizade e, por algum tempo, um relacionamento. Barraqué foi um outro compositor modernista significativo e pode ser a ele que se referem [aqui]” (correspondência por e-mail, 29 de agosto de 2017).
3“… como os sumérios, que inventaram tudo, incluindo a escrita, e os essênios, que inventaram o cristianismo”. O pensamento de Wade se alinha com as teorias de John Allegro, apresentadas em The Sacred Mushroom and the Cross (Londres: Hodder & Stoughton, Ltd., 1070). A maioria dos acadêmicos rejeitou o livro de Allegro imediatamente. No entanto, o livro foi reeditado em 2008 com um apêndice do professor Carl Ruck, da Universidade de Boston, descrevendo a longa controvérsia dos cogumelos.
4Simeon Wade, Michel Foucault in Death Valley, manuscrito inédito.
5A recente explosão de pesquisas sobre o LSD e seus efeitos é muito vasta para este documento, mas algumas publicações notáveis incluem Robin L. Carhart-Harris et al., “Neural correlates of the LSD experience revealed by multimodal neuroimaging,” PNAS 113 (2016): 4853-4858; Stephen Ross et al., “Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: a randomized controlled trial,” Journal of Psychopharmacology 30 (2016): 1165–1180; Felix Mueller et al., “Acute effects of lysergic acid diethylamide (LSD) on amygdala activity during processing of fearful stimuli in healthy subjects,” Translational Psychiatry (April 2017).
6Michel foucault, As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas (São Paulo, Livraria Martins Fontes, Ltda., 2000), 536.
7Nota do editor: os volumes 2 e 3 publicados foram escritos num roteiro completamente diferente do original, vários anos depois e com um conteúdo completamente diferente. Portanto, a afirmação de que ele os destruiu e depois reescreveu é contestável. Além disso, o roteiro original do volume 2 era uma discussão sobre o cristianismo, que foi reescrito e, ainda, foi também reformatado mais tarde para publicação no que será o volume 4 do projeto. De acordo com Stuart Elden, a publicação deste volume em francês está programada para 2018 pela Gallimard.
8Foucault discute as mudanças em seu pensamento e sua escrita em entrevistas realizadas em 1984, já no final de sua vida. Ver “A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade”, “Uma Estética da Existência”, “O Cuidado com a Verdade” e “O Retorno da Moral”. Nota do editor: Surveiller et punir: Naissance de la prison (Vigiar e Punir: Nascimento das Prisões) foi publicado em francês em fevereiro de 1975 e, portanto, sendo a viagem ao Vale da Morte em junho de 1975, é impossível que esse evento posterior tenha influenciado a leitura que Foucault fez de Bentham, etc, uma vez que as críticas são apresentadas em Surveiller et Punir, cuja tradução em inglês, sob o título Discipline and Punish: The Birth of the Prison não foi publicada até 1977. O editor deseja agradecer a Stuart Elden pelo esclarecimento sobre este ponto.
9Simeon Wade deixou a Claremont Graduate School em 1977. Após ser professor adjunto de História e História da Arte em várias universidades, obteve uma licença de enfermagem e passou o resto de sua vida profissional como enfermeiro psiquiátrico no Hospital Psiquiátrico do Condado de Los Angeles e como enfermeiro psiquiátrico supervisor no Hospital Psiquiátrico do Condado de Ventura.
10O romancista Aldous Huxley pediu a sua esposa que lhe injetasse LSD quando estava morrendo em 22 de dezembro de 1963. . http://www.lettersofnote.com/2010/03/most-beautiful-death.html
11Michel Foucault morreu em Paris, no dia 25 de junho de 1984, aos 57 anos. Simeon Wade e Michael Stoneman ficaram juntos até a morte de Stoneman em 1998. Wade agora é aposentado e vive em Oxnard, Califórnia, onde escreve e toca piano.
“Tropas transgênero” deve ser um oximoro
E eis que o tranqueira Donald Trump proibiu a presença de gentes trans nas gloriosas forças armadas dos gloriosos Estados Unidos da América, essas instituições tão benfazejas para os povos deste planeta. E, só pra variar, vemos o escândalo que tal notícia provocou em gente progressista do mundo todo, que agora grita e esperneia contra mais essa aberração trumpeana. Pra clarear um pouco azideia das mana, resgatamos de um blogue morto um texto de Mattilda Bernstein Sycamore, traduzido e postado no ano passado pelas macacas idosas do Instituto Geriátrico Puerco Suíno. Mantivemos também a eloquente introdução das macacas, que são velhinhas mas sabem das coisas. Siliga:
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Do blogue das Macacas Idosas, no dia 30/06/2016:
No começo do mês azamiga progressistas, essas que nas manifestações sempre gritam “não acabou, tem que acabar…” quando chega a tropa de choque, compartilhavam por aí, felizes da vida, a matéria da Falha de Sumpaulo:
PM gaúcha libera, e soldado será o 1° gay a casar de farda em 178 anos
Ótimo, respondemos nosotras macacas senis, agora teremos a honra de ser esculachadas, torturadas e mortas por PMs orgulhosamente gueis e casados!
Essa agenda reacionária, parte do pacote LGBTTIQPQP imposto pelo Império, que prioriza a assimilação em instituições fundamentais para a manutenção do Heterocapitalismo – casamento, polícia, exército, igreja – é reproduzida acriticamente até por quem acha que está fazendo a revolução. E com muito orgulho, claro!
Vamos ler Mattilda Bernstein Sycamore, que é gringa e branca mas mostra com clareza o óbvio que azamiga cheias de orgulho não querem ver [o original tá aqui, num site “progressista”… tão progressista que alerta as eventuais piratas [nosotras, por exemplo] que seu material é copirraitado ui ui ui].
[Aproveitando a oportunidade, vai aqui uma homenagem do Instituto Geriátrico Puerco Suíno a duas guerreiras trans de verdade, Marsha P. Johnson & Sylvia Rivera: seremos eternamente gratas por seus coqueteis molotov, sisters!]
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“TROPAS TRANSGÊNERO” DEVE SER UM OXÍMORO
Mattilda Bernstein Sycamore
No dia 01 de julho de 2016 o Pentágono anunciará uma suspensão da proibição de pessoas trans servirem abertamente nas Forças Armadas dos EUA, de acordo com um artigo do USA Today amplamente citado na mídia gay. Embora a notícia tenha sido saudada como uma vitória para os direitos trans, é difícil imaginar algo mais longe da verdade. Permitir que pessoas trans sirvam abertamente nas Forças Armadas dos EUA apenas promove a violência de uma das principais instituições de opressão global.
Não devemos nos esquecer que as Forças Armadas dos EUA atualmente estão bombardeando o Afeganistão, o Paquistão, a Síria, o Iraque, a Somália, o Iêmem e sabe-se lá quantos outros países ao redor do mundo. Não devemos nos esquecer que os EUA têm uma longa história de apoio a regimes despóticos, que atualmente vão da Arábia Saudita a Honduras, do Uzbequistão à Guiné Equatorial. Ouviu falar de um golpe militar em qualquer lugar do mundo? São altas as possibilidades de que os EUA o estejam apoiando. E não devemos nos esquecer que os EUA financiam a guerra israelense contra os palestinos, fornecendo também as armas. Não devemos nos esquecer que, depois de centenas de anos de genocídio contra os povos indígenas dentro de suas fronteiras ilegítimas, os EUA ainda tratam as terras nativas como lixões para resíduos perigosos. Não devemos nos esquecer que os trilhões de dólares que financiam as Forças Armadas dos EUA drenam recursos de literalmente tudo o que importa neste país, de educação e saúde a habitação e assistência social.
Nos EUA as pessoas trans são rotineiramente expulsas de suas famílias de origem, assediadas na escola e no trabalho, perseguidas por líderes religiosos e políticos, e atacadas nas ruas simplesmente porque se atrevem a existir. Pessoas trans muitas vezes têm negado o acesso a serviços básicos como moradia e saúde, são demitidas de seus empregos ou nunca são contratadas, e forçadas a fugir dos lugares onde cresceram, simplesmente para sobreviver. As mulheres trans, em particular as mulheres trans não-brancas, têm um índice assustador de assassinatos brutais. Nos poucos lugares públicos que mulheres trans e dissidentes de gênero criaram para sobreviver, enfrenta-se o assédio diário das forças de segurança pública e demais agressores, sendo muitas vezes presas pelo crime de lutar pela própria sobrevivência, onde a perseguição e a brutalidade frequentemente se agravam.
O que, então, o fim da proibição de pessoas trans servirem abertamente as Forças Armadas dos EUA beneficia? Mais do mesmo: guerra sem fim, pilhagem dos recursos indígenas nos EUA e no exterior, e uma orientação militarista que vê as pessoas oprimidas como bucha de canhão para o imperialismo dos Estados Unidos. Também serviria para a manutenção da violência antitrans nos EUA, onde o crescimento da legislação transfóbica agora significa que até o uso do banheiro que corresponde a sua identidade de gênero está sujeito a um sensacional debate nacional.
Não é nenhuma surpresa que tanto a Human Rights Campaign (HRC) quanto a National LGBTQ Task Force, os dois maiores grupos de lobby LGBT do país, imediatamente festejaram a notícia de que o Pentágono em breve iria acolher soldados trans. Estas duas organizações vêm liderado a guinada conservadora na política LGBT ao longo das últimas décadas, que ficou mais perceptível no início da década de 1990, quando a inclusão de gays nas Forças Armadas dos EUA se tornou a questão central para a luta do establishment gay. O status quo militarista na política LGBT tornou-se mais pronunciado à medida em que a agenda do mainstream LGBT centrou-se no acesso ao casamento como o único meio para se obter recursos básicos que deveriam estar disponíveis a todas as pessoas, como moradia, saúde e o direito de permanecer neste país (ou deixá-lo) se você assim o quiser. Mesmo quando se fala de violência antigay e antitrans, um problema que sem dúvida afeta mais gente queer e trans, os LGBT que detêm poder pedem o fortalecimento do sistema legal racista, classista, misógino e homofóbico através de leis de crimes de ódio.
Na verdade, o sucesso dos objetivos do establishment gay não é o contraponto ao aumento das leis transfóbicas, é parte de sua causa. O movimento pelo casamento gay/inclusão militar excluiu sistematicamente qualquer pessoa que não seja aceitável o suficiente para a Fox News, de modo a obter direitos apenas para quem se dispuser – e for capaz de – se adaptar às normas da classe média branca hétero. Esqueça a luta por acesso universal às necessidades básicas – vamos apenas enfocar a isenção de impostos e os direitos de herança para os ricos. Esqueça as pessoas trans, as não-brancas, as pobres, sem-teto, deficientes, gente com HIV/AIDS, jovens, idosas. Esqueça migrantes de todos os tipos – não apenas quem vem de outros países, mas também queers que fogem de cidades e vilarejos dos Estados Unidos onde ainda não podem viver suas vidas sem medo.
Organizações como a HRC e a LGBTQ Task Force não são parte da solução para a transfobia; são parte do problema. Que alguns gays (e umas poucas pessoas trans) agora se beneficiem com a participação em intituições de opressão (voluntária ou involuntariamente) não significa que essas instituições tenham mudado. Significa que essas instituições mudaram a política gay, queer e trans, despolitizando uma geração inteira, fazendo com que todas nós sofrêssemos as consequências.
Em 2011 o Pentágono autorizou formalmente que soldados gays servissem abertamente seu país, bombardeando e oprimindo gente pobre não-branca ao redor do mundo, e, em 2015, a Suprema Corte derrubou as proibições ao casamento gay. Estas decisões foram as conquistas máximas do establishment gay, e depois que se tornaram lei muitos gays da elite sugeriram que o fim do movimento LGBT havia chegado. O que mais poderia ser necessário, afinal de contas, uma vez que os gays ricos obtiveram o mesmo poder para proteger seu patrimônio que seus pares hétero?
O quão longe chegamos dos objetivos originais da libertação gay surgida nas décadas de 1960 e 1970 – o fim do estado opressor, da religião organizada e da família nuclear; a rejeição da guerra, do racismo, da supremacia branca e do imperialismo; e uma redefinição fundamental das relações para além da monogamia obrigatória e do puritanismo sexual. Enquanto “Poder Gay” foi uma das palavras de ordem originais desse movimento, poder gay hoje significa acesso a todos os meios do Estado para oprimir e marginalizar ainda mais qualquer pessoa que esteja no caminho da gentrificação, o consumismo acrítico e a assimilação aos privilégios hétero.
Embora tenha havido por muito tempo uma divisão de classes na política gay e queer, as pessoas trans foram esmagadoramente forçadas à marginalidade. Mas agora nós até vemos o surgimento de uma elite trans – na verdade, foi a veterana militar Jennifer Pritzker, descrita como a primeira trans bilionária, cuja notória fortuna familiar é feita em cima da especulação imobiliária e de informações privilegiadas, quem impulsionou a luta pela inclusão trans nas Forças Armadas dos EUA. Em 2013 Pritzker deu US$ 1,35 milhões para o Palm Center, que então criou a Transgender Military Service Initiative, e de repente uma questão até então pouco comentada reivindicou as manchetes nacionais.
Por décadas o establishment gay tem sido dominado pela agenda dos ricos, que vê a identidade como um fim. “Gay” torna-se simplesmente uma outra forma de enfeitar toda instituição hipócrita hedionda, camuflando sua violência – casamento gay, gays nas forças armadas, policiais gay, padres gays, o que mais? Oh, vamos fazer as pessoas trans se misturarem – nos diz o establishment gay, depois de empurrar as pessoas trans para fora de um movimento que elas mesmas começaram (lembram-se da Rebelião de Stonewall em 1969, considerado o início do movimento LGBT dos dias atuais – quando mulheres trans não-brancas, travestis de rua, sapatonas machudas, michês e, sim, até algumas gays e lésbicas “respeitáveis”, lutaram contra a polícia pelo controle de corpos e vidas queer?).
Após o anúncio de 01 de julho de 2016, de que o Pentágono permitirá pessoas transgênero nas Forças Armadas dos EUA, cada ramo das Forças Armadas terá um ano para implementar a mudança de política. Isso com certeza dará origem a debates intermináveis na mídia sobre os corpos e as vidas trans. Enquanto políticos, especialistas, demagogos e “experts” de todo o limitado espectro político permitido nos fórums públicos debatem qual corpo é permitido onde, e qual tipo de transição de gênero será suficiente o bastante para quais fadigas de frente de batalha, estarão na realidade gerando mais transfobia em vez de afrontá-la. E, como no debate sobre o casamento gay, este espetáculo público hipócrita servirá de camuflagem para a continuação da mesma política externa militarista devastadora, a mesma agressividade perversa em casa e no exterior.
Em breve pessoas trans poderão servir abertamente seu país apertando botões em Nevada para destruir aldeias paquistanesas, ou voando em países ao redor do mundo a fim de apoiar tiranias. Transgênero, assim como gay ou LGBT, vai se tornar um outro apêndice para legitimar o terror de estado. Isso não é progresso – tornar-se parte da violência apenas gera mais violência. Precisamos voltar aos objetivos originais da libertação gay, trans e queer – o fim do controle do estado policial sobre os corpos e as vidas queer e trans; libertação sexual, social, política e de gênero, não só para queers mas para todas as pessoas, nos EUA e em todo o mundo.
Vamos pressionar pelo fim das Forças Armadas dos EUA e sua agenda imperialista e sanguinária – ou, pelo menos, por cortes drásticos nos recursos que lhes são destinados. Caso contrário, as profundas mudanças estruturais que necessitamos neste país nunca serão possíveis.
Oito perguntas que as queers palestinas estão cansadas de ouvir
Mais um texto malepuercamente traduzido pelas macacas idosas do Instituto Geriátrico Puerco Suíno, já postado há alguns anos em um blogue extinto.
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Oito perguntas que as queers palestinas estão cansadas de ouvir
Ghaith Hilal, no The Electronic Intifada de 27 de novembro de 2013
Talvez você pense que o objetivo principal de um grupo de ativistas queer na Palestina, como nós da Al-Qaws, deva ser a aparentemente interminável tarefa de desmontar a hierarquia sexual e de gênero em nossa própria sociedade.
E é isso mesmo. Mas pode ser que você pense o contrário, a julgar pelas perguntas repetitivas que nos fazem durante nossos eventos e palestras, ou pelas perguntas que nos fazem os meios de comunicação e outras organizações internacionais.
Queremos acabar com isso de uma vez por todas. Educar as pessoas sobre seu próprio privilégio não é nossa função. Mas antes de anunciar formalmente nossa aposentadoria desta tarefa, aí vão as oito perguntas mais frequentes que nos fazem, e suas respostas definitivas.
1. Israel não proporciona um abrigo seguro para gente queer palestina?
Mas é claro que sim: o muro do apartheid tem portas cor-de-rosa cintilantes, prontas para receber todas as pessoas que derem uma desmunhecada incrível. Na verdade Israel construiu o muro para manter os homófobos palestinos do lado de fora e proteger gente queer palestina que busca refúgio ali.
Mas agora falando sério: “Israel” produz refugiados; não acolhe refugiados. Nunca houve o caso de uma pessoa palestina – descendente de uma das famílias que foram deslocadas à força, algumas vezes massacradas, muitas vezes jogadas na prisão sem acusação – que tenha transcendido magicamente o legado vivo desta história para ter asilo concedido em “Israel” – o Estado que cometeu todas essas atrocidades.
Se algumas pessoas conseguem atravessar o muro e acabam em Tel Aviv, são consideradas “ilegais”. Elas acabam trabalhando e vivendo em condições terríveis, tentando evitar a prisão.
2. Os palestinos não são todos homófobos?
Todas as pessoas dos Estados Unidos são homófobas? Claro que não. Infelizmente, as representações ocidentais dos palestinos, especialmente de pessoas lésbicas, gays, transexuais ou queers palestinas, tendem a ignorar a diversidade da sociedade palestina.
Dito isto, os palestinos estão vivendo sob uma ocupação militar de décadas. A ocupação intensifica as diversas formas de opressão experimentadas em todas as sociedades.
No entanto, a homofobia não é a forma como contextualizamos a nossa luta. Essa é uma noção que vem de um tipo específico de ativismo dos países do Norte.
Como podemos destacar a homofobia de todo um sistema opressor complexo (o patriarcado), que oprime mulheres e dissidentes de gênero?
3. Como vocês lidam com seu principal inimigo, o Islã?
Oh, agora nós temos um inimigo principal? Se tivéssemos que destacar um inimigo principal, este seria a ocupação israelense, não a religião – o Islã ou qualquer outra.
Formas mais fundamentalistas de religião estão experimentando atualmente um ressurgimento em todo o mundo, inclusive em muitas sociedades ocidentais.
Nós não vemos a religião como nosso grande principal desafio. Ainda assim, o aumento do sentimento religioso, independente de qual religião, quase sempre cria obstáculos para quem se interessa em promover o respeito pela diversidade sexual e de gênero.
O nacionalismo palestino tem uma longa história de respeito pelo secularismo. Isso fornece um conjunto de valores culturais úteis para a defesa de pessoas LGBT palestinas.
Além disso, a religião muitas vezes é uma parte importante da identidade de pessoas LGBTs palestinas. Respeitamos todas as identidades de nossa comunidade e abrimos espaço para a diversidade.
4. Existem pessoas palestinas “fora do armário”?
Estou contente por terem feito esta pergunta. Temos ótimos carpinteiros gays palestinos que fazem armários incríveis para queers, com todas as comodidades ocidentais que vocês podem imaginar – dos quais nós não queremos sair jamais.
Mais uma vez, a noção de “sair do armário” – ou a “política da visibilidade” – é uma estratégia que tem sido adotada por ativistas LGBT dos países do Norte, devido a circunstâncias específicas. Impor essa estratégia ao resto do mundo, sem entender o contexto, é um projeto colonial.
Em vez disso, nos perguntem quais estratégias de mudança social se aplicam ao nosso contexto, e se a noção de “sair do armário” faz sentido.
5. Por que não há israelenses na Al-Qaws?
O colonialismo não tem a ver com pessoas ruins sendo malvadas para os outros (israelenses “do mal” não roubam o dinheiro do almoço de pessoas queers palestinas). Ser super “do bem” não dissolve em um passe de mágica sistemas de opressão.
Nossa organização trabalha com a sociedade palestina, através das fronteiras impostas pela ocupação. Os desafios enfrentados pelas pessoas LGBTs israelenses não são nada parecidos com aqueles enfrentados pelas palestinas.
Estamos falando de duas sociedades diferentes, com culturas e histórias diferentes; o fato de que atualmente eles ocupem nossa terra não nos transforma em uma única sociedade.
Mais ainda: ser queer não elimina a dinâmica de poder entre colonizado e colonizador, apesar das boas intenções.
Resistimos ao sentimento da “família gay feliz, cor-de-rosa e global”. Organizações compostas apenas por pessoas palestinas são essenciais para descolonizar e melhorar a sociedade palestina.
6. Eu vi aquele filme sobre gays palestinos (Invisible Men/Bubble/Out In The Dark, etc.) e sinto que aprendi bastante sobre a luta de vocês.
Você se refere a filmes feitos por cineastas privilegiados israelenses ou judeus, que retratam israelenses brancos como salvadores e palestinos como vítimas que precisavam ser salvas?
Estes filmes tiram a voz e a ação das pessoas queer palestinas, retratando-as como vítimas que precisam ser salvas de sua própria sociedade.
Além disso, esses filmes reproduzem estereótipos racistas de homens árabes como instáveis e perigosos. Esses filmes são simplesmente propaganda pinkwashing, financiada pelo governo de Israel, com uma comovente história de amor coberta de glitter entre oprimido e opressor.
Se você quiser saber mais sobre a realidade de nossa comunidade e de nossa luta, tente ouvir o que pessoas queers palestinas têm a dizer, nos sites da Al-Qaws ou da Palestinians Queers for BDS.
7. A luta pelos direitos gays não é mais urgente que o pinkwashing?
Os grupos LGBT mainstream dos países do Norte querem nos fazer acreditar que gays vivem em um mundo à parte, que apenas se conectam a suas sociedades como vítimas da homofobia.
Mas não teremos libertação queer enquanto o apartheid, o patriarcado, o capitalismo e outras formas de opressão existirem. É importante atingir as conexões destas forças opressoras.
Além disso, o pinkwashing é uma estratégia usada pela grife Israel para angariar o apoio de queers em outras partes do mundo. É simplesmente uma maneira de tornar o projeto sionista mais atraente para as pessoas queers.
Esta é a repetição de uma fantasia colonial familiar e tóxica – que o colonizador pode proporcionar algo importante e necessário que o colonizado não pode proporcionar a si mesmo.
O Pinkwashing apaga nossas vozes, história e ação, dizendo ao mundo que Israel sabe o que é melhor para nós. Enfocando o pinkwashing estamos recuperando nossa ação, história, vozes e corpos, dizendo ao mundo o que queremos e como podem nos apoiar.
8. Por que vocês usam termos “ocidentais” como LGBT ou queer para descrever sua luta? Como vocês respondem a essa crítica?
Embora ocasionalmente já nos rotularam de tokenizadas, de coniventes com Israel, de ingênuas e ocidentalizadas (por gente instalada no Ocidente), nossas ativistas trazem décadas de experiência e análise concreta do imperialismo cultural e do orientalismo.
Isso tem fornecido a matéria-prima para muitos acadêmicos itinerantes. No entanto, o trabalho destes que estão na Torre de Marfim raramente, ou nunca, presta contas àqueles que fazem o trabalho de campo nem reconhece seu poder (derivado da mesma economia colonial) sobre os ativistas.
Nós devemos prestar contas a nossas comunidades locais e aos valores forjados ao longo de anos de organização.
A língua é uma estratégia, mas não pode eclipsar a totalidade de quem somos e do que fazemos. As palavras que se tornaram comuns mundialmente – LGBT, queer – são usadas com muita cautela em nossos movimentos de base. Só porque essas palavras surgiram a partir de um contexto e um momento político particulares não significa que elas carregam aquele mesmo conteúdo político quando implantadas em nosso contexto.
A linguagem que usamos é sempre revista e ampliada através de nosso trabalho. A língua catalisa discussões e nos impele a pensar mais criticamente, mas nenhuma palavra, seja ela em inglês ou em árabe, pode fazer o trabalho. Só um movimento pode.
A clorofila na pele… e no sangue (Projeto TransPlant)
Durante os Encontros Bandits-Mages de Bourges, na França, o coletivo Quimera Rosa apresentava TransPlant, um projeto de arte biohacking que propõe a injeção e a tatuagem de clorofila para devir humanx-planta. Isso através da terapia fotodinâmica DIY utilizada na cancerologia…
Ewen Chardronnet, enviada especial de Makery a Bourges
“O verde é o novo vermelho”. No dia 11 de novembro, no Transpalette de Borges, no âmbito da exposição Entropia e por motivo dos encontros Bandits-Mages, o coletivo nômade formado em Barcelona Quimera Rosa apresentou o projeto TransPlant de transição a um devir-planta. Xs Quimera Rosa, Cé e Kina, sonham que uma hibridação de clorofila-sangue percorra suas veias, com tatuagens que realizem a fotossíntese.
O sonho de ficção científica biopunk não é tão novo. Pode ser encontrado desde os anos 1920 com os primeiros cientistas que se interessaram pelo estudo dos organismos marinhos (lesmas marinhas, vermes, etc) capazes de se alimentar parcial ou totalmente através da fotossíntese gerada pelos cloroplastos de algas presentes em sua pele (nos referimos a isso no ano passado na Makery). Mais próximo de nós, Lynn Margulis, a bióloga da teoria endossimbiótica e coautora com James Lovelock da Hipótese Gaia, imaginava a chegada de um “homo fotossinteticus” que se alimentaria com banhos de sol nas praias do sistema solar…
Ainda mais recentemente, o escritor de ficção científica Kim Stanley Robinson faz em Oral Argument, um romance publicado em dezembro de 2015 durante o COP21, um estudo sobre um futuro onde os biólogos de síntese teriam encontrado no registro do iGEM alguns BioBricks que podem ser combinados de maneira que se possa criar um cloroplasto sintético e células humanas capazes de realizar fotossíntese. Na história de Robinson, os biólogos modificam as agulhas de tatuar para injetar fibroblastos – cloroplastos na pele humana, como se faz com uma tatuagem comum. Eles criam uma empresa chamada Sunskin, mas rapidamente decidem tornar seu trabalho open source (código aberto), já que a fotossíntese é um processo natural. O equilíbrio planetário é então revolucionado (para mais detalhes teóricos, ler “Devenir Fotótropo”, publicado em janeiro de 2016 no jornal Planeta Laboratório).
Tatuagem clorofílica
Quimera Rosa então propôs, no âmbito de Bandits-Mages, tatuar-se uma Elysia esmeralda (Elysia chlorotica), uma lesma marinha que possui uma epiderme fotossintética. Diferentemente da biologia de síntese de Robinson, a abordagem de Quimera Rosa é (ainda) artesanal, graças à concepção de tintas de clorofila. “Fizemos o procedimento com duas clorofilas. A primeira, não-fotossintética, uma clorofila modificada para uso alimentício que compramos e misturamos com produtos habituais de tintas para tatuagem”, explica a dupla (10 g de sódio de clorofila cúprica (E141), um corante alimentício vegetal; 100 ml de água de hamamélis, uma planta usada frequentemente para fortalecer os vasos sanguíneos; 5 ml de propilenoglicol e 5 ml de glicerina médica). A segunda tinta foi sintetizada durante a performance, através de “uma extração de álcool muito simples, com os recursos disponíveis, para constituir uma tinta viva na qual se pode verificar a fotossensibilidade aos raios ultravioletas e que pode ser utilizada imediatamente para tatuar”. Essas duas tintas foram utilizadas para tatuar Kina ao vivo, realizando um primeiro desenho da elysia com a tinta não-fotossintética, e um preenchimento colorido com a fotossensível.
Somateca
Esta fase é só uma das etapas de TransPlant: green is the new red, um projeto de código aberto “transdisciplinar de bioarte e de hibridização planta/humano/animal/máquina que se desenvolverá ao longo dos próximos anos”. TransPlant põe em diálogo disciplinas como a arte, a filosofia, a biologia, a ecologia, a física, a botânica, a medicina, a enfermagem, a farmacologia e a eletrônica. Apoiando-se em diversas práticas do biohacking, Quimera Rosa quer “produzir mudanças de subjetividade e desconstruir diferentes tipos de narrativas que apresentam o corpo como uma unidade. Esses eixos são no momento: hibridização de sangue humano com clorofila com um protocolo regular de injeções intravenosas, tradução externa com tatuagens de clorofila, implantação de um chip eletrônico RFid onde estarão armazenados os dados do processo e apresentando o corpo como uma somateca, desenvolvimento e conexão ao corpo de sensores próprios às plantas (nível de acidez do entorno, frequências eletromagnéticas específicas…) e feedback com a atividade corporal, autoexperimentação médica sobre a Condylomata acuminata (verrugas genitais), constituição de uma base de dados pública open-source dos experimentos”.
Devir Ciborgue
Em agosto passado, Yan se implantou um chip RFid e decidiu mudar seu nome para Kina, uma via para este membro de Quimera Rosa afirmar sua “transição humano-planta”. O chip que Kina se implantou é uma versão livre, não detectável, da tecnologia de rasteamento. “Ter uma versão livre implantada, não detectável e com capacidade maior permite considerar esta tecnologia para usos imprevistos, não normatizados. Transformar uma tecnologia de identificação em uma tecnologia pós-identitária utilizada para hackear o que se chama de ser humano”. E com seu processo de transição Yan/Kina quer fazer reconhecer socialmente “a perda de minha condição de humano e a adoção de um novo nome”. Assim como ironizar a suposta “loucura” de sua decisão:
“E não estou segura de querer ser cobaia de psiquiatras desejosos de verificar se me sinto como uma planta presa em um corpo humano e de que inventem um transtorno de disforia de reino, ou bem se minha vontade fotossintética não é uma manifestação extrema de uma anorexia reprimida, ou se minha admiração pelo silêncio vegetal é a evidência de uma tendência complotista e associal”. [Kina de Quimera Rosa]
Kina recorda também que cadelas, cães e outros animais foram implantados com chips muito antes que humanos e que sua transição é também nesse sentido um devir-ciborgue como é proposto no Manifesto Ciborgue da filósofa Donna Haraway.
“O primeiro ciborgue foi um camundongo desenvolvido em um laboratório nos anos 60 no contexto da corrida espacial. O devir ciborgue é antes de tudo um devir animal, queiram ou não os trans-humanistas e seus sonhos de melhorar a espécie humana através da fusão com a tecnologia. Sou um cão. Ou melhor, uma cadela.
Basicamente não confundir o Manifesto Ciborgue de Haraway com o Manifesto Exterminador do Futuro de Hollywood. Minha vontade não é a de devir mais humana mas menos humana. Não é realmente um desejo de devir planta mas de uma hibridização com o vegetal, de devir com. De transitar juntas. Making kin, not babies”. [Kina de Quimera Rosa]
Cancerologia DIY
A explicação de Quimera Rosa sobre o processo da injeção de clorofila é que se trata mais amplamente de uma experimentação biomédica sobre os condilomas (verrugas genitais) e o vírus do papiloma humano (HPV), responsável por um grande número de infecções sexualmente transmissíveis.”Queremos levar a cabo uma experiência Do It Yourself de terapia fotodinâmica, isto é, injetando clorofila e projetando ali um laser”, nos diz Kina. “O HPV é um vírus de transmissão sexual, um dos mais comuns atualmente, mas é um vírus bastante desconhecido sobre o qual circula pouca informação”. O vírus é a principal causa de câncer no útero. “Nos demos conta que os estudos que circulam dizem respeito aos corpos que têm ovários, mas os estudos relativos aos corpos desprovidos de ovários, não estão tão desenvolvidos”, diz Cé. E ambxs acrescentam:
“A terapia fotodinâmica é utilizada em oncologia de pele, é bastante inovadora, funciona bem com os cânceres localizados, mas não é nem um pouco acessível ainda. O índice de cura é bastante alto, o índice de invasão corporal é bastante baixo. Através desta autoexperimentação médica sobre os condilomas, queremos também desenvolver e difundir o conhecimento desta terapia”. [Quimera Rosa]
Até este ponto, as Quimera Rosa aprenderam os métodos de extração e de transfusão. Elxs buscam a partir de agora colaborações para um acompanhamento biomédico e o estabelecimento de protocolos para a fase de transfusão. Com a ideia de fazer isso elas mesmas igualmente, de maneira regular. Continuará…
A instalação TransPlant de Quimera Rosa pôde ser vista até o dia 08 de janeiro de 2017 no âmbito da exposição Entropia no Transpalette, Bourges.
Do Parole de Queer:
Se você quer mais informações sobre a Quimera Rosa e seu projeto TransPlant, pode visitar estes links.
Além disso, recentemente foi publicado um vídeo na TeleSur onde Cé e Kina nos contam mais alguma coisa sobre seu projeto.
O coletivo Quimera Rosa estará em uma residência no Hangar do Barcelona, de 20 de março a 2 de abril. E procuram colaboradorxs:
“O coletivo Quimera Rosa estaremos em residência no Hangar para desenvolver parte do projeto TransPlant no qual estamos trabalhando há mais de um ano. Para esta residência desejamos desenvolver TransPlant: minha doença é uma criação artística: a parte de autoexperimentação médica sobre a condylomata acuminata, uma DST produzida pelo HPV (Vírus do Papiloma Humano) e com o qual convive uma das componentes de QR. Centraremos nosso trabalho no estudo da possibilidade de aplicar um processo de fotossíntese para tratar condilomas de maneira DIY/DIWO. Para isso estaremos trabalhando com cientistas e especialistas do Parque de Reserca Biomédica de Barcelona. Esse tipo de tratamento recebe o nome de PDT (Terapia fotodinâmica). Sabemos que já está sendo utilizado tanto para o HPV, cânceres localizados e dermatologia em geral, mas por se tratar de uma técnica recente ainda é de difícil acesso. Os protocolos estão bem documentados e acessíveis e há um consenso científico de que o ‘PDT can be considered a highly effective and safe treatment option for anogenital condylomata acuminata’.
Pelo que, nosso principal objetivo é de abrir a caixa-preta, como dizem xs hackers ou de abrir a pílula, como dizia xs ativistas afetadxs pela AIDS. O experimento que queremos fazer é de replicar os protocolos e as ferramentas para baratear os custos e tornar acessível a informação em uma wiki, que poderia servir para centros comunitários de saúde de países do sul onde o HPV está ainda mais alastrado. Por outra parte, queremos pelo lado artístico e mediante a dimensão performativa da autoexperimentação, formar localmente uma massa crítica de usuáries/especialistes (entendendo usuáries como especialistes).
A ideia é conseguir constituir este grupo nas duas quintas-feiras da residência, prestando especial atenção a coletivos cujo acesso à saúde pública é complicado, quando não impossível, como trabalhadoras sexuais, pessoas LGBTI+, imigrantes sem documentos, muitos dos quais estão expostos ao vírus. E que este grupo inclua também cientistas, pessoal da saúde, poderes públicos, e poder talvez influir na introdução da PDT em ambulatórios.
Assim, convidamos quem estiver interessade a somar-se ao processo. Serão bem-vindes pessoas afetadas pelo vírus, coletivos vinculados à prevenção e/ou tratamento do HPV, pessoas ou coletivos que tenham conhecimento de biologia, medicina, dermatologia e, sendo possível, que trabalhem nestas disciplinas a partir de uma perspectiva transfeminista. Assim como curiosas e portadoras de outras ferramentas que possam oferecer um outro olhar sobre o processo.
Aspiramos a constituição de um grupo plural que faça aparecer as interseccionalidades em jogo nas doenças sexualmente transmissíveis como o HPV. E que dê ferramentas para não contrapor, ou melhor, para pôr em diálogo criativo os cuidados, a prevenção, e o contágio com sexualidades abjetas, não reprodutivas e múltiplas.
Trata-se, também, de gerar conhecimentos que rompam com os tabus relacionados com o corpo doente. Um corpo sempre é um corpo doente e, ao considerar a doença como parte da própria vida, esta pode ser utilizada como ferramenta criativa para desconstruir os processos de normatização produzidos pela noção de corpo saudável.
Escreva-nos!
Sessões abertas: quinta-feira 23 e 30 de março de 2017
e-mail de contato: contact@quimerarosa.net
Marubo Power
Kẽchĩtxo
Pedro Cesarino, em Oniska:
O romeya Armando Cherõpapa amanheceu muito doente. Para mim, uma gripe forte, talvez pneumonia. Já havia estado doente há uns dias atrás e, por conta disso, desceu do Paraná para ficar em Alegria, onde há muitos kẽchĩtxo, além de mim e dos remédios de estrangeiro. Dou antibióticos, dipirona e vitaminas. Para os kẽchĩtxo, kãpo, o duplo da rã Phillomedusa bicolor, e rome vaká, o duplo do tabaco, é que estão causando doenças no velho. Na noite anterior, Cherõpapa havia cantado iniki (cantos dos espíritos) e o duplo do tabaco causou-lhe mal. Logo cedo, os velhos kẽchĩtxo Memãpa e Tekãpapa cantam shõki [soprocantos, cantos de cura] sobre Cherõpapa, enquanto rapazes batem ayahuasca sob um tapiri, depois cozinhada por Inõpa em sua casa, a fim de reabastecer as reservas da maloca. Venho com remédios para Cherõpapa, depois que acabam de cantar shõki (soprocantos, cantos de cura). Pergunto se ele comeu e diz que não, que só beberia café feito por mim. Passam alguns instantes. Cherõpapa, fraco, levanta-se para urinar. Quando retorna e deita na rede, seu corpo começa a estrebuchar. “É yove?”, pergunto a Tekãpapa, que está sentado ao meu lado nos bancos paralelos. “Não, yochĩ”, responde. O yochĩ começa a cantar, levanta o corpo do velho, que sacode a rede frenético e quase cai para trás. “É vina yochĩ” (yochĩ marimbondo), constata Tekãpapa com preocupação e, junto a seu irmão Memãpa, passa imediatamente à seção familiar (shana naki) para cantar shõki sobre o pajé. Inõpa, o filho de Tekãpapa, vai ao rádio relatar à aldeia Paraná o que está acontecendo. A velha Võsĩewa, sentada ao meu lado, explica que os yochĩ, espectros agressivos, também cantam iniki, assim como os espíritos yove. Cherõpapa está suscetível aos assédios dos yora vaká, os espectros perigosos de pessoas mortas. Os espectros de parentes mortos são “roubadores de duplos” (yochĩ vaká viaya), em especial a mãe, o tio materno, o pai e o avô materno do sujeito: são duplos/espectros que retornaram do Caminho-Morte e ficam aqui atrapalhando os viventes, dizendo “kawã, mia chinãvrãi, kawã!”, “vamos! você está pensando em nós, vamos embora!” E a pessoa adoece.
Estamos na segunda noite da doença. Chegam alguns caçadores que haviam saído para o mato. Há muitos kẽchĩtxo de outras malocas sentados no kenã (bancos paralelos localizados na entrada principal da maloca), que vieram por causa da doença de Cherõpapa. O jovem romeya Venãpa deita em sua rede amarrada no alto das pilastras da maloca. Na seção familiar (shanã naki), Cherõpapa-carcaça, deitado, canta os iniki dos agressivos yochĩ. Instantes depois, o vaká de sua mãe é quem canta: agora, não mais o da mãe-espectro que o atordoava, mas sim o aspecto melhor da outrora pessoa-mãe, que vêm para ajudar o filho doente. Depois, é Kana Ina, o duplo do falecido João Pajé, que canta nele: lá está (em sua maloca/corpo) cuidando dele (sua maloca/corpo), assim como instantes antes fizera sua mãe.
Antes disso, mulheres yochĩ haviam entrado no corpo/maloca de Cherõpapa, encheram sua barriga e o fizeram doente. Uma série de yovevo vieram depois para restaurar a ordem em sua casa. Entre eles, apareceu o poderoso Kana Panã, que foi chamado ontem mas, como vinha de longe, chegou apenas agora. Às nove da manhã deste dia, enquanto descansava, Cherõpapa sonhou que havia montes destas mulheres yochĩ em seu corpo/casa, todas fazendo sexo (aka) entre si. Tentavam agarrar Cherõpapa, pegavam em seu pênis, em suas nádegas, agarravam seus braços. Acordou doente. Depois veio um yove e arrumou sua maloca/corpo. Neste mesmo dia, Cherõpapa já podia sentar na rede e cantar iniki. Os yove já conversam com os presentes através dele. Um deles, no próprio Cherõpapa, vêm dar notícias sobre ele mesmo: os vei yochĩ (‘espectros-morte’) estão expulsos e não entrarão mais (na maloca/corpo de Cherõpapa).
Na noite seguinte, levei creme de leite com banana ouro madura para o jantar na maloca, para que todos comessem. Cherõpapa, que já estava curado, também comeu. De madrugada, enquanto eu dormia em minha casa, txashõ vaká (o duplo do veado) veio e roubou o vaká de Cherõpapa, como descobriria apenas na manhã seguinte. Txasho é uma categoria que inclui boi, vaca, veado e carneiro – todos animais interditos, ao menos em princípio, para o romeya. Creme de leite vale aí, portanto, como uma extensão dos bichos indesejados. Durante a noite, Cherõpapa berrava – era o vaká do veado quem berrava nele. Quem estava lá era só seu shaká (sua carcaça), seu corpo (kaya, yora) com suas sombras (os outros yochĩ e vaká alienáveis apenas na morte). O verõ yochĩ e os chinã nató foram embora, levados pela gente-veado. Cherõpapa estava praticamente morto (vopia), isto é, incompleto. Os kẽchĩtxo (Tekãpapa e aprendizes) cantaram shõki durante a noite inteira. Enviaram seus espíritos yove auxiliares para encontrar os duplos de Cherõpapa que, assim, amanheceu bem. Fiquei sabendo da doença na manhã seguinte por alguém, que conversava calmamente comigo, encostado num tapiri antes de entrar na maloca onde tomaríamos o café da manhã: “Cherõpapa quase morreu essa noite”, “Mesmo? O que aconteceu?”, “Foi o doce que você ofereceu para ele”. “Diarréia, infecção alimentar”, pensava eu, preocupado com a situação. Logo em seguida, quando eu entrava tenso e sem jeito na maloca para comer, Cherõpapa me disse, sem sobressalto algum, que estava bem, mas não tinha conseguido dormir direito porque teve muita tosse e catarro (oko ãtsaka) e estava sem a bombinha broncodilatadora que eu havia levado comigo. Noutras vezes, beberá sem problemas creme de leite misturado com frutas, sem que nada lhe aconteça.
Depois dos livros, imprimamos a carne
Paul B. Preciado*
Não vou falar de Donald Trump. Vou falar da possibilidade de imprimir um órgão sexual com uma impressora biológica 3D. Pode ser essa uma outra maneira de responder a Trump. Até hoje a transformação anatômica de um corpo transexual implicava um duplo processo: a destruição do aparelho genital e a esterilização. Isso acontecia e ainda acontece na maioria das operações de vaginoplastia e faloplastia. Essas cirurgias são a secularização técnico-científica de um ritual de sacrifício no curso do qual o corpo trans é submetido a um suplício, mutilado e incapacitado para todo processo de reprodução sexual. O objetivo não é a intensificação vital do corpo (o que chamam saúde, prazer e bem-estar) mas a reafirmação da norma falocrática e da estética heterossexual penetrante-penetrado.
Logo teremos, não há dúvidas, a possibilidade de imprimir nossos órgãos sexuais com uma bioimpressora 3D. A biotinta será fabricada a partir de um composto de aglomerados de células-mãe provenientes do corpo ao qual o órgão será destinado: este órgão será primeiro desenhado por um computador antes de ser implantado no corpo que o reconhecerá como seu. Este processo já foi testado para imprimir órgãos como coração, rim ou fígado.
Curiosamente os laboratórios de pesquisa não falam da impressão de órgãos sexuais. Evocam limites “éticos”. Mas de que ética se trata? Por que é possível imprimir um coração, mas não um pênis, uma vagina ou um clitóris? Não seria por acaso possível imaginar uma quantidade n+1 de órgãos sexuais implantados? Devemos considerar a diferença sexual como limite ético da transformação do corpo humano? Lembremos que quando Johannes Gutemberg declarou em 1451 que era capaz de imprimir 180 cópias da bíblia (a suposta palavra de Deus) com 42 linhas de texto por página em apenas algumas semanas (naquele então eram necessários 2 anos para fazer uma cópia a mão), ele não só foi considerado imoral como também herege. Hoje sabemos conceber uma impressora biológica 3D mas não somos capazes de utilizá-la livremente. Nossas máquinas são mais livres que nós.
Em pouco tempo deixaremos de imprimir livros para imprimir carne. Entraremos em uma nova era de escrita biológica numérica. A era de Gutemberg se caracterizou pela dessacralização da bíblia, a dessacralização do saber, a proliferação das línguas vernáculas frente ao latim e a multiplicação de línguas politicamente dissidentes. Entrando na era Gutemberg biológica 3D, conheceremos a dessacralização da anatomia moderna como linguagem viva dominante.
Os regimes da hegemonia masculina e da diferença sexual (que ainda prevalecem hoje em dia apesar de estarem em crise desde 1968) equivalem, no domínio da sexualidade, ao que foi o monoteísmo religioso para a teologia. Da mesma maneira que parecia impossível (ou sacrílego) para o Ocidente medieval pôr em dúvida a palavra divina, hoje parece aberrante pôr em dúvida o binarismo sexual. No entanto trata-se apenas de categorias históricas, mapas mentais, limitações políticas à proliferação indefinida da subjetividade. As lógicas do binarismo sexual e da diferença entre homossexualidade e heterossexualidade são os efeitos da submissão da potência de um corpo a um processo de industrialização da reprodução sexual. Nossos corpos não são reconhecidos como potenciais produtores de óvulos ou espermatozoides que se submetem à cadeia família – fordista na qual estão destinados a se reproduzir.
Masculinidade e feminilidade, heterossexualidade e homossexualidade não são leis naturais, mas práticas culturais contingentes. Linguagens do corpo. Estéticas do desejo. A possibilidade de desenhar e imprimir nossos órgãos sexuais nos enfrenta com novas questões. Já não só com que sexo anatômico nascemos, mas que sexo queremos ter. Da mesma forma que os corpos trans decidimos intencionalmente introduzir variações hormonais ou morfológicas que podem ser reconhecidas exclusivamente como masculinas ou femininas segundo os códigos binários de gênero, será possível implantar uma multidão de órgãos sexuais em um corpo. Será possível ter um pênis com clitóris no plexo solar ou uma orelha erotizada consagrada ao prazer do sexo auditivo. Virá o tempo da estética contrassexual definida não pelas leis da reprodução sexual ou da regulação política, mas pelos princípios de complexidade, singularidade, intensidade e afeto.
*no Libération de 03 de fevereiro [e em castelhano no Parole de Queer]